QUARESMA PASSO A PASSO - 2023
Evangelho Jo 5, 31-47
«Mas Eu tenho um testemunho maior que o de João, pois as obras que o Pai Me deu para consumar – as obras que realizo – dão testemunho de que o Pai Me enviou. E o Pai, que Me enviou, também Ele deu testemunho de Mim.»
Escutamos a segunda parte do discurso que
Jesus faz em sua defesa. Está em causa a sua autoridade. Na sua exposição
mostra que há uma diferença entre os judeus e ele, duas forças contrárias. Ele
veio para os judeus e estes não o querem receber. Jesus apresenta-se com
testemunhas fidedignas da sua condição diante do Pai. João Batista, as obras
que ele realizou em Jerusalém e em Caná, o próprio Pai, as Escrituras e Moisés.
Perante tantas testemunhas porque não creem nele? Porque na verdade, eles que
dizem conhecer a voz de Deus, nunca a ouviram nem viram a figura de Deus nem
habita neles a sua palavra. No fundo, eles são uma mentira. A prova disso é que
as Escrituras dão testemunho de Jesus e “não quereis vir a mim” e Moisés fala
de Jesus, “mas não acreditais nos seus escritos”.
"Naquele tempo, Jesus disse aos judeus: «Se
Eu der testemunho de Mim mesmo, o meu testemunho não será considerado
verdadeiro. É outro que dá testemunho de Mim e Eu sei que o testemunho que Ele
dá de Mim é verdadeiro. Vós mandastes emissários a João Batista e ele deu
testemunho da verdade. Não é de um homem que Eu recebo testemunho, mas digo-vos
isto para que sejais salvos. João era uma lâmpada que ardia e brilhava e vós,
por um momento, quisestes alegrar-vos com a sua luz. Mas Eu tenho um testemunho
maior que o de João, pois as obras que o Pai Me deu para consumar – as obras
que realizo – dão testemunho de que o Pai Me enviou. E o Pai, que Me enviou,
também Ele deu testemunho de Mim. Nunca ouvistes a sua voz, nem vistes a sua
figura e a sua palavra não habita em vós, porque não acreditais n’Aquele que
Ele enviou. Examinais as Escrituras, pensando encontrar nelas a vida eterna;
são elas que dão testemunho de Mim e não quereis vir a Mim para encontrar essa
vida. Não é dos homens que Eu recebo glória; mas Eu conheço-vos e sei que não
tendes em vós o amor de Deus. Vim em nome de meu Pai e não Me recebeis; mas se
vier outro em seu próprio nome, recebê-lo-eis. Como podeis acreditar, vós que
recebeis glória uns dos outros e não procurais a glória que vem só de Deus? Não
penseis que Eu vou acusar-vos ao Pai: o vosso acusador será Moisés, em quem
pusestes a vossa esperança. Se acreditásseis em Moisés, acreditaríeis em Mim,
pois ele escreveu a meu respeito. Mas se não acreditais nos seus escritos, como
haveis de acreditar nas minhas palavras?».
Obstinação é a palavra que Jesus me deixa como meditação para o dia de hoje. Quando me deixo levar pela obstinação e me fecho nas minhas opiniões e na minha maneira de ver, não consigo dar razão a ninguém, nem reúno as capacidades necessárias para ver e analisar com verdade as situações. Enganados pela ideia de que Jesus se quer fazer igual a Deus, recusam a verdade de Jesus que é Filho de Deus. Diante desta obstinação já nenhum argumento serve para defender Jesus nem haverá testemunhas suficientes para garantir a sua posição. Se não me abrir aos outros e a Deus, se não deixar entrar em mim a “voz” dos outros e de Deus, não estarei apto para reconhecer o lugar que eles têm na minha vida. Ficarei fechado na obstinação, serei um homem de “cabeça dura” incapaz de conhecer as Escrituras. Deste modo não acreditarei em Jesus.
Também eu, Senhor, fico muitas vezes pela glória dos homens e esqueço-me de abrir os olhos para Ti. É em Ti que o Pai se manifesta e em Ti se cumprem as Escrituras. Que os meus olhos, a minha inteligência, o meu coração e a minha vontade se abram para Ti. Que todo o meu ser seja lugar onde és recebido como dom do Pai para mim e para todos os homens. Que eu possa escutar a Tua voz e reconhecê-la como voz do Pai que ressoa em mim.
Encontramo-nos
no centro mesmo daquele debate, que Jesus de Nazaré teve com os seus
contemporâneos, representantes de Israel. Precisamente eles, mais do que
qualquer outro, podiam reconhecer em Cristo o testemunho de Deus mesmo. De
facto, estavam para isto preparados de modo particular. Cristo diz:
"Esquadrinhais as Escrituras julgando ter nelas a vida eterna; são elas
que dão testemunho de Mim, e não quereis vir a Mim para terdes a vida".
Não quereis... A
controvérsia, havida entre Cristo e os seus contemporâneos em Israel, refere-se
à Promessa que aquele povo eleito recebera na Antiga Aliança. Cristo vem para
cumprir aquela Promessa. E no entanto, não querem acolhê-l'O.
Por isso, Ele
discute com eles, referindo-se à autoridade que para eles era a maior: Moisés.
Diz: "Se acreditásseis em Moisés, acreditaríeis em Mim, pois ele escreveu
a Meu respeito". E por isso acrescenta: "Não
penseis que Eu vou acusar-vos ao Pai; outro vos acusará, Moisés, em quem
depositastes a vossa esperança".
Assim, pois,
surge uma espécie de debate. Este, num certo sentido, tem as características de
um processo judiciário. Cristo chama em causa as testemunhas. Testemunha é
Moisés e todo o Antigo Testamento até João Baptista. Testemunha é a Escritura e
testemunha é toda a expetativa do Povo eleito. Mas, sobretudo, testemunha são
as "obras" realizadas por Cristo com a intervenção do Pai. Diante
deste testemunho, as testemunhas da Antiga Aliança, e sobretudo Moisés, assumem
ainda um novo carácter: servem como acusadores. Parecem dizer: porque não
acolheis a Jesus de Nazaré, dado que tudo indica que precisamente Ele é Aquele
que Deus enviou conforme a Promessa? Com esta pergunta, aquelas testemunhas
parecem porém não só interrogar, mas até mesmo acusar!
Todavia, a
respeito de que é feito este debate? Apenas a respeito da subjetiva e autenticidade da missão de Jesus de Nazaré como Messias prometido? Sim, sem
dúvida. Contudo, a controvérsia vai mais em profundidade e a liturgia de hoje
também no-lo demonstra. A controvérsia atinge mais a fundo, e diz respeito ao
mesmo conteúdo messiânico da missão de Cristo. Trata-se aqui daquele conteúdo,
em que se manifesta a Verdade substancial da Revelação. De facto, a palavra
essencial da Revelação é Deus na sua mesma Verdade Divina.
"Revelação" quer dizer que Deus fala de Si mesmo aos homens. Que Se
comunica a Si mesmo de modo, sem dúvida, acessível aos homens, adaptando-Se às
suas possibilidades e faculdades cognoscitivas. Mas: comunica-Se a Si mesmo. E
quer que o homem O acolha tal como Ele é. Que pense n'Ele como n'Aquele que Ele
— Deus — é verdadeiramente!
E é precisamente
sobre esta Verdade da história da Revelação que se desenvolve a controvérsia. A
liturgia de hoje conduz-nos, antes de tudo, pelos traços particulares deste
debate já na Antiga Aliança. Eis o momento importante: o momento em que Moisés
foi chamado diante da Majestade Divina para receber os Mandamentos. No
Decálogo, Deus apresenta-se ao Povo eleito como Senhor e Legislador, solícito
por tudo o que constitui a vida e a conduta de Israel. A Lei Divina dos
Mandamentos manifesta a vontade de Deus — e ao mesmo tempo o objetivo de
assegurar os bens fundamentais do homem e da comunidade humana. Voltamos a
lê-los após tantos séculos — e sempre chegamos à mesma conclusão. O Legislador
manifesta-se na sua Lei como o Senhor solícito, Pastor e Pai do seu Povo.
E, precisamente
neste momento sublime, o Povo aturdido por causa da ausência de Moisés,
abandonado a si mesmo, comete o pecado de idolatria. Em lugar do Deus
invisível..." fizeram um bezerro, um ídolo fundido, prostraram-se diante
dele, ofereceram-lhe sacrifício e disseram: Israel, aqui tens o teu Deus,
aquele que te fez sair do Egipto"
A leitura do
Livro do Êxodo está cheia de uma tensão dramática. Encontramo-nos no limite da
eleição e da recusa por parte do Povo eleito. Sobretudo, porém, somos
testemunhas de como o Deus da Redenção luta com a mesquinhez dos homens, que no
lugar do Invisível Senhor e Pai, Pastor e Legislador, colocam outra divindade e
estão prontos a prestar-lhe adoração. No lugar do Absoluto espiritual, que é
Fonte da existência e da vida, da verdade e do bem — estão prontos a deificar a
imagem sensível de uma força primitiva simbolizada num animal.
Quando já se
passaram tantas gerações desde os tempos de Moisés e da Revelação no monte
Sinai, Jesus Cristo fala — segundo o texto do Evangelho de João — com os filhos
do Povo eleito, seus contemporâneos. E não só, Ele discute com eles sobre a
autenticidade da própria missão messiânica. Não só Ele. Em Jesus Cristo, o
mesmo Deus da Revelação — que é Pai e Filho e Espírito Santo — continua, num certo
sentido e numa nova etapa, a litigar com o homem, para que este aceite a Divina
Verdade da Revelação. Esta verdade é o Mistério definitivo de Deus. Mediante
ela Ele está, num certo sentido, "encerrado" mais profundamente na
sua Divindade. E ao mesmo tempo, mediante a comunicação deste seu Mistério
definitivo, o Deus da Revelação está mais largamente "aberto" para o
homem e para o mundo.
Ele, de facto, é
aquele Deus que "amou de tal modo o mundo que lhe deu o Seu Filho único,
para que todo o que n'Ele crer não pereça, mas tenha a vida eterna".
Eis este Deus,
Pai eterno, que vem ao mundo e fala ao homem no único Filho, luta mediante as
palavras de Jesus de Nazaré com os homens de outrora, para que acolham a
verdade sobre Ele! Para que aqueles que já acreditam que Ele existe, que é
Criador, supremo Legislador e justo Juiz, aceitem também a verdade que Ele é
Pai, que no Único Filho dá ao mundo o Seu Amor Infinito: o Amor que é
misericórdia!
Na presente
Liturgia quaresmal da Palavra de Deus desenvolve-se, portanto, um debate sobre
o conteúdo messiânico mesmo da missão de Cristo.
Devemos talvez
deter-nos nisto? Devemos reconhecer esta espécie de debate apenas com um
esplêndido acontecimento que pertence ao passado, tal como a um passado ainda
mais remoto pertence a discussão de Moisés com o povo, do qual foi chefe no
deserto?
Não. Não podemos
deter-nos aqui. Neste caso, não teríamos lido até ao fim o texto litúrgico.
Este faz-nos passar sempre do passado ao tempo presente. A Igreja assim o lê,
como se se referisse contemporaneamente a nós: hoje e aqui.
De facto, Cristo
porventura não debate — hoje e aqui, isto é, na nossa época, na nossa geração —
com o homem, com cada um de modo diverso, sobre o conteúdo messiânico da sua
missão? O Deus da Revelação não questiona talvez em Cristo, que "é o mesmo
ontem, hoje e sempre", com cada homem sobre a
aceitação da inteira Verdade desta Revelação? Porventura não compete
categoricamente ,ao homem pensar n"Ele de acordo com esta Verdade e nela
confessá-Lo?
A Liturgia da
Quaresma é um particular desafio neste sentido. Ela proclama a profundidade da
nossa relação com Deus, proclama a intimidade com Ele na verdade — em toda a
verdade da Revelação.
Numa época, em
que o mundo parece fechar-se em si mesmo e o homem fechar-se no mundo,
afastando a própria existência das fontes fundamentais do próprio sentido.
Cristo parece
dizer com uma nova força: "Vim em nome de Meu Pai e não Me recebeis, mas
se vier outro, em seu próprio nome, recebê-lo-eis. Como podeis acreditar, vós
que tirais a glória uns dos outros e não buscais a glória que vem de
Deus?"
Eis, caros Irmãos
e Irmãs, deste modo nesta meditação quaresmal tocamos os pontos mais profundos
da nossa relação com Deus em Jesus Cristo.
Detenhamo-nos
nestes pontos mais profundos.
Abramo-nos à
Verdade da Divina Revelação.
Confessemos no
Sacramento da Penitência os nossos pecados.
Unamo-nos a
Cristo na Eucaristia.
Papa João Paulo II - S. João Paulo II
(Roma, 17 de março de 1983)
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