Retiro Aberto 2021 - Agência Ecclesia - D. Tolentino

  Retiro Aberto

Com o Cardeal D. José Tolentino Mendonça

  

Tema - RECOMEÇAR

“A experiência da crise: desafio a renascer”

  

Considerações da transcrição:

A transcrição que se segue é o resultado do acompanhamento online do Retiro Aberto, promovido pela Agência Ecclesia em setembro de 2021.

Optou-se por deixar a repetição de algumas palavras, que em discurso oral são enfáticas, mas que, em discurso escrito, podendo parecer erros, são um reforço à ideia apresentada.

Fazer a passagem para linguagem escrita, de um discurso oral, foi uma primeira experiência, que se revelou bastante difícil, pelo que vão encontrar muitas gralhas. Apresentam-se, desde já, desculpas, mas a riqueza do conteúdo justifica o atrevimento. Agradece-se, que se assim o entenderem, façam chegar as correções aos erros que detetarem.

Comunicação 1

Venho apresentar-vos um conjunto de pistas para recomeçar em tempo de crise, ou num tempo marcado por uma experiência de crise em que vos desafio a renascer. Nós estamos a viver novos tempos. Proponho-vos fazermos este itinerário juntos ao longo desta semana.

Penso que é uma proposta espiritual importante para esta rentrée que nos mobiliza a todos. Eu queria começar lendo um texto do Evangelho de São Marcos que finaliza o capítulo quarto. O capítulo quarto deste Evangelho é muito interessante, porque é um dia cheio na vida de Jesus. Jesus fartou-se de fazer coisas, sobretudo em termos do ensinamento. Foi um dia cheio de aulas para Jesus, digamos assim, porque ele contou várias parábolas e, não só as contou às multidões, como depois tirou dúvidas aos discípulos. Foi falando do Reino, mudando de lugar várias vezes e, chega-se ao fim do dia. Jesus disse assim:


“35Naquele dia, ao entardecer, disse: «Passemos para a outra margem.» 36Afastando-se da multidão, levaram-no consigo, no barco onde estava; e havia outras embarcações com Ele. 37Desencadeou-se, então, um grande turbilhão de vento, e as ondas arrojavam-se contra o barco, de forma que este já estava quase cheio de água. 38Jesus, à popa, dormia sobre uma almofada.39Acordaram-no e disseram-lhe: «Mestre, não te importas que pereçamos?» Ele, despertando, falou imperiosamente ao vento e disse ao mar: «Cala-te, acalma-te!» O vento serenou e fez-se grande calma. 40Depois disse-lhes: «Porque tendes medo? Ainda não tendes fé?» 41E sentiram um grande medo e diziam uns aos outros: «Quem é este, a quem até o vento e o mar obedecem?»”

 

É interessante salientar que, no final de um dia tão cheio, Jesus tenha sentido a necessidade de um outro espaço, de um outro ritmo de respiração: «Vamos para a outra margem». E esse é também o desafio que é feito, hoje, a cada um de nós. É verdade que, para aqueles que pudemos ter férias no verão, já houve a oportunidade de encontrar outras margens, mas muitas vezes as margens que as férias nos possibilitam não são aquela margem interior, aquele lugar interno, onde a nossa respiração espiritual se pode reconciliar. E por isso, Jesus, nesta hora da nossa vida, diz-nos também a nós: «Vamos para outra margem».


É muito interessante a forma como o texto evangélico está construído, porque Jesus como que desaparece de cena. Ele começa por ser o protagonista, ao dar a ordem de comando vamos para outro lado, para outro sítio, mas depois o evangelista diz-nos: «Eles deixaram a multidão e levaram Jesus consigo na barca». Jesus entra numa espécie de passividade. De repente, é como se a câmara deixasse de estar a seguir Jesus e passasse a estar a seguir os discípulos e, para reforçar esta imagem de passividade, o evangelista conta-nos que Jesus caiu no sono e num sono profundo. Só que nesta situação aconteceu a tempestade, aconteceu a crise. De facto, as crises têm isso: nós não escolhemos o momento em que elas rebentam. O que é próprio da crise é encontrar-nos impreparados. É sempre uma surpresa, por vezes uma surpresa traumática, a chegada da crise. E é isso que acontece aos discípulos. «Jesus!» Eles estão no lago. Jesus está a dormir. E … acontece aquela tempestade. O barco vai-se enchendo de água, mas também os corações deles se vão enchendo de aflições, de medos, de perguntas, de dúvidas: como é que isto se vai resolver? … e Ele vai despertar ou não? E depois acontece isto.

Jesus onde está? Jesus está na popa. A popa é o lugar do Mestre, nestas embarcações do lago da Galileia. A popa é o lugar donde se conduz a embarcação, porque é de lá que o Mestre ordena o caminho, a direção, o rumo; é lá que está o leme. Ora, o homem do leme está a dormir sobre a almofada. Como é que é possível? Ele que devia estar a vigiar! Por isso, os discípulos, em pânico, atemorizados, carregados pelo sofrimento, vão acordar Jesus e dizer-lhe: «Mas não te importa que nós morramos, que pereçamos? Faz alguma coisa!» E naquele momento Jesus acorda e exorciza o vento e o mar. E é interessante a palavra que é usada - «aconteceu no lago uma grande calmaria». Calmaria em grego, diz-se galena. Galena é uma palavra ligada a um verbo, o verbo gheláoGheláo quer dizer rir em grego. Então o que é uma calmaria? Uma calmaria é quando o rosto que estava aflito, ofegante, se abre, se dissolve se relaxa num sorriso. Então é a passagem da tempestade à calmaria, é a passagem da aflição ao sorriso, um sorriso que nos desprega a alma. E é isso que Jesus faz naquele dia. E voltando-se para os discípulos, Jesus diz: «Porque estais com medo? Ainda não tendes Fé?». Jesus sabe bem identificar o nosso problema, porque para Jesus o problema não é a tempestade, não é aquela tempestade externa: o problema é a forma como nós vivemos as tempestades; o problema é o medo que nos devora a alma; o problema é a insegurança é a incerteza; o problema é esta espécie de crise permanente, que faz do nosso coração uma espécie de cidade que não dorme.

Ora, um elemento um pouco estranho nesta narrativa evangélica de Marcos, é de facto, o sono de Jesus. Por que é que o evangelista dá tanto valor, dá tanto espaço narrativo a contar o sono de Jesus? E até com aquele detalhe realista, «ele estava a dormir sobre um travesseiro, sobre uma almofada». Por que é que Jesus dorme? Jesus dorme porque confia no Pai. Porque confia na competência do Pai, que é capaz de atuar mesmo no meio das crises, e certamente vai levar o barco a bom porto, mesmo quando Jesus Se abandona nas Suas mãos. O que é fé? A fé é a capacidade de se abandonar com confiança, mesmo não vendo, mesmo não sabendo como, mesmo no meio das crises, mesmo no meio das tempestades, das turbulências e das convulsões. Nós, adultos, sabemos que o sono é um bem frágil e muitas vezes nos momentos dilemáticos, nos momentos de encruzilhada da nossa vida, a primeira coisa que nós perdemos é o sono, porque o sono é um bem frágil. E por que é que perdemos o sono? Porque a confiança, por qualquer razão, se afasta do nosso coração. E então, nós até podemos, durante o dia, fazer tudo aquilo que temos de fazer e responder à multiplicidade de solicitações, mas quando nos deitamos na cama, estamos como que em sobressalto e o nosso coração não se reconcilia. É uma crise de confiança que está por trás da crise do sono, na maior parte das vezes, e essa crise de confiança pode expressar-se de duas formas: 

- Pode acontecer porque nós queremos controlar tudo, tudo, e, muitas vezes, a crise não está nos nossos planos, não está não - nós fazemos um mapa de viagem, um mapa, uma cartografia do tempo, meteorológica, onde nunca há tempestades, é só dias de sol e quando a tempestade entra, é como um intruso. É como um intruso que não faz parte ou não deveria fazer parte da nossa história, porque nós temos exatamente tudo controlado. Ora, a vida não é assim. A vida faz-nos passar por travessias muito diferentes, a vida é a música das várias estações, o verão e o inverno e as estações intermédias, também elas com características diferentes: vemos o verde das folhas e vemos a folha amarela rodopiar e cair; vemos o sol nascer e o azul se abrir; vemos a neve cair; vemos os mares, dentro de nós e fora de nós tornarem-se gelados. E essa é a história da própria vida, por isso, nós temos de aceitar que não controlamos tudo e que há uma sucessão de estações;

-Mas, ao mesmo tempo, a crise de confiança também é por outra coisa. A crise de confiança é porque, no fundo, nós não acreditamos no poder das pequenas sementes que Deus colocou em nós, como a semente do grão de mostarda, que é a mais pequena das sementes, e depois se torna a maior das plantas do horto. Muitas vezes o que nos falta é essa confiança no pouco, no mínimo, naquilo que já temos; e achamos que aquilo não é suficiente; e achamos que aquilo não basta; e então entramos nesta espécie de noite branca, que veste o nosso coração e não somos capazes de nos abandonar. 

É aqui, de facto, que as crianças são nossos mestres. Porque o que nós vemos a dada altura connosco, adultos, nós vemos acontecer claramente, visualmente, na vida das crianças. Elas pedem a companhia dos pais e retêm os pais e pedem uma canção de ninar, uma canção de embalar que existe em todas as culturas. Porquê? Porque a criança ainda não tem no seu coração a certeza, a certeza total de que se fechar os olhos e abrir, vai de novo encontrar o pai e a mãe, a casa, os brinquedos, o quarto, os amigos. E ela precisa desse abraço físico. Por isso, agarra-se ao colo com muita força, porque o seu coração precisa ainda de ser confirmado, ser confirmado. E nas crises, porque as crianças passam, mesmo nas primeiras vezes, na primeira adolescência, o que acontece? Às vezes a criança vai para o quarto da mãe, vai para a cama dos pais. Porquê? Porque está a passar por alguma situação de fragilidade da própria confiança. E esse contacto físico, essa presença, é uma espécie de confirmação necessária de que ela se pode abandonar. A criança só se abandona ao sono quando tem no seu coração a certeza de que alguém vigia, de que alguém trabalha, para preparar, para garantir o seu amanhã. Por que é que Jesus dorme? Porquê este abandono de Jesus? Este abandono de Jesus, acontece porque Ele tem, de facto, a compreensão profunda, vital, de que se pode abandonar. É porque não se sente abandonado que Ele se abandona à noite, porque sabe que mesmo na escuridão, mesmo na tempestade, mesmo nas situações de crise, o amor do Pai trabalha em Seu favor. É muito interessante ligar o sono a uma palavra fundamental do vocabulário espiritual dos padres do deserto e do cristianismo a oriente, que é o termo hesychasmos , ou hesychia que quer dizer repouso, recolhimento. Nós somos devorados pelo ativismo, mesmo se não temos uma agenda preenchida dentro de nós. A nossa respiração é férrea, é galopante e descompassada. É como se, mesmo parados, vivêssemos em corrida, nunca estamos onde estamos. Às vezes, a nossa maior ferida é exatamente essa. É porque ou estamos no ontem, ou estamos no amanhã. Eu digo que nós ficamos capturados pelo se. Não abraçamos esse território que é por excelência, o território de Deus na nossa vida, que é o presente. Vivemos ainda a esgrimir razões com o passado, uma culpa: e foi assim e não foi assado; e diz e não disse; e aconteceu e não aconteceu. Tudo isso tem um peso ainda no nosso presente. Mas também vivemos muito condicionados com as expetativas e, muitas vezes, aquilo que nos torna infelizes são de facto as expetativas desencontradas que nós fazemos. E se isto e se aquilo? E se eu conseguir? E se eu fizer? E se eu?... Isso acaba, muitas vezes, por ser um véu, por ser um muro que nos impede de tocar o presente. É um coração como uma tempestade no lago, um coração cheio dessa agitação. 

Ora, o que é um retiro? O que são estas pistas para recomeçar? É importante praticar o recolhimento e aproveitar este tempo ou, ao longo desta semana, praticar uns bocados de silêncio no nosso dia, como dizem os franceses, sentarmo-nos na nossa cadeira, isto é, habitarmos o nosso espaço interior e estarmos à escuta de Deus, à escuta do que Ele diz, nesta espécie de esvaziamento de nós próprios, que é necessário. Os padres e castas que meditam muito sobre a necessidade deste recolhimento, dizem-nos assim como o que  é necessário fazer para recolher o nosso coração. Os métodos para obter isso são os seguintes: fechar os olhos; imaginar a omnisciência e o amor de Deus; direcionar a nossa mente para Cristo ou para nós próprios, afastando todos os pensamentos, ou então retornar a nós próprios; permanecer na calma e na tranquilidade; e ainda recordar-se intensamente da presença de Deus, que está em toda a parte; do seu conhecimento e do seu amor, que é sem limites; passar do ativismo à passividade que o Evangelho de Marcos nos relata também plasticamente, como uma espécie de sono.

Porque estais com medo? Ainda não tendes fé? É a pergunta que Jesus nos faz e é muito interessante ligar a fé ao medo, porque nós podemos dizer: a fé não tem nada a ver com medo; e eu só vou ter fé quando a situação de medo ou a experiência de medo for completamente vencida. É muito interessante, quase paradoxal, o que nos diz o Evangelho no versículo 40 do capítulo quarto de São Marcos. Jesus perguntou:  - «Porque tendes medo e ainda não tendes fé?». E o versículo 41 diz-nos o seguinte:  «Então ficaram com muito medo e diziam uns aos outros: - Jesus perguntou por que é que ainda temos medo?». E depois desta pergunta, eles ficaram com medo. Então a fé não elimina completamente o medo, mas ajuda-nos a viver o medo, as crises, a incerteza, as tempestades, as questões, as travessias; ajuda-nos a viver de uma outra forma; é um outro olhar; a fé não é apenas um dia de sol; não é o verão onde parece que tudo se resolve, que tudo é límpido, que tudo é transparente. A fé muitas vezes atravessa a nossa vida em momentos noturnos, em momentos de luta, de grande combate interior, em momentos de doença, de fragilidade, de vulnerabilidade, em momentos em que não sabemos como é que as coisas se vão resolver. E, contudo, esses momentos são momentos de fé. Eu lembro-me de dum poema de São João da Cruz, grande mestre destas caminhadas interiores da vida espiritual. Ele tem um poema que é o cantar da alma que goza por conhecer a Deus pela fé. É muito interessante ler este poema, que tem 12 estrofes e até à décima estrofe tem um refrão, um estribilho que se repete “bem eu sei”. O verbo saber está sempre presente. E depois, nas estrofes finais, o verbo saber já não está. Então o saber já não é importante. Que eu saiba ou não saiba, isso já não é decisivo. O que é que permanece do princípio ao fim, nesta composição que eu vos vou agora ler? Permanece a fonte que corre, e a fonte que corre é Deus na nossa vida. Também permanece a noite. Deus e a noite são garantidos. E às vezes eu sei, às vezes eu compreendo, mas em algumas etapas da nossa vida, nós fazemo-las a tatear, mesmo não sabendo, mesmo não percebendo, mesmo não vendo como. Aquilo que Maria disse no acontecimento da Anunciação: «Como será isso se eu não conheço homem?», esta pergunta também é uma pergunta da fé.

Então o maravilhoso poema de São João da Cruz diz o seguinte:

Que bem sei eu
a fonte que mana e corre,
Mesmo sendo noite!

Aquela eterna fonte está escondida.
Bem eu sei onde tem sua guarida,
Mesmo sendo noite!

Sei que não pode haver coisa tão bela
E sei que os céus e a terra bebem dela,
Mesmo sendo noite!

Sua origem não a sei, pois não a tem,
Mas sei que toda a origem dela vem
Mesmo sendo noite!

O fundo dela, sei, não pode achar-se;
Jamais por ela a vau pode passar-se,
Mesmo sendo noite!

É claridade nunca escurecida
E sei que toda a luz dela é nascida,
Mesmo sendo noite!

Tão caudalosas são suas correntes
Que céus e infernos regam, mais as gentes,
Mesmo sendo noite!

Nascida de tal fonte, esta corrente
Bem sei que é mui capaz e omnipotente,
Mesmo sendo noite!



Das duas a corrente que procede
Sei que nenhuma delas antecede,
Mesmo sendo noite!

                                                                       (E agora acaba o verbo saber. Já não é importante saber.)

Aquela eterna fonte está escondida
Neste pão vivo para dar-nos vida,
Mesmo sendo noite! *

Aqui está chamando as criaturas:
Desta água se saciem, e às escuras,
Porque é de noite! **

É esta a viva fonte que desejo
E neste pão de vida é que eu a vejo,
Mesmo sendo noite!**

*Aqui, o importante é ver o pão vivo, porque nele a fonte está escondida, mesmo escondida. Quer dizer, eu não vejo, eu não sei, eu não compreendo, mas eu creio. E a fé é isso. A fé é crer naquilo que eu não vejo, naquilo que eu sei que está escondido. É como dizia a carta aos Colossenses - «A nossa vida está escondida com Cristo em Deus».  

**E nós saciamo-nos de Deus às escuras, quer dizer, na noite escura da alma, quer dizer, nas tempestades do lago, quer dizer, nas travessias difíceis da nossa vida, quer dizer, nas encruzilhadas diplomáticas da nossa história. Nós saciamo-nos desta água às escuras. Não é sem razão que, muitas vezes, os momentos da nossa vida, de uma doença, de um sofrimento, são momentos de grande intensidade, orante da nossa vida. Porquê? Porque nós bebemos desta água às escuras.

***E para terminar, São João da Cruz diz: «É esta a viva fonte que desejo. E neste Pão da vida é que eu a vejo, embora seja noite». Então é interessante esta composição, porque é espiritualmente muito rica, muito sagaz, muito precisa, porque descreve uma espécie de movimento descendente em que se passa do indefinido, aquela fonte, uma fonte, para esta fonte, este pão. E passa do abstrato para o concreto. Ao nível descendente, porque nesta descida: eu perco o saber, mas ganho o sabor; ganho o verdadeiro conhecimento, que é o conhecimento da fé; ganho o desejo; ganho a visão de Deus, que nasce do desejo de acender o desejo de Deus no meu coração. Este poema de São João da Cruz é claramente muito influenciado pelo Evangelho de São João, nomeadamente por três passagens, que são três passagens decisivas também para um caminho espiritual de renovação, de transformação interior:

- A primeira passagem é a de Nicodemos. Este homem que vai a meio da noite, oculto pela noite, mas também na noite, que é esse espaço aberto de perguntas, de procuras, vai ter com Jesus. E tem aquela conversa sobre o nascer de novo. Jesus diz-lhe: «-Tu tens que nascer de novo. E ele diz: - Mas como é que eu, sendo velho, posso nascer de novo? Tenho de voltar ao seio de minha mãe?!». E Jesus explica-lhe que este nascer de novo é o nascer da água e do Espírito, é o nascer do alto – «Bem, eu sei a fonte que mana e corre». Então a história de Nicodemos atravessa este poema e atravessa também esta hora da nossa vida, porque todos nós somos um pouco como este homem, à procura. Este homem que sente a necessidade de nascer, de renascer e não sabe como e não vê como pode ser. E Jesus explica-lhe que é através do Espírito que Jesus dá, que ele pode renascer;

- Outro texto evangélico que marca este poema é o encontro de Jesus com a mulher samaritana. E há, aqui, como que uma apropriação quase literal por parte de S. João da Cruz, porque a mulher samaritana, a dada altura, no evangelho diz: - «eu sei, eu sei, que há de vir o Messias. E Jesus diz-lhe: - se tu soubesses…». É tudo, se tu soubesses quem te pode dar o dom de Deus, se tu conhecesses o dom de Deus. No fundo, no diálogo de Jesus com a samaritana, anda tudo à volta do saber e do não saber. E ela percebe que Jesus lhe pode dar a água viva – «Bem, eu sei a fonte que mana e corre». Esta fonte está escondida - «Aquela eterna fonte está escondida /Neste pão vivo para dar-nos vida»;

- E, de facto, o terceiro texto de S.João que temos presente aqui, e que nos pode ajudar, é o texto do Pão da Vida, Jo 6. As multidões andavam atrás de Jesus, porque na hora da multiplicação tinham comido do pão que Ele tinha multiplicado. Mas Jesus fala-lhes de outro pão, que não é apenas o maná do deserto, mas é o Pão, que é o próprio Jesus: - «Eu sou o Pão da Vida, quem me come, não mais terá fome». E é, no fundo, este caminho de: fome; procura; sede; saber; não saber; nascer; não nascer, que acompanha toda esta composição de S. João da Cruz. Todo o poema, é, no fundo, a história da nossa fé e a história deste momento da nossa vida: como é que vamos renascer, como é que vamos conhecer, como é que vamos saber? Nós vamos fazer tudo isto através da fé, através deste processo que o próprio Deus, através do Espírito Santo, faz em cada um de nós, através da oração, através desta abertura confiante, através desta espécie de passividade, para que o agir do Espírito Santo possa acontecer dentro de nós.

Eu penso, muitas vezes, naquela primeira frase do evangelho de Marcos, Mc 4, 35: «passemos para a outra margem». Estas pistas para recomeçarmos o ano de uma forma renascida, para olharmos e lermos esta experiência de crise (que quem sabe, já passamos, … que em parte ainda vivemos) como uma oportunidade de renascer, fazem-nos um desafio: nós precisamos de passar para a outra margem. E, passar para a outra margem, não significa que a nossa vida vai ser toda diferente, que vamos viver outra vida, ou noutro contexto, ou noutra casa, ou com outra profissão, ou com outro quotidiano, com outros hábitos, com outras pessoas… Às vezes o que nos falta é o contrário, não é habitar outra vida, mas habitar de outra maneira a nossa vida e, simplesmente, caminhar com outro passo pelos caminhos que nós já fazemos todos os dias. É, por exemplo, abrir a mesma janela, mas abri-la devagar, tomando consciência de que nós estamos a abrir uma janela. É reaprender outra qualidade para o quotidiano, muitas vezes sufocado, aprisionado por tantas rotinas e tantos automatismos como é o nosso.

O evangelho pede-nos que o escutemos de novo, como se fosse pela primeira vez. Se calhar, nós não precisamos de ouvir coisas novas. O nosso renascimento - é interessante a própria palavra, porque renascimento, quer dizer que nós já nascemos e estamos num processo, numa espécie de repetição criativa, existencial de uma coisa que já está em nós - não é uma invenção, não é o acolhimento de outra coisa, mas é uma espécie de revisão, é uma espécie de reciclagem, de recuperação da própria vida.

Este verbo renascer… Eu, estes dias, fiz um exercício, que vos recomendo, que, no fundo, é uma espécie de oração: fui ao dicionário ver os verbos que têm a ver com repetição. Eu digo, às vezes, que parece que é impossível emocionarmo-nos com um dicionário, mas confesso que me vieram as lágrimas, porque são verbos que, quando nós os lemos devagar, provocam tantas coisas em nós, tanta experiência, tantos silêncios… às vezes tantas desilusões, tanta vida perdida, mas, ao mesmo tempo, tanto desejo, tanta aprendizagem, tanto renascer, tanto grito a Jesus: «Senhor, não Te importa que pereçamos?!». Mas, ao mesmo tempo, depois da outra tempestade acalmada, quando Jesus atira a mão a Pedro e Pedro se agarra à mão de Jesus, estes verbos também contam isso.

Sem dúvida, que a nossa rentrée não é feita de verbos inaugurais, de verbos que são como um caderno limpo, encetado, como quando éramos estudantes e havia a primeira lição e aquilo dava-nos a sensação de uma vida limpa, uma vida transparente, clara - «É o dia inicial e limpo», como dizia o verso de Sophia de Mello Breyner Andresen. Mas, muitas vezes, a nossa vida já não é esse caderno, já não é a primeira lição, mas são os verbos repetidos, que nós temos de reaprender a viver, tornando-os límpidos, como âncoras de esperança para nós. Eu recordo alguns destes verbos, que são, de facto, como uma oração, pois podíamos rezar só com estes verbos (era um belo exercício!): reavivar; reabituar; reaprender; reconstruir; recuperar; redizer; refazer; reintegrar; relançar; reparar; repassar; requentar; resguardar; ressaltar; ressurgir; restaurar; restituir; rever; revisitar; resolver. Quanta existência despendida nestes verbos! Quanto esforço, desilusão, esperança perdida, quanta vulnerabilidade, mas ao mesmo tempo, quanta maturação, quanto caminho, quanta resiliência, quanto exercício concreto da esperança estão nestes verbos. A vida de Deus em nós assemelha-se a esta sabedoria dos verbos de repetição. As crianças, aqui, também são nossos mestres, porque elas nos ensinam, tantas vezes, a felicidade da repetição - o pai conta uma história à criança e ela diz: «outra vez.»; - «A mesma história?»;  «Sim, outra vez aquela história que contaste ontem»;… «outra vez»;…. Porquê? Porque não é a febre das coisas novas, não é essa espécie de carrossel inebriante do inédito, mas é aquela alegria, aquela felicidade difícil que a repetição nos dá, porque quer dizer que já há uma vida vivida e que essa vida renasce, que essa vida se faz e se pode ainda refazer, que há a reversibilidade de Deus. Uma das coisas mais belas da nossa vida, como noção da misericórdia e da ternura de Deus, é a reversibilidade. A nossa vida não é irreversível, é reversível, pois nós podemos cair e levantarmo-nos, nós podemos rasgar os joelhos na terra e eles podem-se refazer, nós podemos ferir e curar, nós podemos pecar e ser perdoados. Tudo isto é caminho… Nós podemos passar da fúria, da raiva, que é a tempestade no lago, à bonança e à calmaria, que é o sorriso, que Jesus reconstrói no coração dos seus discípulos. Para dormir é preciso confiar e Jesus abandona-se no lago, abandona-se no sono na barca, porque confia no Pai, porque confia na ação discreta, misteriosa, persistente e invisível de Deus na História. Ele abandona-se nas mãos do Pai, mas também se abandona à noite alterosa do coração dos discípulos. Jesus abandona-se a nós.

É importante dizer isto no final da nossa primeira sessão deste retiro, que estamos a fazer, preparando um renascer em tempo de crise, com pistas para este tempo novo.

Acreditemos que Jesus se abandona ao nosso coração, que Ele confia verdadeiramente em nós. Lembro aquilo que dizia Simone Veil. Ela dizia: «o importante não é ter fé em Deus, mas é descobrir que Deus tem fé em nós». De facto, é decisivo descobrirmos que Deus tem fé em nós…mas em mim no meio desta turbulência?; mas em mim tão hesitante?; mas em mim carregado de dúvidas?; mas em mim, …?!  Sim. O importante é descobrir que Deus tem fé na mulher, no homem que nós somos.

Comunicação 2 

A experiência devastadora desta pandemia, que em parte ultrapassamos, e em parte estamos ainda a viver, sempre com uma grande em incógnita, veio colocar no centro do nosso vocabulário de todos os dias a palavra crise. E como que nos obriga a enfrentar de novo esta palavra, que tem expressões fora e dentro de nós. Porque esta crise poliédrica, como lhe chamou o Papa Francisco, de facto não é apenas a da sucessão da crise pandémica, da crise económica, da crise social, mas é também uma crise com ressonâncias psicológicas, internas, espirituais.

E por isso nós precisamos de ativar ferramentas espirituais para podermos abordar esta crise que nos toca a todos de formas muito diferentes.

Nos seus últimos discursos, o Papa Francisco tem desenvolvido uma espécie de teologia da crise, sem correr o risco, claro, de, ao teologizar, tornar as coisas muito abstratas, ou muito concetuais. Ele, ao mesmo tempo, tem ousado, com os pés no chão, olhando a realidade como ela é, colado ao histórico, contudo, ele tem desenvolvido uma espécie de um outro olhar, uma verdadeira teologia espiritual, sobre esta experiência coletiva que todos nós estamos a viver.

De facto, nós precisamos, hoje, e no relançamento de um ano isso é muito evidente para nós, nós precisamos hoje de um revigorado alento espiritual. Porque, sem Deus, nós não tocamos, não chegamos ao âmago misterioso da vida, em que estamos  inscritos. Como dizia o romancista João Guimarães Rosa, «a nossa alma tem de ser de Deus, senão como é que ela pode ser nossa?!».

A proposta que vos faço, é que, de facto, peguemos em palavras do Papa Francisco e as utilizemos como pistas para a nossa interioridade, para a nossa reflexão pessoal, para o nosso encontro, para estas peças de alavancagem da vida, a que nos dispomos.

No final do ano passado, dirigindo-se à cúria romana, o Papa Francisco dizia o seguinte:

"Este tempo fica marcado pela pandemia, pela crise sanitária, pela crise económica, social e até eclesial, que atingiu sem distinções o mundo inteiro. A crise deixou de ser um lugar-comum dos discursos e da elite intelectual para se tornar uma realidade partilhada por todos. A crise da pandemia é uma ocasião propícia para uma reflexão sobre o significado da crise em si mesma, que nos possa ajudar a cada um. A crise é um fenómeno que afeta tudo e todos. Presente por todo o lado, em cada período da história, envolve as ideologias, a politica, a economia, a técnica, a ecologia e a religião. Trata-se e isto é importante, duma etapa obrigatória da história pessoal e da história social. Manifesta-se como um facto extraordinário que provoca sempre um sentimento de trepidação, angústia desequilíbrio e incerteza nas opções a tomar. Como lembra a raiz etimológica da palavra do verbo krino, a crise é aquele crivo que limpa o grão trigo depois da ceifa.”

Detenhamo-nos nestas palavras do Papa Francisco.

Primeiro, a crise que atinge a todos. Isso é importante, na forma como olhamos para nós próprios e para os nossos semelhantes. Nenhum de nós está incólume, os mais novos  nas nossas famílias, os mais velhos, mas também os jovens adultos, aqueles que estão a viver uma adultez mais avançada, os do meio da vida, … de facto a pandemia toca-nos a todos. E é preciso ter esta consciência, também para estarmos alerta e podermos ajudar.

Depois, esta pandemia chega-nos como uma coisa inesperada, como alguma coisa extraordinária, que, supostamente, na nossa forma de julgar, não estava no programa. Chega por isso como um trauma. E o que é um trauma? Um trauma é uma agressão que nos chega de alguém, ou num tempo que nós não esperamos. E estamos desprotegidos, desarmados, perante esta agressão.

Num primeiro tempo lidamos com esta agressão a partir de um tumulto, de uma angústia, de um desequilíbrio, de uma incerteza, mas, ao mesmo tempo, como nos sugere o Papa Francisco, nós somos chamados a fazer uma metabolização, uma integração da própria crise, fazendo dela uma etapa da nossa história pessoal e social, porque, no fundo, todos somos afetados por crises, e se pensarmos na história humana, ela não é outra coisa, senão uma variação entre crises de natureza diferente. Nós não temos nenhuma muralha que impeça as diferentes crises de chegar. O que é que nós podemos fazer? Aprender com elas, aprofundá-las, desconstruí-las, compreendê-las, combatê-las, superá-las no sentido de que as vivemos também como uma oportunidade, também como uma lição.

E é interessante que o Santo Padre aproxime de nós a palavra crise. De facto a sua origem etimológica vem do verbo grego krino, que significa julgar. Então a crise, o que é? A crise é o crivo que limpa o grão de trigo depois da ceifa. Nesse sentido, nós podemos dizer: a crise é a peneira, a crise é a joeira, a crise é a ciranda, a crise é o coador, a crise é o passador, a crise é o filtro na debulha incessante da vida.

Nós não podemos esquecer que as crises são de facto nossos mestres. Nós vivemos num tempo de escassez simbólica e mistagógica. Aprendemos tantas coisas, mas somos analfabetos em relação à própria existência e aos seus dinamismos fundamentais, em relação às nossas emoções nós somos também analfabetos. Não conhecemos, não mergulhamos, não tocamos o âmago da própria existência. Vivemos numa sociedade que é muito rica em tantas dimensões, nomeadamente na dimensão tecnológica, mas ao mesmo tempo, é uma sociedade muito pobre em termos do ensinamento humano sapiencial que transmite. Pensemos, por exemplo, na morte e no tabu, na grande ocultação, que a morte significa, exatamente porque a nossa sociedade, como não nos inicia, numa verdadeira arte de viver, também não tem nada a dizer sobre a arte do morrer. E por isso, nós, em muitas situações da vida, encontramo-nos desprovidos, sem instrumentos de sabedoria, para lidar a com as situações, com as experiências que nós vivemos. Nesse sentido, a crise pode de facto ajudar-nos.

Há uma escritora, que escreveu muito sobre a crise das diversas idades adultas, Christiane Singer, que recorda um diálogo que um seu amigo, antropólogo, teve com uma tribo de indígenas. Este antropólogo, perguntou aos indígenas: «- Mas vocês nunca têm crises?!» E o indígena terá respondido: «- Nós, senhor, nós não temos crises, nós temos iniciações». É verdade, nas sociedades primitivas, havia iniciações, a iniciação da passagem da adolescência à juventude, da juventude à vida adulta, de um estado ao outro no itinerário da existência.

As nossas sociedades, secularizadas, não têm esses ritos, e por isso, as crises são muitas vezes a única oportunidade, que as nossas sociedades têm, ou que os indivíduos têm, para um reencontro, mais profundo, consigo mesmos. Por que, o que é que faz a crise, em nós? Não digo já, esta pandemia, apenas, mas todas as crises e as crises existenciais, as crises de fé, as dúvidas, as crises de vida, porque nós passamos. O que é que faz a crise? A crise desoculta. A crise de desnuda. Permite-nos um olhar diferente, mais completo, mais maduro, porque nós não nos damos conta, mas vemos apenas a vida de uma forma muito parcial, ocultamos o que podemos, ou o que queremos, e achamos que aquilo é o todo da realidade. Funcionamos muito por imagens, por idealizações, e a crise é um momento para desconstruir tudo isto, às vezes de uma forma violenta, que nos faz sofrer. Mas, ao mesmo tempo, é uma oportunidade para: escutarmos, não apenas a vida na sua aparência, mas para olharmos, por exemplo, a ferida submersa, aquela que nos custa identificar e ainda mais abraçar; identificarmos o desconforto, a insatisfação com as nossas formas de vida; identificarmos a sede de verdade, que nos habita, como um grito, e pela qual nós não estamos a fazer nada. Por isso, naquele mês de março, na sua celebração, na praça de São Pedro vazia, o Papa Francisco pôde dizer, com toda a razão, não foi apenas a pandemia que nos adoeceu, o mundo já estava doente e não conseguia reconhecer isso.

O Papa Francisco, sabiamente, fala da pandemia como de uma tempestade. A tempestade é um sinónimo de crise, e ele diz: « a tempestade desmascara a nossa vulnerabilidade e deixa a descoberto, as falsas e supérfluas seguranças, com que construímos os nossos programas, os nossos projetos, os nossos hábitos e prioridades».

Então, como é que podemos definir a crise? Podemos defini-la como um acelerador de revelação.  De certa forma, agora nós podemos ver melhor, nós podemos tocar melhor a realidade, nós podemos escutar, melhor, aquele que viaja adormecido na nossa barca. Não aproveitarmos esta crise, esta tempestade, para uma auscultação mais profunda da própria história, da própria vida, da construção social, que fazemos juntos, é, verdadeiramente, desperdiçar uma ocasião, preciosa, para aceder àquela profundidade de sentido e profecia, que torna a nossa vida verdadeiramente evangélica. Não nos podemos esquecer disso, os grandes ciclos de crise, na nossa vida e na história, muitas vezes, sobrevêm e emergem para que não aconteça o pior. O pior não é a crise em si mesma, o pior é aquilo que Jesus explica no Evangelho de Lucas - Lc 7, 32 - o pior é fazer do Evangelho, fazer da vida, uma oportunidade perdida: «tocámos flauta para vós e não dançaste, entoamos lamentações e não choraste». O pior é ter olhado sem ver, é ter ouvido sem escutar, é ter captado, de alguma maneira, alguma coisa, mas não a ter entendido, não ter feito nada, nada com isso, por isso, a crise empurra-nos, a crise move-nos. Para alargarmos o lugar, a nossa perspetiva sobre as coisas, nós precisamos de um motor, e esse motor, muitas vezes, na nossa vida é a crise.  Lembro, por exemplo, aquilo que aconteceu na vida de uma grande testemunha do século passado, Etty Hillesum, que passou de uma vida dispersa, distraída, numa mundanidade, num narcisismo, para a capacidade de dar a vida, e o motor desta transformação foi uma das horas mais escuras do século vinte, que foi a experiência do nazismo. Ela num campo de concentração no norte do Holanda, há de escrever, nesses momentos mais turbulentos  da história recente, diz Etty Hillesum: “- Meu Deus, esta época é demasiado dura para gente frágil como eu, mas sei igualmente que, a seguir a este, outro tempo virá. Gostava tanto de continuar a viver, para transmitir, nessa nova época da história, toda a humanidade que guardo dentro de mim, apesar de tudo aquilo com que convivo diariamente”. Esta é a única coisa que podemos fazer para preparar a nova estação, para prepará-la já dentro de nós, e de facto realmente, há tanto a fazer dentro de nós. 

Olhemos para esta ano e meio que nós vivemos. Quantas coisas fomos chamados a reaprender nesses dias, nesses dias, que muitas vezes nos pareciam: um tempo congelado, um dia único, um dia como um open space, um dia que não termina nunca, que não tem fronteiras, que não tem descontinuidade, um dia contínuo, um dia que não termina nunca. Mas neste dia assim, nós fomos chamados a viver transformações, ciclos de luto, despojamentos, inflexões, demoras, viagens que recebemos como um choque, mas também tantos reflorescimentos. Porque a vida é um apelo, que nos pode chegar através de formas dolorosas e paradoxais, e esta crise é isso, não o podemos esquecer. Mas, a vida de Deus é esse apelo para que escutemos melhor a vida que nos é dada, e a escutemos até ao fim, como provavelmente ainda não o havíamos feito. Porque a vida é um parto interminável e esse parto da vida é também o nosso. A vida é esse incessante modelado inacabado, que é a nossa gestação, a parte da gestação do mundo. E em certos momentos, a vida é deceção, a vida é de desilusão, a vida é incerteza. Mas noutros momentos, a vida é essa louca garantia, essa louca esperança, e louca, aqui, não é um adjetivo qualquer, é o preciso adjetivo escolhido por São Paulo para falar da esperança cristã - aquilo que para o mundo é a sabedoria, para nós é loucura. Ora, este é também o tempo para experimentar a loucura da esperança cristã. Acreditarmos que este mundo tumultuoso, que, de repente, parece ter ficado ainda mais difícil, ainda mais pesado, ainda mais complexo, que esta hora de crise, afinal, pode ser uma hora de kairós, uma hora de tempo oportuno, de momento para… para partir, para recomeçar, para sentir que este não é um fim da história, não é um crepúsculo, mas pode ser um começo. Nós vivemos um apocalipse, e é interessante que a palavra apocalipse quer dizer "revelação". Então, esta catástrofe de pandemia, que revelação significa, que véu foi retirado, e quando ele foi retirado o que nós agora vemos? O que é que nós agora vemos? É uma pergunta importante para cada um de nós fazer. O que eu vejo agora? Porque, sem dúvida, estamos todos no mesmo barco, como lembrou, e muito bem, o Papa Francisco, mas ao mesmo tempo, cada um de nós está a viver esta pandemia de uma forma que é sua, que tem a ver com a sua história, com o seu caminho, com o seu momento, com o seu momento de vida, e temos de aproveitar este reinício do ano, também, para fazer perguntas ao nosso coração. A pandemia, a crise, é um apocalipse. O que é que este apocalipse nos revela? 

Eu penso que o apocalipse da crise nos revela, fundamentalmente, três coisas:

- A primeira coisa é aquela expressa pelos cientistas, que nos recordam que o número das epidemias, ou das pandemias cresceu e crescerá, porque os nossos modelos de desenvolvimento não têm em conta o equilíbrio dos ecossistemas, nem o respeito pela casa comum. Nós partimos muito do modelo, de uma quase tirania antropológica, de um centralismo antropológico despótico - como se diz na Laudato Si - tudo é em função do homem, e tudo é em função de cada um de nós, e nós temos direito a tudo, e não devemos nada. Tudo serve para as necessidades do homem, e perdemos de vista o equilíbrio da casa comum. Perdemos de vista isso que é aquilo que o Papa Francisco chama a Ecologia Integral. A nossa missão no mundo é de apascentar em vez de explorar e punir. Nós precisamos de aprender uma outra atitude, aprender que nós não somos donos, somos passadores, no sentido de que recebemos uma herança e estamos a passá-la para as próximas gerações.

Uma outra atitude no sentido de que não estamos sós, e de que não somos senhores despóticos, nem podemos ser isto, digamos, não é uma abstração, é na vida todos dias, na forma como geramos os nossos quotidianos. E uma palavra para o futuro, que sai daqui, uma primeira palavra, que sai desta crise, é a palavra conexão. Nós estamos na mesma barca, e somos habitantes da mesma casa. E por isso temos de viver, e temos de introduzir modelos que possam ser modelos de esperança, modelos futurantes, e não modelos que dinamitem o equilíbrio, quer da família humana, quer desta grande casa comum, que é o planeta;

- Depois, uma segunda coisa que aprendemos é que os nossos estilos de vida, neste mundo globalizado, precisam de conversão, de conversão. É uma palavra que nós também temos, de levar para este ano que começa. Uma é a palavra conexão, outra é a palavra conversão. Porque nós construímos sociedades, e construímos também itinerários de vida, movidos pelo dogma do utilitarismo. Nós só damos valor ao que é o útil, ao que é produtivo. As nossas sociedades, no fundo, parecem grandes mercados massificados. E o que é que tem acontecido? Um desenvolvimento dramático no humano. O santo padre, desde a sua primeira exortação apostólica, Evangelii Gaudium, fala insistentemente contra o descarte, contra a cultura da indiferença, contra uma economia que mata. Agora, a questão não é apenas como é que as grandes multinacionais, os governos, atuam com estas linhas. Mas também a questão é como é que esta economia de massas, que mata, nos contaminou. E como é que nas nossas pequenas e grandes escolhas do quotidiano, nós agimos, não numa lógica de consumo, mas investindo no essencial da vida. E, sem dúvida, nós precisamos de conversão para chegar a uma nova sabedoria, tendo modelos mais integrativos, ritmos horários que sejam mais humanos, que privilegiem mais a família, visões capazes de dialogar com a inteireza da pessoa humana nas suas diversas dimensões. Se nós não aproveitamos a crise para uma conversão, sentindo que ela nos chama verdadeiramente a uma conversão, acontece aquilo que Albert Camus descreve no seu romance “A Peste” - ele disse: « o bacilo da peste, pode entrar e sair sem modificar  em nada o coração humano».  Essa seria verdadeiramente a grande perda;

- A terceira aprendizagem, a terceira coisa que fica clara, é também que não nos basta agir por medo, por medo do morrer, por medo de estarmos perdidos. Nós experimentamos isso nos primeiros meses de pandemia e experimentaram isso de modo dramático, agudo, aqueles que sofreram na pele as hospitalizações, a morte das pessoas queridas, a impotência de não fazer nada e de não os poderem acompanhar quer na doença, quer na morte. Foram momentos verdadeiramente terríveis, em que um medo muito grande do mundo, do futuro, do que estamos a viver, se apoderou de nós.

Mas, hoje, para nós tem de ser claro, que não pode ser o medo e a incerteza a conduzir-nos. Nós precisamos sim de relançar a nossa aliança com a vida. Este tempo tem de ser um tempo de relançamento, um tempo de alianças, de pactos, e pactos firmes. Nós precisamos de apostas de confiança, nesse dom incalculável que a vida significa. E por isso, este tempo não pode ser apenas um momento em que a nossa alma sucumbe, em que a nossa alma vem abaixo. Este tempo é o tempo propício para olhar os lírios do campo. Este é o tempo propício para termos sonhos, para arriscarmos, para irmos além do óbvio, e percebermos que há aqui uma oportunidade, no meio desta crise, que nós precisamos, verdadeiramente, de escutar. Eu recordo muito uma das frases do Evangelho de São João – João 1, 26 - « João Batista vê passar Jesus e diz aos discípulos que estavam com ele: no meio do vós está alguém que não conheceis» ... no meio do vós está a alguém que não conheci. E penso que esta frase é verdadeira repetida assim, no meio de nós próprios, no centro misterioso da nossa relação com Deus, com o mundo, com os outros, connosco mesmos, no âmago da gestão, mais fluida, ou mais atribulada, que fazemos da existência, está o que não conhecemos. E, porventura, aí, nisso que não conhecemos, está uma presença, um tesouro, uma fonte que mana e corre, como ontem víamos no poema de São João da Cruz, uma água que dessedenta e que continua por descobrir. É um trabalho de relação, um trabalho espiritual e de vida que está à nossa espera para poder ser encetado. É importante aproveitarmos este momento. Não tenhamos medo dos vazios. Não tenhamos medo das dificuldades. Não tenhamos medo dos problemas. O caminho espiritual pode partir de tudo, mas tem que partir sempre da nossa realidade, porque só ela nos vai permitir acolher a vida de Deus em nós. Lembro a história de um discípulo que vai ter a sua primeira lição. E o mestre, muito amavelmente, convida-o para tomar um chá na primeira lição. O discípulo aproxima a sua xícara, a sua chávena, e o mestre começa a deitar o chá. Só que o mestre não para e o chá começa a derramar por todo o lado. Primeiro, o pobre do discípulo, faz um bocadinho de cerimónia e não diz logo nada, mas depois a situação é de tal forma que ele diz: «- mestre está a derramar!» E o mestre com toda a tranquilidade responde: « - é a primeira lição». Se não manténs a tua taça disponível, é um desperdício tudo aquilo que vais receber - manter a taça disponível. E numa experiência de Deus,mais ainda. Na experiência de Deus, também este início de ano que nos motiva, que nos pede energias novas, que nos pede um alento, uma frescura para vivermos aquilo que nos é pedido, aquilo que nos espera, nesta experiência de Deus, é importante não ter pressa. E é importante amar também, sentir como é precioso o vazio. Porque o que é importante é que Deus toca aquilo que nós somos. Porque Ele é capaz de refazer, é capaz de refazer a nossa história. Por isso, este momento é sobretudo um momento para um pacto de confiança, de confiança na vida, porque Deus pode, Deus pode: Deus pode refazer aquilo que se gasta, Deus pode reencontrar aquilo que se perde, Deus pode reavivar aquilo que se extingue. O Senhor sabe pacientemente refazer as alianças dentro de nós. 

Aproveitemos este tempo de retiro, esta semana especial em que estamos aqui na agência Ecclesia e com tantas e tantos a fazer este caminho, aproveitemos esta semana para um tempo especial de escuta, de auscultação interior. Porventura é disso que mais precisamos. Na regra de S. Bento há uma expressão, logo no início, que aparece como mandado e diz assim, "Abre o ouvido do teu coração". Queremos viver este arranque de ano de outra forma, com outra profundidade, outra transferência, outro entusiasmo, abramos o ouvido do nosso coração. Antes de tudo sintamo-nos escutados até o fundo, e até o fim, por este espírito de Deus que vai até nós e que abre o nosso funil, o nosso engarrafamento - Deus abre a um horizonte amplo, a um olhar, a um olhar de esperança. E que a gente saiba reciclar a vida, reciclar a vida, transformar a vida, porque Deus é o mestre dessa transformação. Há um poema de um poeta brasileiro Manoel de Barros, a sua poesia está traduzida em Portugal e eu aconselho muito porque o Manoel de Barros é verdadeiramente um grande mestre espiritual do nosso tempo, porque nos ajuda a partir do ínfimo. Não é por acaso, por exemplo, que ele escreveu um longo poema de variações sobre a forma como São Francisco de Assis se cola ao chão e olha para Deus colado ao chão, colado ao pequeno, colado ao comum, colado ao banal, colado ao ordinário da história. Nós somos como o caracol, ou devemos ser -  o caracol conhece poucas coisas, mas é colada a elas que ele as conhece. Então nós precisamos dessa adesão, mas uma adesão que não é de braços caídos, que não é conformismo, uma adesão que é esta capacidade de transformação que acontece por uma nova escuta e por um novo olhar. Temos, por isso, de fazer aquilo que o poeta Manoel de Barros chamava a “Teologia do Traste”, que é um poema dele, muito engraçado, muito incisivo, do ponto de vista espiritual, em que ele diz assim:

As coisas jogadas fora por motivo de traste

são alvo da minha estima.

Prediletamente latas.

Latas são pessoas léxicas pobres, porém concretas.

Se você jogar na terra uma lata por motivo de traste:

mendigos, cozinheiras ou poetas podem pegar.

Por isso eu acho as latas mais suficientes, por exemplo, do que as ideias.

Porque as ideias, sendo objetos concebidos pelo espírito, elas são abstratas.

E, se você jogar um objeto abstrato na terra por motivo de traste,

ninguém quer pegar.

Por isso eu acho as latas mais suficientes.

A gente pega uma lata, enche de areia e sai

puxando pelas ruas moda um caminhão de areia.

E as ideias, por ser um objeto abstrato concebido pelo espírito,

não dá para encher de areia.

Por isso eu acho a lata mais suficiente.

Ideias são a luz do espírito - a gente sabe.

Há ideias luminosas - a gente sabe.

Mas elas inventaram a bomba atómica, a bomba atómica, a bomba atóm................................................................................................................................................……………………………………………………….…………….Agora eu queria que os vermes iluminassem.

Que os trastes iluminassem. 

O que é a teologia do traste? É não fugir numa forma de escapismo, que nos é muito habitual, para o mundo das ideias, para o mundo das idealizações. A ideias são fantásticas, mas a ideia foi também uma bomba atómica. A ideia é também aquilo que nos paralisa, aquilo que não nos deixa nunca mergulhar no oceano da própria vida, do próprio real. Por isso, é melhor o traste, é melhor a lata que se atira vazia, cheia de areia torna-se um carrinho que o miúdo arrasta, ou com uma lata vazia podemos fazer sempre alguma coisa. Noutro poema que, de certa forma, nós podemos dizer que continua e esclarece esta teologia do traste, Manoel de Barros, diz assim:

     Prefiro as máquinas que servem para não funcionar:

     quando cheias de areia de formiga e musgo - elas

     podem um dia milagrar de flores.

     (Os objetos sem função têm muito apego pelo abandono.)

     Também as latas desprezadas que servem para ter

     grilos dentro - elas podem um dia milagrar violetas.

     (Eu sou beato em violetas.)

     Todas as coisas apropriadas ao abandono me religam a Deus.

     Senhor, eu tenho orgulho do imprestável!

     (O abandono me protege.) 

O que nos indica este poema? Que nós vivemos de funções. E agora, ao voltar das férias, muitas vezes voltamos ao nosso local de trabalho, voltamos à nossa secretária, ao nosso computador, ao nosso título académico, aos nossos percursos, no fundo, em síntese, à nossa função. E somos, parece, máquinas feitas para funcionar. Mas a vida espiritual pede-nos, que também sejamos máquinas feitas para não funcionar, isto é, máquinas preparadas para o milagre, não para o ritmo causa e feito, não para a folha de excel, não para os resultados que nós programamos, não para a chave que nós temos na manga. Não! Mas sim, para milagrar flores, milagrar violetas. Os objetos em função têm apego pelo abandono. Isso é muito importante. Nós não somos máquinas de combate. É importante sentir que o abandono nos protege, que o abandono nos liga a Deus, o abandono de todas as funções, o abandono...

A vida espiritual é: descalçar os sapatos e andar descalço pela casa; é abrir as suas mãos vazias e olhá-las; é sentir não o que nós temos, mas o que nós somos; e é valorizar isso; e é fazer um caminho, porque muitas vezes nós chegamos tão longe, em tantas dimensões da vida, mas na dimensão espiritual nós ficamos tão no princípio. E é por isso que, de ano a ano, o que se passa é uma grande insatisfação. Se calhar amontoamos mais coisas, mas amontoamos também mais o desgosto de ser só aquilo, de não ter sido o que tínhamos sonhado, de vivermos, no fundo, uma vida desencontrada. E isso acontece porque arriscamos pouco viver dentro de nós, no fundo de nós, o abandono. Acreditar que a nossa vida serve para ter grilos dentro, como ensinam os miúdos nas suas brincadeiras, ou serve para ter violetas dentro, como ensinam, muitas vezes, velhotas dos prédios, que parece que não têm já nada a dizer e ensinam lições tão importantes. Quer dizer, a nossa vida é chamada a ser uma vida generativa, uma vida capaz de gerar o milagre. E nós estamos a tempo disso, porque Deus vem ao nosso encontro aqui e agora.

Comunicação 3

Se nós pensarmos bem, como nos ajuda a ver o Papa Francisco, quem nos mete mais em crise é Jesus. Nós podemos achar que é esta pandemia ou pós pandemia, com todas as suas dificuldades e incertezas, mas há uma crise mais profunda que nos move e nos transforma. E essa é certamente aquela que o encontro com a pessoa de Jesus e a contemplação da pessoa de Jesus desencadeia em nós. Pensemos em Jesus - é o exercício que vos proponho. Pensemos em Jesus, pensemos, por exemplo, nas suas parábolas. Paul Ricoeur, o filósofo que estudou muito a linguagem de Jesus, diz que as parábolas são relatos de normalidade e que nos cativam por isso. Aparentemente, são histórias de comerciantes, de pescadores, da mulher que amassa o pão, de agricultores. Nem sequer é uma linguagem tipicamente religiosa. Começam por ser relatos de normalidade. Mas depois, nesses relatos, acontecem ações extravagantes que põem em crise a normalidade e servem para dizer que a nossa normalidade tem de ganhar aquela extravagância, chamemos-lhe assim, aquela diferença qualitativa que as ações de Jesus mostram. Nesse sentido, as parábolas não são uma linguagem de reforço. Há dois tipos de linguagem: linguagem de reforço e linguagem de mudança. A linguagem de reforço é para investir na realidade, tal como ela é, e dizer assim está bem, vamos continuar. E a linguagem de mudança é uma linguagem alternativa que nos desafia a uma transformação verdadeira. A linguagem de mudança coloca em crise a nossa visão habitual do mundo, as nossas conceções, os nossos juízos, o nosso quadro habitual de valores - por exemplo, as parábolas de Jesus: a atuação do pai, na parábola do filho pródigo, é estranhíssima, porque é um excesso de misericórdia em relação àquele filho, que justamente merecia menos do que o outro;  a parábola do Bom Pastor, que deixa as 99 ovelhas e, de certa forma, se distancia delas para ir à procura da ovelha perdida; o homem que como que encontra um tesouro num campo que não era seu, o esconde e, por isso, vai vender tudo o que possui para comprar aquele campo; a praga, porque se trata de uma praga, da mostarda que se coloca num campo e faz atrair todos os pássaros da terra. Mas qual é o agricultor que quer pássaros nos seus terrenos? Ora, de facto, as parábolas são uma linguagem de mudança e todo o discurso de Jesus é uma linguagem de mudança. Porquê? Porque nos ajuda a ver que o Reino de Deus põe em crise o nosso mundo e que a lógica do Evangelho é uma lógica que nos sacode, que nos obriga a uma conversão, nos obriga a uma transformação. Neste sentido, é de facto Jesus quem nos coloca mais em crise. Pensemos, por exemplo, na relação, central nos Evangelhos, de Jesus com os pecadores. Jesus viveu, atuou numa sociedade muito marcada por linhas de fronteira entre o puro e o impuro, o justo e o injusto, o santo e o pecador, o sagrado e o profano. Em grande medida, mesmo que de uma forma secularizada, essas linhas de demarcação continuam a vigorar hoje nas nossas relações. Jesus é alguém que abate as fronteiras. A comunidade convivial, à volta da mesa, que Ele constrói com os pecadores, é alguma coisa que indigna as pessoas justas do seu tempo. Porque Jesus põe em crise a categoria do bom, a categoria do justo, a categoria do santo, como eram concebidas no seu tempo, e fala de um Deus de misericórdia, de acolhimento, de inclusão. Fala de um Deus que dá o primeiro passo, que ama primeiro. Jesus perdoa primeiro, e porque as pessoas recebem o perdão, arrependem-se verdadeiramente e constroem uma vida nova. Jesus toma a iniciativa de entrar em casa de Zaqueu e é, porque Ele entra em casa de Zaqueu, que Zaqueu diz: «eu vou dar metade dos meus bens». Reparem nisto, a entrada de Jesus na casa de Zaqueu coloca em crise as pessoas boas de Jericó. Porque dizem: mas com tantas casas, aquele profeta tinha de bater à porta da casa dum pecador! E assim, nós vemos como, de facto, lendo os evangelhos, nós entramos em crise, porque Jesus é o primeiro a nos chamar a uma mudança, a nos colocar em estado de conversão.

Mas o próprio Jesus viveu também esta crise. Ele não apenas colocou em crise e coloca em crise a nossa história, mas Ele também viveu a crise. A forma como Ele viveu a crise, sem dúvida, é iluminante para nós, nos ajuda a perceber a forma como nós próprios podemos viver as nossas crises. As crises de Jesus como que são condensadas no relato das tentações que nos aparecem desenvolvidas no início dos três evangelhos sinóticos e desenvolvidas em Mateus e em Lucas (Marcos apresenta-as de uma forma muito mais breve). Por exemplo, em Mateus, no capítulo quarto, nós vamos seguir as três tentações. Vamos ler o capítulo quarto de São Mateus e perceber como essas tentações, de certa forma, sendo três, não são apenas três, mas são 300, 3000, … porque Jesus não foi tentado apenas uma vez. Naturalmente, como nós não somos tentados apenas uma vez. Num período da nossa vida, podemos ser mais tentados, mas a tentação acompanha-nos, e a tentação é sempre esse entrar em crise por alguma razão. Mas, de facto, estas três crises de Jesus, chamemos-lhe assim, espelham tantas crises pelas quais nós vivemos. 

Vejamos a primeira crise, a primeira tentação. O tentador aproximou-se e disse-lhe: «Se tu és filho de Deus, ordena que estas pedras se convertam em pão». E respondeu Jesus: «Está escrito, nem só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus». À primeira vista, nós não podemos não estar mais de acordo com Jesus e, possivelmente, não há ninguém que não esteja de acordo com Ele, nem nenhum materialista, nem nenhum pessimista antropológico. Não há nenhum filósofo, nenhum pensador, não há ninguém que se oponha a esta evidência de verdade da frase de Jesus «Nem só de pão vive o homem». É evidente, nós não vivemos apenas do aspeto material da vida, a nossa existência não se esgota na luta pela sobrevivência. Digamos, até aqui nós estamos todos de acordo. Mas Jesus viveu outra crise. Não é apenas nem só de pão vive o homem, isso está tudo certo. Mas se é assim, nós vivemos de quê? Não vivemos só de pão, mas vivemos de quê, para lá do pão? E nesse sentido, Jesus, de facto, viveu essa crise e coloca-nos perante esta crise, com esta que é uma pergunta irrecusável e que cada um de nós é chamado, também nesta rentrée, a responder. Nós não vivemos só de pão, vivemos de quê? Temos sede de quê? O que é que nos sacia verdadeiramente? O que é que sacia verdadeiramente a nossa fome e a nossa sede? Jesus relança a questão da nossa humanidade e de como nos tornamos humanos, como é que cada um de nós se torna humano, porque, de facto, Jesus mostra, na forma como vive a sua crise, que a vida é chamada a ser mais. Nem a fome, nem a sede são razões suficientes para não sermos humanos: ai, eu tenho fome, só vou pensar em pão; eu só vou olhar para isto, só vou olhar para o trabalho; só vou olhar para conquistar dinheiro; só vou olhar para os bens; só vou.... Olha, não há nenhuma razão para desistirmos de sermos humanos. O tentador tenta fechar o horizonte. Jesus abre continuamente o horizonte - «nem só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus». Não se trata claramente em Jesus de opor a Palavra de Deus ao pão. Não. Jesus tem claramente consciência das necessidades materiais da vida. Ele, por exemplo, faz o milagre da multiplicação dos pães, porque vem ao encontro da fome concreta, da subsistência, da realidade. Mas a fome e as necessidades materiais do homem não podem deixar de ser investidas pelo Espírito. E, nesse sentido, a Eucaristia é a chave, porque Jesus pega no pão e diz: - Este pão já não é só pão. Este pão é o meu corpo e é o meu dom, é o meu corpo entregue por vós. E pega no vinho e diz: - Este vinho já não é só vinho, é o meu dom, é a minha oferta, é o meu sacrifício oferto inteiramente por vós. E, de facto, isto é para nós a grande lição desta crise que nos acompanha, porque, se o nosso pão for só pão, se o que possuímos for só aquilo, for só a materialidade, será sempre pouco. Se nós aprendermos a dar um sentido espiritual, a fazer do material o dom, o dom, a oferta radical de nós próprios, a nossa entrega à maneira de Jesus, a nossa Eucaristia, então, verdadeiramente, nós próprios nos vamos tornar pão para saciar muitas fomes. Esta crise de Jesus é uma crise importante porque mede a fecundidade da nossa vida. Nós, de facto, podemos olhar para a nossa vida e ver só coisas, ver só coisas. Temos a casa cheia de tralha, temos…, temos isto e aquilo e não sentimos que essas coisas sejam capazes de brilhar em termos espirituais, possam alimentar outras fomes, possam ser expressão de um dom, não apenas expressão de uma insegurança, expressão do medo, expressão de uma ambição, expressão duma avareza, mas serem expressão de um dom. E isto é, de facto, um grande trabalho interior, fazer do pão, fazer do que eu possuo, expressão da minha dádiva, expressão da minha oferta. 

Depois temos a outra crise de Jesus, diz-nos o texto evangélico: «Então o tentador conduziu-O à cidade santa e, colocando-O sobre o pináculo do templo, disse-Lhe: se Tu és o Filho de Deus, lança-te daqui abaixo, pois está escrito, darás a teu respeito ordens aos seus anjos, e eles suster-te-ão nas suas mãos, para que os teus pés não se firam nalguma pedra». E respondeu Jesus: «também está escrito - não tentarás o Senhor teu Deus». No seu livro Jesus de Nazaré, Bento XVI escreveu que esta tentação é a mais difícil de compreender. Esta crise é a crise mais difícil, porque há um elemento estranho e paradoxal na estratégia do tentador: é que ele surge aqui vestido ou disfarçado, como se fosse um fino teólogo, argumentando, tentando, procurando meter Jesus em crise, usando para tal, como isca, a própria Sagrada Escritura. E o tentador cita o Salmo 91: «Ele dará ordens aos seus anjos e eles te agarrarão nas suas mãos, para que os teus pés não se firam nalguma pedra». Jesus é tentado, então, com a Palavra de Deus e com o seu sentido último. Mas, o verdadeiro sentido da Palavra de Deus não é aquele que aparece implícito na crise que o tentador quer instaurar, mas é aquele que aparece na resposta de Jesus: «Não tentarás o Senhor teu Deus». É interessante nós lermos a frase toda (Jesus só diz metade) de Deuteronómio 6,16: «Não tentarás o Senhor, teu Deus, como o tentaste em Massa». O que é que aconteceu em Massa? Aconteceu a rebelião da sede. O povo de Deus estava a atravessar o deserto, não encontrava a água e estava a arder de sede. Então virou-se contra Moisés e contra Deus, exigindo: «dá-nos água para beber». E voltando-se para o Senhor, para o colocar à prova, disse: «Deus está ou não no meio de nós? O Senhor está ou não no meio de nós?». É como se Deus tivesse de se submeter às condições que nós consideramos necessárias para podermos acreditar n’Ele. Se Ele não cumpre a nossa ideia ou a nossa idealização de proteção e de segurança, a nossa fé soçobra, tudo vacila. Se ele não satisfaz imediatamente as nossas sedes, ficamos logo atordoados, sem saber se ele de facto está no meio de nós ou não. Ora, Jesus diz: «Não tentarás o Senhor teu Deus». E ensina-nos, nesta crise e talvez na crise por excelência, que é a hora da cruz, que nós tateamos o silêncio de Deus, o silêncio de Deus. Não há fé que não atravesse esse ordálio do fogo, que é o silêncio de Deus, que é o vazio, que é o vazio, que é esse grito: « Onde estás? Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?». Mas sabendo que esse grito é uma oração, não é um grito de revolta - é uma oração, e que nesse grito há uma entrega confiante da nossa vida nas mãos de Deus. Nós vivemos esta crise da pandemia e muitas vezes nos perguntamos:  - Onde está Deus? Onde está Deus?                                                                                                                        Naquela oração extraordinária que o Papa Francisco celebrou na Praça de São Pedro, essa praça estava vazia e aquele vazio nos espelhava, aquele vazio era a imagem do nosso coração, da praça, do espaço interior de todos nós. E o Papa olhava para a cruz e olhava para o ícone da Virgem, e aqueles olhos rezando o silêncio, eram os nossos olhos, eram, era o olhar de nós todos. E de facto, nesta crise nós sentimos muito o silêncio de Deus, o embaraço desse silêncio. Porque não é fácil, não é fácil. E nas horas de sofrimento, nós temos a tentação de perder a fé, de não acreditar, de duvidar. Porque é como se Deus não correspondesse às nossas expetativas. É como se Deus não viesse ao encontro do que a gente espera. Mas então, Ele não nos protege?  Então, Ele não nos salva? Então, Deus não é a garantia? Então, onde é que Ele está? Então... E, de facto, nós vivemos o primeiro confinamento, duvidando, perguntando onde está? E é interessante - eu lembro-me em Itália, no primeiro confinamento, muita gente telefonava para o gabinete psicológico que as autoridades abriram e uma das questões que apareciam era:  - não consigo rezar, não consigo rezar. Precisamente porque a crise, a crise desta pandemia, da Covid 19, mas também tantas outras crises na nossa vida, como que nos zanga (eu oiço muito, na minha vida de padre, pessoas a dizer: - estou zangado com Deus, tenho dentro de mim uma zanga com Deus). Isto tem a ver com esta tentação que é: para eu crer, Deus tem de funcionar dentro de um determinado quadro. Mas Jesus diz-nos: «Não tentarás o Senhor teu Deus». A Madre Teresa de Calcutá dizia-nos isto: - nós muitas vezes amamos a Deus por aquilo que Ele nos dá, por aquilo que Ele nos oferece. É preciso aprender a amar a Deus por aquilo que Ele nos tira. Uf!… É difícil. É difícil. É duro, mas é o caminho de Jesus, quando Ele na Cruz, Ele que, sendo Filho, se vê naquela experiência radical de abandono e grita: « Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?» E é esse o desafio amar a Deus por aquilo que Ele nos tira. É, sem dúvida, um desafio espiritual, um aprofundamento espiritual. Mas, também aqui nós não estamos sós, estamos rodeados por uma nuvem de testemunhas. E a Madre Teresa de Calcutá oferece-nos um testemunho contemporâneo muito forte deste amor. 

A terceira, a terceira crise pela qual Jesus passa e que nós também passamos, é a etapa culminante do relato das tentações. O tentador conduz Jesus até um monte muito alto, mostrando-lhe todos os reinos do mundo com a sua glória. E diz-lhe: «Tudo isto te darei, se, prostrado, me adorares». E Jesus responde: «Afasta-te, Satanás, pois está escrito, ao Senhor teu Deus adorarás, e só a Ele prestarás culto». É importante aproximar este texto de Mateus 4, das tentações, do texto final do Evangelho de Mateus, no capítulo 28, 16-20, porque temos de facto uma relação, um jogo, entre esta tentação e o texto final do Evangelho de Mateus, que diz o seguinte: «os onze discípulos caminharam para a Galileia, para a montanha que Jesus lhes determinara. Ao vê-l’O, prostraram-se diante d’Ele. Alguns, porém, duvidaram. Jesus, aproximando-se deles, falou: «Todo o poder me foi dado no céu e sobre a terra, ide, portanto, e fazei que todas as nações se tornem discípulos, batizando-as em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo e ensinando-as a observar tudo quanto vos ordenei. E eis que eu estou convosco todos os dias, até o fim dos tempos». O que é que nós temos de comum? Os paralelos são flagrantes em ambas as cenas: na tentação e nesta cena final, nós estamos no monte, o espaço geográfico é o mesmo; em ambas o motivo é o poder – o diabo diz : « dar-te-ei todo o poder»,  e Jesus dá, investe de poder os seus discípulos; um é o reino da doxa, o reino do mundo e outro é o poder de Deus, o poder do amor que Deus nos dá; temos ainda um outro tópico em comum, que é o tema da adoração -  os discípulos ajoelham-se diante de Jesus,  mesmo se alguns ainda duvidam, e o demónio quer que Jesus se ajoelhe diante dele. Temos o poder do diabo e temos o poder do Ressuscitado. O poder do diabo é o poder da glória vã, da glória imediata, da glória materialista, apenas da glória da vaidade, da glória do orgulho. O poder de Jesus é o poder de uma ressurreição que acontece no mistério pascal, que acontece no mistério da Cruz e por isso é um poder que não se entende sem a dádiva, sem o radical despojamento, sem oferta extrema de si. É um poder que não se entende sem aquilo que o hino da Carta aos Filipenses nos diz:  Ele, que era de condição divina, não se valeu da sua igualdade com Deus, mas esvaziou-se a Si mesmo, tornando-se igual aos homens. O poder do tentador é o poder dos ídolos, de um ídolo, qualquer que ele seja, torna a fazer do domínio e da posse a fonte da felicidade. Porque eu vou ser feliz, se tiver, eu vou ser feliz se comprar, eu vou ser feliz se possuir, eu vou ser feliz se mandar, eu vou ser feliz se tiver poder. E assim se reduz o horizonte da própria existência. Um cristão tem sempre de se perguntar duas coisas, uma: o que é que eu faço do poder que tenho? Do poder que me foi confiado? O que é que eu faço disso? Mas depois também outra pergunta: o que é que o poder tem feito de mim? Porque há um risco enorme na tentação de poder, que é um risco que nos afasta do mistério da cruz, que é o risco do narcisismo, o risco da autorreferencialidade. E nós não podemos esquecer que Jesus recusou ajoelhar-se diante do tentador, mas ajoelhou-se diante dos discípulos para lhes lavar os pés. Jesus teve a liberdade de dizer não ao poder e às suas tentações, às suas crises, para poder dizer: «Nós que fomos chamados, adoraremos apenas o Pai». E essa adoração exclusiva ao Pai dá-nos competência, dá-nos capacidade para dizer: - eu estou aqui para servir.                                                  O Papa Francisco tem razão quando diz que  a maior crise não é desta pandemia e, nesta rentrée, é importante sentirmos isso: é Jesus que nos abana; é Jesus que nos abala; é Jesus que provoca uma crise dentro de nós; é Jesus que nos abre a uma nova visão; é Jesus que nos faz sair das nossas visões esclerosadas, das nossas visões autocentradas. O Papa escreveu num dos seus discursos: - Nós estamos assustados com a crise e esquecemo-nos que o Evangelho é o primeiro a colocar-nos em crise. É o Evangelho que nos coloca em crise. Mas se reencontrarmos a coragem e a humildade de dizer, em voz alta, que o tempo da crise é um tempo do Espírito, então, mesmo no meio da experiência da escuridão, da fraqueza, da fragilidade, das contradições, da confusão, já não nos sentiremos esmagados, mas conservaremos sempre a confiança íntima de que as coisas estão prestes a assumir uma forma nova, e de que Deus nos dará a força e os meios para sair das situações de crise. «Quando sou fraco, então é que sou forte». Aquilo que o Papa nos diz sobre o nosso caminho espiritual é que não deixemos de rezar. Não, não deixemos de fazer verdadeiramente um caminho espiritual. Se nós pensarmos - lembro-me de um poema de Tagore que dizia isso - se nós pensarmos que a adoração é uma coisa que nós podemos fazer num intervalo e depois vamos fazer as outras coisas, então ainda não percebemos que ela nos acompanha do princípio até ao fim. E por isso, nós temos de sentir que todas as coisas têm uma unidade, são atravessadas pelo mesmo fio condutor - é do caminho espiritual. Não, não separemos o trabalho da oração, a vida exterior da vida interior, o sagrado do profano, mas sintamos que é tudo uma unidade e que essa unidade se contempla, verdadeiramente, quando nós somos capazes de fazer de tudo material da nossa oração e quando a oração se torna uma espécie de corrimão contínuo, que acompanha a nossa caminhada do princípio até ao fim. Vivamos este dia, já quase no fim, e o dia de amanhã, como uma procura de pensar estas crises de Jesus, que são as nossas próprias crises, e de procurar viver esta comunhão profunda com Cristo, que é o Mestre da nossa fé, que é Aquele que nos transmite a sabedoria, a sabedoria de viver uma unidade, uma inteireza de vida e de coração.

Comunicação 4 

Santa Teresa de Ávila, numa daquelas suas saídas sapienciais, bem temperadas de humor, dizia que é uma ingenuidade supor que as almas às quais Nosso Senhor se comunica, de uma maneira que se julga privilegiada, estejam asseguradas nisso, de tal modo que nunca mais tenham necessidade de temer ou de chorar os seus pecados. De facto, a nossa vida acontece sempre no aberto. Nós somos chamados a viver o dom de Deus até ao fim, na fragilidade, na vulnerabilidade e assegurados apenas pela confiança. A fé é um caminho de confiança, não é uma instalação automática numa certeza. Na nossa vida podem variar as estações, os tempos, os ritmos, a nossa respiração; podem variar os problemas que nós vivemos, a sua frequência, a sua intensidade, mas as crises vão acompanhar-nos sempre, as crises vão existir sempre. O que é que muda num processo de maturação espiritual e humana? O que muda é a nossa maneira de as enfrentar, a nossa forma de as atravessar. E aí a palavra-chave é a palavra discernimento e o discernimento sobre a crise, não apenas sobre a crise pandémica que ou estamos a viver ou a ultrapassar, mas sobre as crises da nossa vida. O discernimento é muito importante porque as crises não dizem só coisas más, dizem também coisas significativas a nosso respeito, porque as crises contam-nos e, às vezes, contam-nos de uma forma que nos surpreende a nós próprios, porque não sabíamos que era assim, mas as coisas estavam lá. A crise muitas vezes mostra a nossa singularidade, o real impacto da vida em nós, não a ideia, a idealização, mas o real impacto; mostra a nossa realidade submersa e os seus vestígios que durante tanto tempo foram como que ilegíveis. A crise humaniza-nos, humaniza-nos, e é sempre uma oportunidade para mergulhar mais em Deus. Bem, três vezes São Paulo pediu a Deus para afastar o espinho que ele tinha na carne, mas a resposta foi: «Basta-te a minha graça, porque é na fraqueza que a minha força se manifesta». Um grande autor espiritual, um grande mestre dos caminhos da nossa alma, o Mestre Echkart, explica o grande proveito e a utilidade das tentações, das crises, das lutas espirituais. Ele diz: «fazendo-nos travar um interminável combate, fazendo-nos passar à arte da resiliência, mesmo se nos humilham, as crises mantêm-nos centrados em Deus». E é importante percebermos isso, como a nossa fragilidade nos centra, talvez de uma forma mais verdadeira, com outra intensidade, em Deus. Por isso, há que ultrapassar o sonho do perfecionismo, que muitas vezes é a nossa tentação, ou então aquele volume de idealizações que nos acompanham sempre e que, no fundo, se tornam um obstáculo para aceder ao âmago da própria vida da nossa história. Temos de perder a mania das coisas perfeitas, das coisas isentas, das coisas não atravessadas pelo impulso do real e vencer aquele vício, tão nosso, de sobrepor à realidade um cortejo de ficções, de falsas imagens. Há uma passagem de um dos livros de Thomas Merton que, de uma forma muito emocionada e a mim emociona-me sempre ao revisitar este parágrafo, diz o seguinte: «O Cristo que nós descobrimos realmente em nós mesmos, distingue-se daquele que nos esforçamos em vão por admirar e idolatrar em nós. Bem pelo contrário, Ele quis identificar-se com aquilo que nós não amamos em nós próprios, porque Ele tomou sobre si a nossa miséria e o nosso sofrimento, a nossa pobreza e os nossos pecados. Jamais encontraremos paz, se dermos ouvidos à cegueira que nos diz que a crise está superada. Só teremos paz, se formos capazes de escutar e abraçar a dança contraditória que agita o nosso sangue e a história ... é aí que se escutam melhor os ecos da vitória do Ressuscitado.  Perceber que Deus se manifesta naquilo que não amamos em nós, naquilo que para nós, no nosso caminho, na nossa biografia, neste momento da nossa vida, pode constituir um desgosto, alguma coisa que não vemos bem, que não conseguimos integrar. Deus dá-se a ver, manifesta a sua ternura precisamente abraçando a dança contraditória, a convulsão que é a nossa vida. Por isso o apóstolo Paulo dizia que: «de bom grado prefiro gloriar-me nas minhas fraquezas, para que habite em mim a força de Cristo.»

Não se trata, portanto, nesta teologia da crise, que neste retiro aberto estamos a fazer, não se trata de escamotear ou simplesmente de superar, passar à frente esta tempestade, mas é ver como, no interior deste momento tão vulnerável para todos, há uma força, há uma força de Deus, há uma resiliência, há uma insinuação de esperança, há uma incitação que precisamos identificar e valorizar. Porque é precisamente aí que a experiência espiritual se realiza. Não tenhamos ilusões, o grande obstáculo a uma vida de Deus não é a fragilidade ou a fraqueza, mas é sim a dureza e a rigidez; não é a vulnerabilidade e a humilhação, mas o seu contrário; é o orgulho e a nossa autossuficiência; é a autojustificação, o isolamento, a violência, o delírio de poder. Diz um poema antigo do Oriente de Lao-Tsé:

     «Os homens, quando nascem,

     são tenros e frágeis

     A morte torna-os duros e rijos.

     As ervas e as árvores, quando nascem,

     são tenras e frágeis.

     A morte torna-as esquálidas e ressequidas.

     O duro e o rígido conduzem à morte.

     O fraco e o flexível conduzem à vida.»

Por isso a flexibilidade, por isso a fragilidade torna-nos melhor mensageiros, credíveis, da vida. A força de que precisamos não é nossa, não é, porventura, aquela que idealizámos tanto, a força de que precisamos é aquela que nos vem de Cristo, que abraça por inteiro a nossa humanidade no seu dramatismo, na sua inconclusão, no seu enigma, no seu dilema, na sua incompletude. Ele abraça e explica-nos que é nas suas feridas que nós encontramos a nossa cura.

Ontem, na reflexão que propusemos, nós falávamos das tentações ou das crises de Cristo e falamos daquelas três grandes tentações:

Alimentamo-nos de quê?; Que condições nós pomos a Deus para acreditar n’Ele?; E o que fazemos do poder? E o que é que o poder fez de nós?

Aí vimos uma espécie de território que ajuda a enxergar melhor, a tatear melhor, muitas vezes, o que está por trás das turbulências que nós experimentamos. Há um livro de T.S. Eliot, Crime na Catedral, que é uma peça de teatro que conta a história do arcebispo mártir Thomas Becket. Thomas Becket era um homem de confiança do rei Henrique II, que o tornou, inclusive, chanceler do reino. Mas depois, quando o rei o nomeou arcebispo de Cantuária, as relações entre os dois complicaram-se. Porquê? Porque o rei queria que o arcebispo se tornasse um vassalo e submetesse a liberdade espiritual, o poder espiritual, ao poder temporal. É claro, o rei perseguiu o arcebispo e ele esteve uns anos exilado em Paris, com a cumplicidade do Papa. E depois, há um momento, em que ele decide regressar à sua Catedral de Cantuária. E é essa a história que T.S. Eliot desenvolve na sua peça teatral. É muito belo! Nós vemos o arcebispo na catedral vazia e ele vai sendo visitado pelas várias tentações, pelas várias crises. E nós vemo-lo ser tentado pelas três crises de que ontem falamos e que são narradas no Evangelho. Mas quando ele pensava que, ancorado em Jesus, já tinha respondido a todas as crises, aparece ainda um quarto tentador. E este quarto tentador, diz ele, é o mais terrível de todos, porque ele é aquele que nos tenta com os nossos próprios desejos. E, de facto, Thomas Becket diz isto: «Quem és tu que me tentas com os meus próprios desejos? Outros vieram, temporais tentadores, oferecendo o poderio e o prazer por um preço palpável. Tu que me ofereces? Tu que me pedes? Os outros ofereceram-me bens tangíveis, sem valor, mas tangíveis. Tu ofereces somente sonhos de perdição». E a pergunta final: «Não há então um caminho? Não há então um remédio para a agonia da minha alma? Eu estou condenado à danação do orgulho?» Porque o que é que faz o quarto tentador? É aquele que vem minar a confiança e vem dizer: «Ah, tu acreditas, tu fazes isso tudo, mas fazes tudo isso por vaidade. A tua fé é uma forma de vaidade, é uma forma de narcisismo. É porque tu tens medo e é porque tu não queres, não queres aceitar que vais ser vencido, que no fundo atiras para Deus a tua frustração». E esta é, de facto, a maior tentação, aquela que mina a própria fé, aquela que corrói a nossa confiança. A filósofa Simone Veil dizia que a única verdadeira provação para o homem é sentir-se abandonado a si mesmo, é sentir o nada. E a quarta tentação é isso, a quarta crise é sentir o nada. E aí os alicerces são assaltados e há como que uma implosão interior que acontece por um niilismo. Então é isto; então, ninguém me segura; então, ... E a tentação da descrença vai corroendo o nosso coração. Não há nada nem ninguém no qual nós podemos confiar. «Será que podes confiar em Deus?» - segreda o quarto tentador. Esta é de facto uma crise e uma crise que em tantos períodos da nossa vida nos assalta. Eu penso que tantas situações traumáticas de dor, de sofrimento, de lutos, sobretudo, nos fazem mergulhar nesta crise profunda do niilismo, que é achar que não há um Deus que nos salva. Eu lembro-me de um dos contos mais tristes que conheço, que é um conto do Ernest Hemingway, que se chama Um lugar limpo e bem iluminado. É a história de um barman...a história de um barman. Daqueles bares que permanecem abertos a noite inteira na cidade e onde os insones, os infelizes, os que não têm abrigo vão passar umas horas a enganar o seu próprio desabrigo, no meio da noite escura. Ele diz : «Eu gosto, eu gosto de estar aqui, na companhia daqueles que não têm nenhuma vontade de voltar para casa, na companhia daqueles que precisam de uma luz para a sua noite. E quando, de madrugada, todos se vão embora e ele fica sozinho a limpar o balcão, ele faz uma das paráfrases mais impressionantes do Pai-Nosso. Ele diz assim: «Nada nosso que estais no nada, nada seja o teu nome, nada o teu reino, nada a tua vontade, assim no nada como no nada. Dá-nos este nada como o pão de cada dia, e não nos dês nada, como também a ninguém damos nada. E não nos deixes no nada de nada, mas livra-nos do nada». É uma paráfrase incrível, incrível, do Pai-Nosso, mas, sem nos darmos conta, tantas vezes é a versão do Pai-Nosso que, tropeçando aos tropeções, cambaleando aos ziguezagues pela vida fora, nós vamos rezando. Deus, o Deus bíblico, o Deus da revelação, o Deus de Jesus de Nazaré, é o contrário, é um Deus que está. E na única oração que Jesus nos ensinou a rezar, Ele é bem explícito: «Pai! Pai nosso que estais no céu». E esta é a convicção mais espantosa que interrompe todas as tentações e todas as crises de niilismo.

O Deus bíblico, o Deus de Jesus de Nazaré, o Deus da nossa fé, é aquele Deus que se anuncia, que se revela no Êxodo, com estas palavras: «Eu vi. Eu vi a miséria do meu povo que está no Egito. Ouvi o seu clamor por causa dos seus opressores, pois eu conheço as suas angústias. Por isso desci a libertá-lo das mãos dos egípcios e para fazê-lo subir daquela terra a uma terra boa e vasta, terra que mana leite e mel. Agora, o clamor dos filhos de Israel chegou até mim, e também vejo a opressão com que os egípcios os estão oprimindo». É interessante que a revelação bíblica não usa conceitos, não usa categorias filosóficas para falar de Deus e da experiência que nós realizamos de Deus. A revelação bíblica é sobretudo narrativa, conta histórias. Como é que eu senti? Como é que eu vi? Como é que eu compreendi a manifestação de Deus? E esta passagem do Êxodo resume bem o que o povo experimentou. É uma síntese do seu caminho. Deus viu. Deus desceu até nós. Deus interveio em nosso favor. Deus tocou a nossa situação de escravidão. Deus libertou-nos. E este lado experimental, laboratorial, tátil da fé é, de facto, o antídoto contra as nossas crises do niilismo -  fazer memória. E isso é muito importante também no relançamento, nesta rentrée que estamos a preparar. É importante levar como legado para este ano que começa, a memória do amor de Deus, das suas ternuras, daquilo que nós podemos dizer na primeira pessoa do singular dizer: eu senti, eu vivi, eu toquei, eu conheci, eu compreendi. E isso é um património para levar no nosso alforge de peregrinos. Uma dessas imagens narrativas inesquecíveis é aquela de um dos salmos mais conhecidos e mais rezados, o Salmo 23, que diz:

     «O Senhor é o meu pastor: nada me falta.

     Em verdes pastos me faz descansar e conduz-me

     às águas refrescantes.

     Reconforta a minha alma e guia-me por caminhos retos,

     por amor do seu nome.

     Ainda que tenha de atravessar vales tenebrosos,

     de nenhum mal terei medo, porque tu, Senhor, estás comigo.

     A tua vara e o teu cajado dão-me confiança.

     Preparas a mesa para mim à vista dos meus inimigos.

    Unges com óleo a minha cabeça,

     a minha taça transborda.

     Na verdade a tua bondade e o teu amor hão de acompanhar-me

     todos os dias da minha vida.

     E habitarei na casa do Senhor, para todo o sempre.»

Neste salmo, dizem os exegetas judeus, os rabinos, que está tudo certo, mas há um problema, e um problema que desencadeou uma importante discussão teológica, para ver se o salmo não tinha ido demasiado longe e, de certa forma, não punha em causa a integridade de Deus, a omnipotência de Deus. Isto, porque no versículo quatro do Salmo 23 se diz: «ainda que atravesse vales tenebrosos, ou ainda que passe pelo inferno da morte, de nenhum mal terei medo, porque Tu estás comigo». Tu estás comigo. O que é que se está aqui a dizer? Os lugares tenebrosos são os infernos, são o território da treva, são as descidas à escuridão, são a inclinação do exílio e da morte. E o salmista diz: «Não temo isso, porque Tu estás comigo. Tu estás comigo?! Será possível imaginar que Deus se alaga na água noturna dos nossos sítios sem esperança? Será que Deus desce aí, ao impensável de Deus?! Só a desmesura, só as cedências do amor, de facto, nos ajudam a perceber o mistério de Deus, porque Ele acompanha até o fim a nossa história. Deus está disposto a ser fiel até ao fim, nada o limita. Por isso nós vemos na imagem, nas imagens da ressurreição, que descrevem aquilo que acontece no Sábado Santo - Jesus que desce na solidão, no silêncio de Sábado Santo, no silêncio da Cruz da Sua morte - Jesus desce até os infernos e vai buscar pela mão os nossos primeiros pais, vai buscar pela mão Adão e Eva; ou então aquilo que se recorda em Mateus 5, 28 «Ele foi contado entre os malfeitores». De facto, Jesus não tem limites, não, não tem, não tem barreiras. Ele está disposto a tudo aquilo que é a última palavra que Ele diz aos discípulos e nos diz a nós, no Evangelho de São Mateus: «Eu estarei convosco todos os dias, até o fim dos tempos». Penso naquela história de um romance de Elie Wiesel que, como sabemos, foi Prémio Nobel da Paz, um escritor judaico que esteve, viveu num campo de concentração. Toda a sua família morreu e ele teve de fazer todo um caminho de reconciliação, daquela memória terrível. E ele conta, num dos seus romances, o que estava a acontecer num campo de concentração, que havia um pelotão de fuzilamento e estavam ali aqueles inocentes para serem executados e havia, porque era essa a crueldade do sistema, havia outros a assistir. Viam os seus familiares serem executados e ouvia-se uma voz sussurrada: «Mas onde está Deus?». E outra voz que respondeu: «Deus está ali, entre os fuzilados». E esta história conta, de facto, alguma coisa de fundamental na perceção, na compreensão, na experiência de Deus, que nós fomos chamados a realizar. Deus está, Deus está! E não é, e não são as crises, as tempestades que afastam Deus. Nós somos chamados: a redescobrir como Deus está; a redescobrir a Sua presença; a redescobrir o sopro da brisa no meio do trovão, como o fez o profeta Elias. É interessante aquilo a que um filósofo italiano, Maurizio Ferraris, chamou a atenção num dos seus livros, muito irónicos - O título é: A ontologia do Telemóvel. É claro, o telemóvel não tem ontologia, mas é uma análise das nossas práticas do quotidiano e desta grande mudança epocal que a tecnologia introduz na nossa vida. E ele diz, com razão, que quando nós utilizávamos o telefone fixo, a nossa pergunta era «está lá?», sabendo que se a pessoa atendia ao telefone é porque estava lá. E havia essa certeza do sítio onde a pessoa estava: «Alô, está lá?». Hoje a pergunta que nós fazemos quando ligamos para alguém, a pergunta mais frequente é: «Onde estás?», «Onde estás?». E essa pergunta é muito sintomática, porque a verdade é que nós deixamos de saber onde os outros estão. Porque vivemos naquilo que Zygmunt Bauman chama a sociedade líquida, a modernidade líquida. E, de facto, nós andamos num fluxo constante. A nossa vida é uma cidade que não dorme. O tempo, que é outra forma de espaço, outra forma de habitação, o tempo foge-nos das mãos. Nunca temos tempo, nós que somos senhores do tempo, não temos tempo para nada. E a verdade é que andamos num trânsito que nunca pára. Blaise Pascal dizia com sabedoria que toda a infelicidade humana provém de uma única coisa, não sabermos estar num lugar. E, de facto, olhando para a cartografia das vidas contemporâneas, dos nossos quotidianos, nós percebemos que é muito assim: nós queremos meter o Rossio na Betesga; nós queremos viver sete vidas num só dia; nós queremos que o dia não tenha 24 horas apenas - precisava de um dia de 72 horas. Nós andamos ansiosos, dispersos; todos os tempos se dilatam; as solicitações aumentam; tudo o que nos chega é para ontem e damos por nós neste ciclo, que é uma espécie de prisão sôfrega da tensão da atividade, do consumo. Como o coelho da Alice, nós estamos sempre atrasados, sempre atrasados. «Despacha-te, despacha-te», é a voz do comando que grita dentro de nós. E muitas vezes, quando olhamos, no meio disto tudo, para a nossa vida, o que vemos também é alguma coisa do qual preferimos fugir, porque vemos um vazio que não conseguimos abraçar. E, por isso, também muito do ativismo, que é uma das patologias dos nossos quotidianos, também nascem desta insegurança nossa; desta incapacidade de abraçar a vida tal como ela é ; desta incapacidade de lidar, de dialogar com o vazio e com o silêncio que nos amedronta.

A palavra Deus em hebraico é Iavé. As possibilidades de tradução desta palavra são: Eu sou para vós, Eu estou para vós. Eu estou para vós! Numa paráfrase belíssima, que nos aparece na Carta aos Hebreus,  Heb 13, 5 diz o seguinte: «O próprio Deus nos diz, não te deixarei, nem te abandonarei». Não te deixarei, não te abandonarei, e ressoam nos nossos ouvidos e no nosso coração as palavras de Jesus: «Eu estarei sempre convosco até o fim dos tempos». O nosso Deus é um Deus que está, é um Deus que está. Espiritualmente é uma ideia desastrosa a ideia que se instalou por uma catequese um bocado apressada, ou por uma visão muito redutora da experiência cristã que diz assim: quando pecamos, Deus afasta-se de nós, Deus deixa de estar connosco. Acontece como que um eclipse de Deus. Ora, isto pode lá ser! O que acontece é o contrário disto, Deus agarra-se ao nosso pescoço; Deus não nos deixa nunca; Deus aumenta o seu amor, a sua caridade, a sua misericórdia, a sua compaixão por nós; Deus derrama a sua ternura; Deus suplica que abramos os olhos, que caiamos em nós e nos recordemos quem somos, recobrando as forças, despertando, acordando. É interessante na parábola do filho pródigo, o pai vê o filho ao longe. E por que é que vê o filho ao longe? Quantas vezes o pai passou por ali na esperança daquele dia em que o seu filho, em que o seu filho voltaria?! Por isso ele não julga. Ele não o repreende. Ele agarra-se ao pescoço como alguém que o ama absolutamente. E diz a parábola em Lucas, Lc 15, 20: «O pai abraça-o, beija-o, cobrindo-o de beijos, cobrindo-o de beijos. E esta é a experiência espiritual que nós fazemos?

«Pai nosso, que estais nos céus». Nós temos de entender o que são estes céus, explica um importante autor antigo, Orígenes: «Quando se diz que o Pai dos santos está nos céus, não podemos pensar que ele esteja circunscrito a uma figura corpórea e habite realmente nos céus. Se assim fosse, os céus seriam maiores do que Deus. Porque se Deus mora nos céus, então os céus têm de ser maiores para conter Deus. E Deus seria menor que os céus. Deve-se acreditar antes, explica Orígenes, que tudo é por ele circunscrito e tudo nele está contido com o inefável poder da sua divindade». O próprio céu é Deus, e Deus é aquele que nos cobre e aquele que nos acompanha é aquele que está, é aquele que está. Mesmo quando duvidamos, quando hesitamos, quando as feridas ou as perplexidades da vida nos fazem colocar perguntas mais dilemáticas, o céu de Deus permanece sempre. Por isso os místicos cristãos diziam o seguinte: «Pára, pára, para onde estás a correr? O céu está em ti, O céu está dentro de ti. Procurar a Deus noutro lugar é impossível. Nunca o irás alcançar», ou então, «Pára, para onde estás a correr? O céu? O céu está em ti». No interior da revelação bíblica, que é também a reflexão cristã, nós temos a afirmação inequívoca de Deus como Criador. Ao longo da história, houve tantas tentações de falar de dois princípios, de perceber que Deus e o demónio ou de tentar que Deus e o demónio eram a mesma coisa, enfim, uma série de heresias e filosofias que tentavam, de certa forma, recusar o princípio fundamental da revelação bíblica de que Deus é o Criador. Deus é o Criador e aquele que cria, recria-nos continuamente. E o olhar de Deus à sua criação, é de facto, um olhar de amor, aquele que Deus sempre nos dedica. O Livro da Sabedoria, no capítulo 11, diz-nos assim: «Tu amas tudo quanto existe e não detestas nada do que fizeste, pois se odiasses alguma coisa, não a terias criado. E como subsistiria uma coisa se tu a não quisesses? Ou como se conservaria se não tivesse sido chamada por ti? Mas tu poupas a todos, porque todos são teus. Ó Senhor, que amas a Vida!». Lendo a Escritura nós percebemos sobretudo isso, o perfume deste amor de Deus, que continuamente, em todas as situações, mesmo nas situações mais graves, mais difíceis, mais cegas, Deus derrama o seu amor, a sua misericórdia e oferece-nos sempre a possibilidade de um recomeço. É isso que o Antigo Testamento nos conta, e é isso que nós vemos na obra de redenção que Jesus Cristo faz, que é verdadeiramente uma nova criação, como São Paulo o explica. Faz-nos bem pensar na história de Abel e Caim, que são os dois primeiros irmãos, é a história da fraternidade, mas é também a história do primeiro fratricídio, porque Caim mata Abel. E esse fratricídio, por um lado, lembra-nos uma coisa importante, é que a fraternidade não é apenas uma consequência do sangue. A fraternidade é uma decisão ética, eu torno-me irmão do outro. O sangue não é suficiente para evitar os múltiplos fratricídios, mas tem de ser uma vontade, tem de ser uma decisão do próprio, do próprio homem. Ora, há um texto do livro do Génesis, no capítulo quarto, que nos conta aquele momento em que Caim, cheio de ciúmes, cheio de inveja e cheio de raiva, alimenta no seu coração a possibilidade de matar o seu irmão. E o texto diz-nos assim: «Ao fim de algum tempo, Caim apresentou ao Senhor uma oferta dos frutos da terra. Por seu lado, Abel ofereceu primogénitos do seu rebanho e as suas gorduras. O Senhor olhou com agrado para Abel e para a sua oferta, mas não olhou com agrado para Caim, nem para a sua oferta. Caim ficou muito irritado e o rosto transtornou-se. O Senhor disse a Caim: “-Porque estás zangado e de rosto abatido? Se procederes bem, certamente voltarás a erguer o rosto. Se procederes mal, o pecado deitar-se-á à tua porta e andará a espreitar-te. Cuidado! Ele tem muita inclinação para ti, mas tu podes dominá-lo”». Tu podes dominá-lo. É interessante, num romance clássico de John Steinbeck, A Leste do Paraíso, há páginas inesquecíveis dedicadas a discutir esta palavra “timeshel”, que quer dizer “tu podes”. E em relação ao mal, a Bíblia desenvolve sempre esta perspetiva: com a ajuda de Deus, o homem pode superar o mal, o homem pode superar a crise, o homem pode atravessar a tempestade. Isto é, nós, nós não estamos capturados. Nós não estamos destinados a soçobrar, a sucumbir. Mas este “timeshel” é a palavra que, em cada situação dilemática, Deus segreda ao nosso coração. Outra história bíblica interessante do Antigo Testamento é aquela de José e dos seus irmãos. Todos nós nos lembramos como é, de novo, uma história de fraternidade não resolvida, não positivamente concretizada. Os irmãos decidem vender José por ciúmes, por rivalidade, por dificuldade em acolhê-lo. Só que a história deu as voltas que nós conhecemos. E por fim, é já José como grande cooperador do faraó do Egito, que acolhe e salva da fome os seus irmãos no Egito. E é interessante aquilo que o próprio José diz no livro do Génesis, Gn 50: «Premeditastes contra mim o mal, mas Deus aproveitou-o para um bem, a fim de que acontecesse o que hoje aconteceu e um povo numeroso fosse salvo». Tantas vezes na história, na história do mundo, na história das nossas sociedades, na nossa própria história, as crises são uma oportunidade para tirar um bem, para tirar um bem. E era tão importante que desta crise pandémica e pós pandémica, nós pudéssemos sair não apenas para retornar àquilo que tínhamos, àquilo que éramos, àquilo que fazíamos, mas para partir daqui, para tirar um bem. Se nós fôssemos como sociedades e nós, pessoalmente, fôssemos capazes de dar um passo em frente, de aprender alguma coisa, de estarmos motivados para uma reconstrução com outra qualidade; se nós fôssemos capazes de nos comprometermos com uma qualificação fraterna, amigável, da existência, teria valido a pena toda esta travessia. Lembro-me daquilo que vem escrito no Diário de Etty Hillesum, quando ela tenta perceber como é que aquela experiência do campo de concentração pode ser útil a uma humanidade do futuro, ela diz: «Como é que é possível que esta extensão de urzal, cercada por arame farpado, onde tanto o destino e sofrimento humanos chegam e partem, permaneça uma recordação quase carinhosa na minha memória. Por que motivo o meu espírito não se obscureceu lá, mas antes pelo contrário, ficou mais claro e lúcido. Foi lá, entre as barracas, repletas de gente agitada e perseguida, que achei a confirmação para o meu amor pela vida». E no fundo, é isto que nós podemos experimentar. Se esta crise nos ajuda a este processo de confirmação pelo nosso amor pela vida. Em certas etapas, nós podemos hesitar se Deus está ou não, mas é importante perceber que Ele está. É interessante ver, por exemplo, no Evangelho de Mateus nós temos duas vezes, duas ocorrências do verbo livrar: uma é o Pai Nosso -  «mas livrai nos do mal» Mt 6, 13; a outra é na cena da Cruz - Mt 27, 43 - quando os que passam pela Cruz e zombam de Jesus dizem: «Ele confiou em Deus, Deus que o livre agora, se é que Lhe tem amor». São as duas ocorrências e é interessante aproximá-las, perceber o diálogo que elas estabelecem entre si. De facto, na Cruz, aparentemente, Deus não livra o seu Filho, porque Jesus acaba por morrer na Cruz. E Jesus acaba com aquele grito: «Pai, Pai, porque me abandonaste?». Então o Pai não o livrou. E Jesus é objeto do gozo, da zombaria cáustica daqueles que passam. Mas esse momento enigmático, em que parece que a vida e a fé se suspenderam num abismo de silêncio, é para nós a certeza de que Deus não abandonou o Filho, a certeza que, depois nós percebemos, três dias passados acontecerá na força da ressurreição. O verbo livrar é, assim, um verbo que nos pede para fazer o caminho pascal, o caminho da morte e da ressurreição. O Senhor livra-nos ou não do mal? Não tenhamos dúvidas que nos livra, mesmo que, por vezes, de um modo, que a nós, como ao próprio Jesus, aparece como um modo enigmático e não imediatamente apreendido. Mas no cimo da Cruz nós percebemos isto, nós percebemos que o grito, que a crise, que a travessia noturna, se transformam em prece de entrega e em limiar de vida nova, em limiar de ressurreição, em limiar de uma plenitude que o mundo ainda não tinha conhecido. Tenhamos confiança nesta presença de Deus. E ao relançarmos este ano, e ao recomeçar um ano a sentir esta experiência do aberto, que o possamos fazer não com incerteza - e todos com esta pandemia, percebemos que há uma imprevisibilidade muito grande no ar e que acaba por ser alguma coisa que nos maça, e é um espinho na nossa carne. Que não seja a voz da imprevisibilidade, da incerteza, do temor a falarem mais forte no nosso coração. Que o mais forte seja esta certeza de que Deus está, de que Deus está e que essa certeza nos ajuda a vencer toda a dúvida e toda a tentação do niilismo.

Comunicação 5 

Queria no final deste nosso percurso, que oferece pistas para este recomeço, pensar convosco o tema das bem-aventuranças. Nós somos o povo das bem-aventuranças. O que é que são as bem-aventuranças? Que desafios elas contêm para nós? O que é que elas nos ensinam? Como nos mobilizam para o compromisso, para a aliança com o presente, com o futuro? E como é que a figura de Maria, também ela é uma mestra do percurso das bem-aventuranças, de um percurso existencialmente comprometido? É interessante pensarmos no texto das bem-aventuranças. Vamos lê-lo daqui a pouco. Evidentemente, o evangelista, na redação desse episódio, teve em conta o paralelo com a cena de Moisés no cimo do Monte Sinai: aí temos Moisés e Jesus, e temos como que a antiga Lei e a nova Lei, a Antiga Aliança e a Nova Aliança. Mas a verdade é que as Bem-aventuranças não são apenas uma lei, eu diria, as Bem-aventuranças são, antes de tudo, um configurador de identidades, um marcador de identidades, porque é verdade que elas contêm um apelo projetivo: Bem-aventurados os pobres em espírito, porque será deles o reino de Deus. Há sempre um jogo entre o agora e o depois, entre o presente e o futuro. Mas é importante valorizar essa tensão, valorizando tanto aquilo que será, digamos, o horizonte escatológico, como se diz em termos teológicos, mas é importante também valorizar o aqui e o agora, o chamado existencial presente que as bem-aventuranças costuram na nossa vida. Não é apenas o que virá depois, é o que fermenta em nós, o que germina, o que borbulha, o que pulsa em nós, desde este momento. As bem-aventuranças são, se quisermos, o mais precioso e fiel autorretrato de Jesus. Nestas palavras nós, antes de tudo, vemos o rosto de Jesus. É como se cada bem-aventurança nos oferecesse um traço, uma linha da fisionomia do Senhor. Porque foi assim que O vimos e é assim que O vemos: pobre em espírito; manso e misericordioso, sedento e pacífico; faminto de justiça e com capacidade de abraçar a todos; com a competência da alegria do louvor - bendizer ao Pai por aquele que, por aquilo que faz nos íntimos; nós O vimos puro de coração, o contrário de todo o cinismo, de todo o calculismo, de todas as manobras de defesa da autossuficiência; vimo-l’O transparente a cada momento; conhecemo-l’O como Aquele que derruba os muros da inimizade e constrói a paz; testemunhamo-l’O compassivo ao encontro dos feridos, dos caídos, dos pobres, dos doentes, dos pecadores, dos marginalizados; vimo-l’O deixar as 99 ovelhas no curral e partir em procura da ovelha perdida, mas não só, quando a encontra, transporta-a aos ombros até casa; avistamo-l’O a caminhar sozinho com os doze ou no meio da multidão, sem se sobrepor, acalmando as tempestades do lago e aquelas tempestades do coração humano; tomando como Seu programa aquela frase que vem no cântico do servo do profeta Isaías: «Ele não quebrará a cana fendida nem apagará a torcida que fumega». E, de facto, ele não partiu a cana fendida, nem apagou a torcida que fumega; nós seguimo-l’O a correr ao encontro de todos os filhos pródigos, recebendo-os na alegria e introduzindo-os na festa do perdão; soubemos d’Ele sedento, sentado no poço, a pedir de beber à mulher samaritana; e cheio de uma fome ardente que o mundo não saciava, Ele pedia aos seus discípulos que fossem à frente d’Ele preparar aquela sala no piso de cima, para celebrar a última Páscoa com os seus discípulos; vimo-l’O a chorar sobre Jerusalém e sobre a morte de um amigo; assistimos ao Seu sofrimento quando Se oferecia a Si mesmo em sacrifício «Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?», entregando-Se assim de forma radical, por puro amor. Por isso as bem-aventuranças não, não são apenas um programa de ação, são uma chave que nos ajudam a interpretar o rosto de Jesus, nos ajudam a tocar de perto aquilo que, como diz a 1ª Epístola de São João, «Nós vimos com os nossos olhos, nós contemplamos e as nossas mãos tocaram acerca do Verbo da vida». Vejamos o texto do Evangelho de Mateus, Mt 5, 3-12: «Vendo as multidões, subiu a montanha. Ao sentar-se, aproximaram-se d’Ele os discípulos e ensinava-os, dizendo ‘Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o reino dos céus. Felizes os mansos, porque herdarão a terra. Felizes os aflitos porque serão consolados. Felizes os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados. Felizes os misericordiosos porque alcançarão misericórdia. Felizes os puros de coração, porque verão a Deus. Felizes os que promovem a paz, porque serão chamados filhos de Deus. Felizes os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus. Felizes sereis. Quando vos injuriarem e perseguirem, e, mentindo, disserem todo o mal contra vós por causa de mim, alegrai-vos e regozijai-vos, porque será grande nos céus a vossa recompensa. Pois foi assim que perseguiram os profetas que vieram antes de vós’». Isto o que ouvimos, nós contemplamos antes de tudo, na pessoa de Jesus. É a imagem de Si mesmo que Jesus nos transmite. Mas ao mesmo tempo, este retrato também serve para moldar o nosso rosto. Também é um programa de reconfiguração da nossa vida. Nós somos chamados a aceitar, a abraçar a lógica, a dinâmica, o estilo de vida, o caminho concreto, aberto, o relançamento da aliança que as bem-aventuranças significam este admirável amor com que o Pai nos amou, chamando-nos filhos, é como explica a 1ª epístola de João, para nos tornarmos semelhantes a Ele. E o nosso programa de cristãos, de crentes, não é outro senão este. O que é que temos de ser neste ano 2021- 2022, que agora começamos neste mês de setembro? O que é que vai ser a nossa vida no relançamento da pandemia e da pós pandemia? Eu diria agarremos as bem-aventuranças como uma bússola e façamos delas o programa que dominamos, que metabolizamos continuamente, até se tornar verdadeiramente o nosso rosto, até ser a tradução da nossa própria vida. Porque é esse o grande programa. E é de facto, um programa transversal, um programa que nos humaniza e nos diviniza. É um programa que nos torna mais humanos, que humaniza a nossa vida, a forma como nos inscrevemos no quotidiano concreto e ao mesmo tempo, é a nossa alma, é a alma do mundo, é aquilo que nos revitaliza. É aquilo que a cada momento nos espiritualiza, nos levanta do chão, nos faz romper com as tentações da autossuficiência ou então dos pesos da desistência. Não levantemos os olhos. Nós falamos já de Abraão. Não, não aceitemos viver em parques de estacionamento, como dizia o Don Quixote: «a estrada é melhor do que a estalagem». É, é para a estrada, sintamo-lo no arranque deste ano, é para a estrada que o Senhor nos convoca. Deus não desiste de nós. Eu espero que este retiro que fizemos juntos, aberto ao longo desta semana, nos tenha confirmado, confortado, consolidado na certeza do amor de Deus.

Deus resgata em cada momento a nossa vida e é isso que Jesus no Evangelho nos dá a ver: Ele vai ao encontro de todos; Ele é o mestre do encontro; vai ao encontro dos últimos, daqueles cuja vida parecia irreversível, já sem solução; toca os desesperados; franqueia a porta aos que não têm esperança; corre a alcançar os últimos; toca os doentes; cura-os; faz levantar os mortos. E o método de Jesus é sempre muito coerente: Jesus ama primeiro, oferece o seu amor primeiro. Porque aquilo que nos salva e que deve servir de método, também para o nosso viver, também para a forma como construímos a arquitetura das nossas relações, aquilo que nos salva não é uma negociação – se, se,…- não é essa espécie de pacto negociado. O que nos salva é o encontro com uma confiança incondicional, com o amor incondicional, o que nos salva é um gesto de amor, é uma dádiva que surpreende porque vai para lá de todas as medidas. É essa a bem-aventurança que nos salva. Nós pensemos, por exemplo, na parábola do filho pródigo O que salva um filho perdido? O que é que o reintroduz na lógica do perdão? O que é que o restaura na sua dignidade de filho? É a excedência, é a loucura daquele amor. E em relação às representações de Deus, muitas vezes o que nos faz caminhar a coxear espiritualmente a vida toda é porque, no fundo, a imagem que nós temos de Deus não corresponde a esta de um amor incondicional. É sempre de um Deus que nos julga, de um Deus que não nos olha com satisfação, que cobra, um Deus que faz as contas, um Deus face ao qual nós estamos sempre em dívida, falta sempre alguma coisa, é um clima de insatisfação e não é este clima de amor incondicional de Deus que corre ao nosso encontro. Ora, é esta imagem que nós temos de gravar no nosso coração, porque, no fundo, se pensarmos bem na arquitetura antropológica nossa, de mulheres e de homens, aquilo que nos estrutura verdadeiramente, aquilo que nos dá uma autonomia, que nos consolida afetivamente e existencialmente, é a experiência de um amor incondicional. Quando nós interiorizamos, internalizamos como imago o amor da nossa Mãe e do nosso Pai, como um amor incondicional. Se por alguma razão, por algum ruído, por algum incidente, por algum desencontro, nós não fomos saciados extravagantemente do amor materno e paterno, nós vamos transportar, vida fora, esse vazio, essa ansiedade, essa frustração, essa, essa carência. Porque nós fomos feitos assim, a matriz criacional, a pegada divina em nós é também essa necessidade absoluta que nós temos de um amor incondicional. Ora, é esse amor que Jesus testemunha. Jesus, é o testemunha credível do amor incondicional do Pai, por isso, sintamo-nos reconciliados, abraçados, inscritos, restaurados dentro deste amor e sintamos que o Evangelho das bem-aventuranças nos mobiliza, nos atira para a frente.

O Papa Francisco, desde a Evangelii Gaudium, como que cunhou a expressão em saída, em saída. A Igreja é chamada a ser em saída, mas cada batizado, cada crente, é chamado a viver, a viver esse dinamismo. O que nos adoece não é o ir ao encontro dos outros, não é a mobilização missionária da nossa vida, não é a oferta de nós mesmos, não é a capacidade de servir, de cuidar, de amar, isso só nos amplia, mesmo quando nos cansa, isso só nos amplia, isso só nos abre fronteiras. O que nos cansa é o ar viciado que corre nesse quarto com janelas fechadas, que é a nossa autorreferencialidade, que é o medo ou insegurança que nos traz e nos trancam no nosso narcisismo. Jesus diz «Eu vim procurar e salvar o que estava perdido». E é esse também o nosso programa. Como fazer? Como atuar? Como configurar os nossos quotidianos neste ano 2021-2022?  Eu diria, peguemos nas bem-aventuranças:

- Primeiro, essa pobreza, que é uma simplicidade do coração, uma despretensão, um esvaziamento. Penso muitas vezes naquela frase do Jacques Lacan, a definição que ele dá de amor, ele diz: «Amar é dar ao outro o que não se tem». Bem-aventurados os pobres em espírito, porque de facto o amor não é dar ou não, é dar muito e nem é dar tudo, mas é reconhecer que nós não temos. Amar não é um assistencialismo, amar é instaurar um jogo de relação, um jogo de comunicação, um jogo de circularidade de vida. E se eu não estou vazio, não posso receber o outro. Nós temos a ideia do amor como como um dar e, muitas vezes, o amor falha, porque nós não sabemos receber. Damos uma esmola, porque temos uns trocos no bolso ou porque… e esquecemos que o mais importante é instaurar uma amizade e instaurar uma relação, é escutar, é ver, é perder tempo e por isso não é, não é o cheio, é o vazio - bem-aventurados os pobres em espírito. Depois reganhemos sensibilidade. Que seja um ano, em que a gente possa chorar com os que choram, rir com os que riem, ganhar sensibilidade ao outro, acompanhá-los verdadeiramente, porque sem dar por isso, nós não nos encontramos, nós esbarramos na vida uns dos outros, nós colidimos, damos uns toques e fugimos, mas verdadeiramente não construímos, não paramos a construir uma relação. Sintonizemos com aquilo que está no outro, com a sua fome e a sua sede. Tão facilmente, mesmo para os da nossa casa, mesmo para os que nos são mais próximos, nós desconhecemos, nós somos como que estrangeiros uns para os outros, estranhos no nosso próprio mundo. Quais são os sonhos dos outros? Quais são as suas sedas, a sua fome de justiça, as suas ânsias? O que é que pulsa neles? Um outro aspeto importante é a pureza do coração, construir, de facto, esta pureza. A escritora Cristina Campo dizia que nós não nascemos inocentes, mas podemos morrer inocentes. E há uma frase muito bonita, desse romance maravilhoso de João Guimarães Rosa, O Grande Sertão Veredas, lá que um dos jagunços passa-se no Brasil, no meio do mato, lá em, digamos, na Zona Grande de Minas. E um jagunço diz assim: «compadre, não sabendo, não sabendo até virar criança». E no fundo é isso também a nossa vida, a valorizar o não sabendo. Nós valorizamos muito o saber, o conhecimento, e é importante, mas valorizar isso, transportando no seu coração o não sabendo, não sabendo até virar criança. Porque; se eu não sei, não julgo; se eu não sei, não atiro pedras; se eu não sei, faço silêncio; se eu não sei, não discrimino; se eu não sei, não digo a palavra sem pensar. Não, antes de tudo, não sei. E isso dá-me uma sabedoria, faz-me, de facto, tornar como criança, e dá-me uma pureza de coração, dá-me aquela mansidão que as crianças têm e de que são mestres. A mansidão é uma pedagogia do nosso coração;

- A mansidão não é imediata. Porventura pode haver pessoas que tenham esse dom naturalmente, mas a maior parte de nós vive no fio da navalha da irritação, da fúria, da violência, da descarga, da descarga emocional, do não suportar, do aprender. Aprender a mansidão, dar passos na mansidão, perceber que a mansidão é verdadeiramente uma pedagogia que dia a dia é, eu dou passos. E é importante, é importante sentir, sentir essa dinâmica de um caminho, de um esforço, porque há uma coisa em que nós não pensamos e que, no fundo, é o segredo das bem-aventuranças: as bem-aventuranças são uma construção, são uma disciplina, são um treino, são um ginásio da nossa alma, da nossa psique e da nossa existência. E só com dedicação, só com entrega, nós podemos, de facto, avançar. Não há vida espiritual sem combate espiritual. Nós queremos ganhar o jogo sem jogar. Não pode ser, não, não. Não entendemos o verdadeiro caminho espiritual. E, de facto, as bem-aventuranças pedem de nós esse, esse caminho. Aprendemos;

- Aprendamos com aqueles que promovem a paz. Com aqueles que se tornam artesãos da paz. É muito bonito na estupenda encíclica Fratelli Tuti, sobre a fraternidade universal e a amizade social que no meio de um ano tão, tão difícil como foi 2020, o Papa Francisco, naquele mês de outubro quis oferecer ao mundo. E aí, uma das coisas que me chamou a atenção, foi, de facto, a forma justíssima como o Papa Francisco vê a construção da paz, desta paz dentro de nós e desta paz social, desta paz uns com os outros. E ele usa a palavra artesanato. É verdadeiramente um artesanato. No número 231 da Fratelli Tutti o Santo Padre diz: « Existe uma arquitetura da paz, mas há também um artesanato da paz que nos envolve a todos». E depois no outro número, o 217, ele explica o que é este artesanato da paz. Ele diz assim: «A paz social é laboriosa, artesanal - seria mais fácil conter as liberdades e as diferenças com astúcia e compensações, mas esta paz seria superficial e frágil, não o fruto de uma cultura de encontro. Integrar as realidades, construir a paz é muito mais difícil e lento». Então, de facto, há um trabalho de artesanato que nós temos de aprender a cumprir, a realizar, a realizar na nossa vida. E depois, ser capaz de sofrer, ser capaz de sofrer: «Bem-aventurados os que sofrem por amor da verdade, por amor da justiça, os que são perseguidos, porque é deles o reino dos céus». De facto, não há almoços grátis. Nós sabemos, na nossa vida adulta, que nós pagamos um custo pelas nossas escolhas, pela nossa forma de viver, mas esse custo vale a pena, essa tensão é aquela que nos salva. Mobilizemo-nos.

Uma das coisas mais perigosas é pensarmos nós que: neste tempo o melhor é fazer-se de morto; neste tempo, o melhor é ficar pela manutenção; não, não vamos ter grandes sonhos, grandes fantasias, altos voos; este tempo é para sobreviver e depois logo se verá. Este é o contrário da lógica das bem-aventuranças, isto é, o contrário daquilo que o Senhor nos pede. Um cristianismo de manutenção é um cristianismo que se nega a si mesmo. Nós somos chamados a viver com uma alma jovem e enamorada. Uma alma que se alimenta da alegria da procura, da busca, da pergunta, da interrogação, que não teme o desafiador e o disruptivo, que arrisca verdadeiramente a hospitalidade e o diálogo. A pior coisa é partirmos para a vida já de barriga cheia, como se participássemos num banquete sem verdadeiro apetite. E dizemos: já fui, já fiz, já conheço, já subi a Jerusalém, já fui ao templo, já rezei, já ofereci os sacrifícios. E isso como que nos desobriga. O que eu fiz ontem, como que me desobriga ao compromisso aliança com Deus, que é sempre o lugar da surpresa de Deus. O crente não é aquele que está saciado de Deus, mas é aquele que está faminto de Deus. O crente não é o que sabe, o crente é o que não sabe, o crente é o que se põe a caminho, não é aquele instalado numa convicção, mas é aquele desperto a dar o salto da confiança. E isso faz da nossa vida, de facto, uma vida ativa. Nós somos chamados a perceber que a nossa bem-aventurança é, de facto, esta sede, este nomadismo, esta disponibilidade para relançar, para relançar, de que nós temos tanta necessidade. Maria é, de facto, mestra da bem-aventurança e do relançamento com a vida a cada momento. Na vida de Maria, no centro, não estão as ideias, mas está a realidade concreta, por isso é importante saber que ela era uma rapariga de Nazaré, que se chamava Maria, que havia um noivo chamado José, quer dizer, a história conta a biografia e é importante que o faça. Tudo o que somos é reclamado para o acontecer de Deus, Deus vem até nós, mas através de nós, através da nossa história. E é interessante olhar para a cena da Anunciação, porque é um encontro verdadeiro, porque é um diálogo franco, um diálogo artesanal que Maria tem com o anjo. E é interessante o facto de que Deus perde tempo a escutar as perguntas de Maria, as suas hesitações, as suas incertezas: «Mas como será isso se eu não conheço homem?». Deus leva-a a sério. Deus leva a sério aquilo que somos, não nos atropela, não, não… não passa por cima de nós, não, mas faz um caminho. Faz um caminho com a nossa história e vem para nos transmitir a sua confiança, o seu amor incondicional. Na história de Maria nós vemos como que  três etapas e são, de facto, três etapas que, muitas vezes, nós encontramos na nossa própria história:

- A primeira etapa é a da surpresa. Esta pandemia colheu-nos a todos de surpresa e essa surpresa teve uma conjugação individual, ardentemente pessoal. E nós vimos o mundo como nunca antes o tínhamos visto e olhamos para nós próprios em situação e fomos para nós uma surpresa. Descobrimo-nos a todos mais frágeis, mais dependentes, mais inseguros do que do que estávamos à espera. E a vida, em tantos momentos, é para nós uma surpresa, uma surpresa: penso uma mudança de trabalho, mas também um despedimento; penso as crises afetivas ao longo de uma vida; penso, por exemplo, na chegada de uma doença que se revela; penso, por exemplo, num luto inesperado que temos de enfrentar e depois de gerir. Quantas surpresas! Quantas surpresas nos chegam! E a nossa reação interna é: E porquê isto?; Porquê agora?; Porquê a mim? São as perguntas que nos assaltam, que estão dentro de nós. Não passará tudo de um equívoco? Não terá havido um engano? É a primeira, a primeira reação. O texto da Anunciação diz-nos isto: «Maria ficou perturbada com aquilo que lhe disse o anjo». E tantas vezes nós ficamos perturbados! A nossa reação é essa, uma perturbação total, total. Mas o que é curioso e que devemos sublinhar é que Deus não diz: «Ah, isso é legítimo, a tua perturbação não tem cabimento». Não, não, não! Deus aceita … Deus aceita. E a primeira coisa que o anjo lhe diz é: «Não temas, não temas!». E no meio de todas as nossas crises o que Deus nos diz é: «Não temas!». E o que Deus nos diz hoje, no relançamento também deste ano é isto: «Não temas!». Que o medo não nos devore a alma; que o medo não engula as nossas energias; que o medo não tolha a nossa espontaneidade, a nossa singularidade; que o medo não nos tolha os passos; que o medo não reduza o mapa; que o medo não inverta as posições. Nós somos, de facto, feitos para olhar para longe, para mais longe. Que os nossos olhos não morram nos nossos sapatos. Não, não temas!;

- E depois o segundo passo é esse diálogo que Maria tem e que é a sua oração. Às vezes a gente pensa a oração e pronto, a oração é como que um enlatado, um produto enlatado que já está feito, está pré-fabricado e eu só tenho de repetir aquilo. Não. Eu repito eu vivo, mas: a oração é diálogo, é diálogo e de coração a coração; oração é acolhimento; oração é esse espaço vazio que permite a circulação, o encontro, o aprofundamento; oração é aquilo que eu não sei, é aquilo que eu não sei, não é dizer o que eu sei, mas aquilo que eu não sei. E aí vou, vou, vou construindo: a oração me alarga, a oração me amplia, mas toma as minhas razões. Por isso era tão importante que este nosso novo ano, 2021/2022 fosse de facto um ano sustentado pela oração, fosse um ano rezado quotidianamente. Porque a oração é a nossa força, a oração é a nossa força! A oração faz-nos ver mais longe. Eu recordo um poema do poeta Murilo Mendes, um poeta brasileiro muito amigo de Sophia de Mello Breyner Andresen, que diz assim sobre a oração Eucarística: 

Eucaristia,

o mais interior e abrigado recesso da intimidade.

Categoria da absorção e da assimilação do teu corpo e do teu sangue,

nunca sujeitos ao tempo.

Vasto campo de trigo é a nossa alma em que

ceifando baixas pelo infinito íntimo.

Teu sacrifício total que percorre o universo,

amplia o dom oculto de cada um.

Oração e oração eucarística, oração de adoração, é uma oração que verdadeiramente nos amplia. E aí nós podemos trocar as nossas razões. E é muito belo meditar no texto da Anunciação, porque vemos Maria crescer no conhecimento de Deus e no autoconhecimento da sua vida. E se ao mesmo tempo ela sentia o peso da fragilidade, também sentia a força de uma confiança que vinha de Deus e que verdadeiramente a atirava em frente;

- E isto é o terceiro ponto que aprendemos no texto da Anunciação, a confiança, a confiança: «O Espírito Santo virá sobre ti e a força do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra». E é isto que nós precisamos ouvir no relançamento do nosso ano: nós não estamos sós; nós não estamos sós; nós não contamos só connosco; nós não estamos só com as nossas forças. «O Espírito Santo virá sobre ti». E por isso é que nós podemos dizer o nosso sim. Nós podemos repetir em cada dia ao longo deste ano: «Faça-se em mim segundo a Tua Palavra». Se contássemos só connosco, com a nossa fragilidade, seguramente nós não éramos capazes, mas a vida é um ato de confiança. A vida é um ato de confiança. E é isso que nós precisamos de aprender. Por isso, escutemos a vida, tornemo-nos porosos à vida. Se o nosso coração estiver aberto, se vivermos como uma sonda, como uma antena, nós vamos ver Deus, Deus por todo o lado. Gosto tanto daquele poema de Manoel de Barros, um poema provocador que se chama Formiga e ele diz assim: «Não precisei de ler São Paulo, Santo Agostinho, São Jerónimo, nem São Tomás de Aquino, nem São Francisco de Assis para chegar a Deus. Formigas me mostraram Ele. Eu tenho doutorado em formigas». Claro que é bom ler São Paulo, Santo Agostinho, São Jerónimo e o grande São Tomás de Aquino, mas as formigas dão-nos um doutoramento em teologia, se a gente as souber olhar, isto é, o ínfimo, o ínfimo, o pequenino, o detalhe, o próximo, aquilo que está chegado a nós, o quotidiano, o banal, o ordinário – são uma lição, são a possibilidade de uma oração, a possibilidade de uma relação com Deus. Maria, na Anunciação, percebeu que a sua vida era mais, que a sua vida não era só a sua vida, que não se esgotava nela. Isso, para nós, é um grande chamamento: a vida é maior do que nós e Deus conta connosco como parceiros, como partners, como cúmplices desta gestação de Deus. A nossa vida precisa tornar-se generativa, generativa. Nós temos de sentir, de sentirmo-nos parceiros de Deus neste parto do futuro e neste tempo. No final desta etapa de pandemia, em que entramos numa pós pandemia, mas ainda sentindo que entramos numa nova época da história e que o mundo ganhou uma imprevisibilidade tão grande, nós temos de nos sentir artífices do futuro, artesãos do futuro, porque o mundo precisa de construtores do futuro e isso tem de nos trazer implicados, implicados.


Obrigado a todos por este caminho que pudemos fazer juntos, ao longo desta semana. Continuemos a rezar uns pelos outros, a sentir que Deus é o parteiro da nossa vida, como dizia Etty Hillesum, mas que nós também somos chamados a ser parteiras e parteiros quotidianos do futuro de Deus.

Sem comentários:

Enviar um comentário