quinta-feira, 30 de abril de 2020

Oração



«“Cristo vive: é Ele a nossa esperança e a mais bela juventude deste mundo! Tudo o que toca torna-se jovem, fica novo, enche-se de vida” (Papa Francisco). A ressurreição de Jesus ilumina a minha vida e me convida a comunicar a alegria do Evangelho a todas as pessoas que vierem ao meu encontro. E posso fazer isso por meio de uma palavra, um gesto concreto, um sorriso, um abraço. Senhor, que a minha vida se renove a cada dia pela tua Palavra! Que eu acolha teus ensinamentos com o coração e os traduza em minhas palavras e ações para com o próximo.»

30 de abril de 2020 - tarde ( site “Rede Mundial de oração com o Papa”)

domingo, 26 de abril de 2020

DOMINGO III DE PÁSCOA


Continuamos, com as leituras de hoje, a viver o grande Dia da Páscoa de Jesus Ressuscitado. Ao escutar a Palavra proclamada  neste domingo, há um denominador comum a todas as leituras, que se tornou mais claro para mim, hoje, pois foi o dia em que o Sr.Prior nos deu as Boas Festas de Jesus Ressuscitado. É verdade que foi muito diferente dos anos anteriores, mas o anúncio, a bênção e a comunhão eclesial foram vividos com o mesmo espírito. Sim, mesmo em tempo de confinamento, de isolamento, é possível: receber o anúncio de que Jesus está vivo, caminha connosco; sentir que a bênção de Deus derramada sobre nós e sobre os nossos lares, por intermédio (na paróquia de Porto de Mós) do Sr.Pe.José Alves (nosso pároco), que permanecendo do lado de fora, na rua, mas com o auxílio das novas tecnologias (e de outras pessoas) fez chegar até nós a sua voz  e se tornou, com Jesus, um connosco. Foi bom, mesmo muito bom! Apreciei a forma simples, mas bela, como de tudo cuidou e providenciou para que pudéssemos estar unidos, ao longo deste tempo de quarentena. Deus seja louvado. Obrigada Sr.Padre José.


Na 1ª leitura (Atos 2, 14.22-33) ficamos espantados com a coragem desassombrada de Pedro ao anunciar Jesus Ressuscitado. Temos na memória outros momentos da vida de S.Pedro com Jesus, muito diferentes dos que nos são apresentados nas duas primeiras leituras de hoje. É impressionante a ação de Deus num coração que todo se Lhe entrega. A transformação em Pedro é total. Não deixa de ser quem era, com as suas qualidades e os seus defeitos, mas entregou-se-Lhe totalmente, com tudo o que tinha feito. Este é o caminho para Deus, que S.Pedro nos abre hoje, quer pela sua história pessoal, quer através das Escrituras, quando recorre a David:  não há nada, nem ninguém que nos possa afastar do Amor de Deus, manifestado em Jesus Ressuscitado. Entreguemo-nos de alma e coração, com tudo, mas mesmo tudo, por pior que nos sintamos, pois Ele está vivo, caminha connosco.
“No dia de Pentecostes, Pedro, de pé, com os onze Apóstolos, ergueu a voz e falou ao povo: «Homens da Judeia e vós todos que habitais em Jerusalém, compreendei o que está a acontecer e ouvi as minhas palavras: Jesus de Nazaré foi um homem acreditado por Deus junto de vós com milagres, prodígios e sinais, que Deus realizou no meio de vós, por seu intermédio, como sabeis. Depois de entregue, segundo o desígnio imutável e a previsão de Deus, vós destes-Lhe a morte, cravando-O na cruz pela mão de gente perversa. Mas Deus ressuscitou-O, livrando-O dos laços da morte, porque não era possível que Ele ficasse sob o seu domínio. Diz David a seu respeito: ‘O Senhor está sempre na minha presença, com Ele a meu lado não vacilarei. Por isso o meu coração se alegra e a minha alma exulta e até o meu corpo descansa tranquilo. Vós não abandonareis a minha alma na mansão dos mortos, nem deixareis o vosso Santo sofrer a corrupção. Destes-me a conhecer os caminhos da vida, a alegria plena em vossa presença’. Irmãos, seja-me permitido falar-vos com toda a liberdade: o patriarca David morreu e foi sepultado e o seu túmulo encontra-se ainda hoje entre nós. Mas, como era profeta e sabia que Deus lhe prometera sob juramento que um descendente do seu sangue havia de sentar-se no seu trono, viu e proclamou antecipadamente a ressurreição de Cristo, dizendo que Ele não O abandonou na mansão dos mortos, nem a sua carne conheceu a corrupção. Foi este Jesus que Deus ressuscitou e disso todos nós somos testemunhas. Tendo sido exaltado pelo poder de Deus, recebeu do Pai a promessa do Espírito Santo, que Ele derramou, como vedes e ouvis».


Na 2ªleitura (1 Pedro 1, 17-21) S.Pedro continua a sua evangelização e anúncio do Senhor Ressuscitado, penhor e garantia da nossa salvação. É em Jesus, morto e ressuscitado, que está vivo e caminha connosco, no dia a dia da vida, que está o fundamento da nossa fé. Jesus, o Cordeiro Imaculado, deu a vida por cada um de nós e só radicados n’Ele, sob a ação do Espírito Santo, seremos anunciadores de Deus Amor, na vida concreta de cada dia, nos tempo de hoje, com pandemia e tudo. Sigamos o exemplo de S.Pedro e deixemos que Deus nos ame por inteiro, mais ainda nas nossas dificuldades, nos nossos defeitos, nos nossos pecados. Acreditemos, Jesus venceu a morte, de uma vez por todas, está vivo, ressuscitou, conduz-nos, caminha connosco. Louvado sejas Senhor, hoje e sempre, pelos séculos sem fim. 
“Caríssimos: Se invocais como Pai Aquele que, sem aceção de pessoas, julga cada um segundo as suas obras, vivei com temor, durante o tempo de exílio neste mundo. Lembrai-vos que não foi por coisas corruptíveis, como prata e oiro, que fostes resgatados da vã maneira de viver, herdada dos vossos pais, mas pelo sangue precioso de Cristo, Cordeiro sem defeito e sem mancha, predestinado antes da criação do mundo e manifestado nos últimos tempos por vossa causa. Por Ele acreditais em Deus, que O ressuscitou dos mortos e Lhe deu a glória, para que a vossa fé e a vossa esperança estejam em Deus.”


No evangelho (Lc 24, 13-35) somos convidados a colocarmo-nos no papel de cada um daqueles discípulos, mas no dia a dia da nossa vida, deixando que Jesus nos vá explicando o sentido das escrituras, como fez com eles. Às vezes o nosso coração anda demasiado atarefado “com muitas coisas” e não O reconhece, mas Ele, caminha connosco, pelas estradas da vida, repartindo o pão. Deixemos que o nosso coração “arda cá dentro” quando O escutamos e estejamos atentos aos sinais, pois Ele continua a “partir o pão” com todos os que fazem parte da nossa vida e O procuram de coração sincero. 
“Dois dos discípulos de Jesus iam a caminho duma povoação chamada Emaús, que ficava a duas léguas de Jerusalém. Conversavam entre si sobre tudo o que tinha sucedido. Enquanto falavam e discutiam, Jesus aproximou-Se deles e pôs-Se com eles a caminho. Mas os seus olhos estavam impedidos de O reconhecerem. Ele perguntou-lhes: «Que palavras são essas que trocais entre vós pelo caminho?». Pararam, com ar muito triste, e um deles, chamado Cléofas, respondeu: «Tu és o único habitante de Jerusalém a ignorar o que lá se passou estes dias». E Ele perguntou: «Que foi?». Responderam-Lhe: «O que se refere a Jesus de Nazaré, profeta poderoso em obras e palavras diante de Deus e de todo o povo; e como os príncipes dos sacerdotes e os nossos chefes O entregaram para ser condenado à morte e crucificado. Nós esperávamos que fosse Ele quem havia de libertar Israel. Mas, afinal, é já o terceiro dia depois que isto aconteceu. É verdade que algumas mulheres do nosso grupo nos sobressaltaram: foram de madrugada ao sepulcro, não encontraram o corpo de Jesus e vieram dizer que lhes tinham aparecido uns Anjos a anunciar que Ele estava vivo. Alguns dos nossos foram ao sepulcro e encontraram tudo como as mulheres tinham dito. Mas a Ele não O viram». Então Jesus disse-lhes: «Homens sem inteligência e lentos de espírito para acreditar em tudo o que os profetas anunciaram! Não tinha o Messias de sofrer tudo isso para entrar na sua glória?». Depois, começando por Moisés e passando pelos Profetas, explicou-lhes em todas as Escrituras o que Lhe dizia respeito. Ao chegarem perto da povoação para onde iam, Jesus fez menção de ir para diante. Mas eles convenceram-n’O a ficar, dizendo: «Ficai connosco, porque o dia está a terminar e vem caindo a noite». Jesus entrou e ficou com eles. E quando Se pôs à mesa, tomou o pão, recitou a bênção, partiu-o e entregou-lho. Nesse momento abriram-se-lhes os olhos e reconheceram-n’O. Mas Ele desapareceu da sua presença. Disseram então um para o outro: «Não ardia cá dentro o nosso coração, quando Ele nos falava pelo caminho e nos explicava as Escrituras?». Partiram imediatamente de regresso a Jerusalém e encontraram reunidos os Onze e os que estavam com eles, que diziam: «Na verdade, o Senhor ressuscitou e apareceu a Simão». E eles contaram o que tinha acontecido no caminho e como O tinham reconhecido ao partir o pão.”


Senhor, eu te louvo e bendigo pelo dom da Eucaristia. Mil graças Senhor.

sábado, 18 de abril de 2020

DOMINGO II DA PÁSCOA 
ou DA DIVINA MISERICÓRDIA


Nas leituras de hoje, continuamos a vivência do grande dia da Ressurreição do Senhor Jesus. A Páscoa, de Jesus Cristo, prolonga-se no tempo sem fim, mas, todo este tempo, desde o Domingo de Páscoa até à Sua Ascensão, parece tratar-se de um único dia, o grande dia da Páscoa de Jesus Ressuscitado. Em cada domingo, deste tempo pascal, vamos recebendo o testemunho dos discípulos e, ao mesmo tempo, caminhando com eles na descoberta de Deus Amor, em Jesus Ressuscitado. Sempre num crescendo, Jesus vai-nos abrindo o coração à certeza de que está sempre connosco, mesmo quando não O vemos, principalmente quando, como nestes tempos de pandemia, mais d’Ele precisamos. Não há portas, nem paredes, nem abismos, nem profundidades, que impeçam Jesus de ser um connosco, de nos habitar por inteiro, de ser a força que nos sustenta e diz: “ A Paz esteja convosco”.  Podemos, agora mais do que nunca anunciar, cantar: Jesus está vivo, ressuscitou. Aleluia!


Na 1ªleitura (Atos 2, 42-47) o que mais impressiona é a forma como os primeiros cristãos viviam em comunidade, em união e, ao mesmo tempo, eram assíduos e solidários. Um só era Aquele que os unia e d’Ele faziam a razão de ser das suas vidas. Tiveram problemas também, e muitos, por certo, mas o amor a Jesus era a sua força. Que o Espírito do Senhor repasse cada uma das fibras do nosso ser, nos encha a alma e, n´Ele possamos voltar a ser, quem sabe, um dia…, uma só Igreja unida no seu único Senhor.
“Os irmãos eram assíduos ao ensino dos Apóstolos, à comunhão fraterna, à fração do pão e às orações. Perante os inumeráveis prodígios e milagres realizados pelos Apóstolos, toda a gente se enchia de temor. Todos os que haviam abraçado a fé viviam unidos e tinham tudo em comum. Vendiam propriedades e bens e distribuíam o dinheiro por todos, conforme as necessidades de cada um. Todos os dias frequentavam o templo, como se tivessem uma só alma, e partiam o pão em suas casas; tomavam o alimento com alegria e simplicidade de coração, louvando a Deus e gozando da simpatia de todo o povo. E o Senhor aumentava todos os dias o número dos que deviam salvar-se.”


Na 2ªleitura (1 Pedro 1, 3-9) louvamos e damos graças a Deus, com S.Pedro, pelo dom do Seu infinito Amor. É Deus, quem nos ama assim perdidamente, de tal forma, que, por Jesus, Seu único Filho, morto e ressuscitado, fomos resgatados, fomos salvos. Hoje, por e em Jesus ressuscitado, somos, cada um de nós também, Seus filhos. Bendito e louvado sejas Senhor, hoje e sempre, pelos séculos sem fim.
“Bendito seja Deus, Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, que, na sua grande misericórdia, nos fez renascer, pela ressurreição de Jesus Cristo de entre os mortos, para uma esperança viva, para uma herança que não se corrompe, nem se mancha, nem desaparece. Esta herança está reservada nos Céus para vós que pelo poder de Deus sois guardados, mediante a fé, para a salvação que se vai revelar nos últimos tempos. Isto vos enche de alegria, embora vos seja preciso ainda, por pouco tempo, passar por diversas provações, para que a prova a que é submetida a vossa fé – muito mais preciosa que o ouro perecível, que se prova pelo fogo – seja digna de louvor, glória e honra, quando Jesus Cristo Se manifestar. Sem O terdes visto, vós O amais; sem O ver ainda, acreditais n’Ele. E isto é para vós fonte de uma alegria inefável e gloriosa, porque conseguis o fim da vossa fé: a salvação das vossas almas.


No evangelho (Jo 20, 19-31) S.João vai-nos conduzindo, vai-nos preparando para a necessidade de descobrirmos Jesus em Igreja. Realmente, é numa dimensão comunitária, isto é em Igreja, que vamos descobrindo e compreendendo Jesus Cristo, que conduz ao Pai. A fé cristã, no meu entender, passa pela vivência eclesial, isto é, a dimensão espiritual e individual é um tesouro que Deus nos dá, mas só chegaremos a uma profundidade maior de comunhão com Deus, se tivermos  a graça de vivenciarmos a fé uns com os outros. “Ninguém se salva sozinho”, não sei quem é o autor desta afirmação, nem a quem a ouvi pela primeira vez, mas, ao longo da vida, que já vai sendo longa, tenho aprendido o quanto é verdadeira. Senhor, que aprendamos a descobrir-Te no outro, que caminha comigo, que não gosta de mim, ou, quem sabe, até me detesta, mas que é tão precioso para Ti, quanto eu, que até deste a vida por ele(a). Que verdadeiramente se possa dizer da Igreja, vede como eles se amam.
“Na tarde daquele dia, o primeiro da semana, estando fechadas as portas da casa onde os discípulos se encontravam, com medo dos judeus, veio Jesus, apresentou-Se no meio deles e disse-lhes: «A paz esteja convosco». Dito isto, mostrou-lhes as mãos e o lado. Os discípulos ficaram cheios de alegria ao verem o Senhor. Jesus disse-lhes de novo: «A paz esteja convosco. Assim como o Pai Me enviou, também Eu vos envio a vós». Dito isto, soprou sobre eles e disse-lhes: «Recebei o Espírito Santo: àqueles a quem perdoardes os pecados ser-lhes-ão perdoados; e àqueles a quem os retiverdes ser-lhes-ão retidos». Tomé, um dos Doze, chamado Dídimo, não estava com eles quando veio Jesus. Disseram-lhe os outros discípulos: «Vimos o Senhor». Mas ele respondeu-lhes: «Se não vir nas suas mãos o sinal dos cravos, se não meter o dedo no lugar dos cravos e a mão no seu lado, não acreditarei». Oito dias depois, estavam os discípulos outra vez em casa e Tomé com eles. Veio Jesus, estando as portas fechadas, apresentou-Se no meio deles e disse: «A paz esteja convosco». Depois disse a Tomé: «Põe aqui o teu dedo e vê as minhas mãos; aproxima a tua mão e mete-a no meu lado; e não sejas incrédulo, mas crente». Tomé respondeu-Lhe: «Meu Senhor e meu Deus!». Disse-lhe Jesus: «Porque Me viste acreditaste: felizes os que acreditam sem terem visto». Muitos outros milagres fez Jesus na presença dos seus discípulos, que não estão escritos neste livro. Estes, porém, foram escritos para acreditardes que Jesus é o Messias, o Filho de Deus, e para que, acreditando, tenhais a vida em seu nome.



Jesus está vivo. Ressuscitou dos mortos. Aleluia ! Aleluia! Aleluia!

segunda-feira, 13 de abril de 2020

DOMINGO DE PÁSCOA 
DA RESSURREIÇÃO DO SENHOR

"Ressurreição" | Piero della Francesca

Sim, o coração canta, a alma rejubila e diante dos nossos olhos acontece um verdadeiro milagre de Amor: a morte foi vencida, Jesus Cristo Ressuscitou.
Aleluia! Aleluia! Aleluia!

“No primeiro dia da semana, Maria Madalena foi de manhãzinha, ainda escuro, ao sepulcro e viu a pedra retirada do sepulcro. Correu então e foi ter com Simão Pedro e com o outro discípulo que Jesus amava e disse-lhes: «Levaram o Senhor do sepulcro e não sabemos onde O puseram». Pedro partiu com o outro discípulo e foram ambos ao sepulcro. Corriam os dois juntos, mas o outro discípulo antecipou-se, correndo mais depressa do que Pedro, e chegou primeiro ao sepulcro. Debruçando-se, viu as ligaduras no chão, mas não entrou. Entretanto, chegou também Simão Pedro, que o seguira. Entrou no sepulcro e viu as ligaduras no chão e o sudário que tinha estado sobre a cabeça de Jesus, não com as ligaduras, mas enrolado à parte. Entrou também o outro discípulo que chegara primeiro ao sepulcro: viu e acreditou. Na verdade, ainda não tinham entendido a Escritura, segundo a qual Jesus devia ressuscitar dos mortos.
                                                                                  Jo 20, 1-9

sábado, 11 de abril de 2020

Desejo a todos uma Santa Páscoa!


Homilia do Papa na Missa da Vigília Pascal

A Basílica de São Pedro recebeu a missa deste Sábado Santo (11) sem a presença dos fiéis e sem a celebração dos batismos, mas com uma atmosfera propícia para celebrar a vitória de Cristo sobre o pecado e a morte. As mudanças do Departamento de Celebrações Litúrgicas do Sumo Pontífice são referentes às medidas de restrição impostas pela pandemia do Covid-19.



MISSA da VIGÍLIA PASCAL
(Sábado Santo, 11 de abril de 2020)
«Terminado o sábado» (Mt 28, 1), as mulheres foram ao sepulcro. O Evangelho desta santa Vigília começa assim: com o sábado. Este é o dia do Tríduo Pascal que mais descuramos, ansiosos de passar da cruz de sexta-feira à aleluia de domingo. Este ano, porém, damo-nos conta, mais do que nunca, do sábado santo, o dia do grande silêncio; podemos rever-nos nos sentimentos que tinham as mulheres naquele dia. Como nós, tinham nos olhos o drama do sofrimento, duma tragédia inesperada, que se verificou demasiado rapidamente. Viram a morte e tinham a morte no coração. À amargura, juntou-se o medo: acabariam, também elas, como o Mestre? E depois os receios pelo futuro, carecido todo ele de ser reconstruído. A memória ferida, a esperança sufocada. Para elas, era a hora mais escura, como o é hoje para nós.
Contudo, nesta situação, as mulheres não se deixam paralisar. Não cedem às forças obscuras da lamentação e da lamúria, não se fecham no pessimismo, nem fogem da realidade. No sábado, realizam algo simples e extraordinário: nas suas casas, preparam os perfumes para o corpo de Jesus. Não renunciam ao amor: na escuridão do coração, acendem a misericórdia. Nossa Senhora, no sábado – dia que Lhe será dedicado –, reza e espera. No desafio da tristeza, confia no Senhor. Sem o saber, estas mulheres preparavam na escuridão daquele sábado «o romper do primeiro dia da semana» (Mt 28, 1), o dia que havia de mudar a história. Jesus, como semente na terra, estava para fazer germinar no mundo uma vida nova; e as mulheres, com a oração e o amor, ajudavam a esperança a desabrochar. Quantas pessoas, nos dias tristes que vivemos, fizeram e fazem como aquelas mulheres, semeando brotos de esperança com pequenos gestos de solicitude, de carinho, de oração!
Ao amanhecer, as mulheres vão ao sepulcro. Lá diz-lhes o anjo: «Não tenhais medo. Não está aqui; ressuscitou» (cf. Mt 28, 5-6). Diante dum túmulo, ouvem palavras de vida... E depois encontram Jesus, o autor da esperança, que confirma o anúncio dizendo-lhes: «Não temais» (28, 10). Não tenhais medo, não temais: eis o anúncio de esperança para nós, hoje. Tais são as palavras que Deus nos repete na noite que estamos a atravessar.
Nesta noite, conquistamos um direito fundamental, que não nos será tirado: o direito à esperança. É uma esperança nova, viva, que vem de Deus. Não é mero otimismo, não é uma palmada nas costas nem um encorajamento de circunstância. É um dom do Céu, que não podíamos obter por nós mesmos. Tudo correrá bem: repetimos com tenacidade nestas semanas, agarrando-nos à beleza da nossa humanidade e fazendo subir do coração palavras de encorajamento. Mas, à medida que os dias passam e os medos crescem, até a esperança mais audaz pode desvanecer. A esperança de Jesus é diferente. Coloca no coração a certeza de que Deus sabe transformar tudo em bem, pois até do túmulo faz sair a vida.
O túmulo é o lugar donde, quem entra, não sai. Mas Jesus saiu para nós, ressuscitou para nós, para trazer vida onde havia morte, para começar uma história nova no ponto onde fora colocada uma pedra em cima. Ele, que derrubou a pedra da entrada do túmulo, pode remover as rochas que fecham o coração. Por isso, não cedamos à resignação, não coloquemos uma pedra sobre a esperança. Podemos e devemos esperar, porque Deus é fiel. Não nos deixou sozinhos, visitou-nos: veio a cada uma das nossas situações, no sofrimento, na angústia, na morte. A sua luz iluminou a obscuridade do sepulcro: hoje quer alcançar os cantos mais escuros da vida. Minha irmã, meu irmão, ainda que no coração tenhas sepultado a esperança, não desistas! Deus é maior. A escuridão e a morte não têm a última palavra. Coragem! Com Deus, nada está perdido.
Coragem: é uma palavra que, nos Evangelhos, sai sempre da boca de Jesus. Só uma vez é pronunciada por outros, quando dizem a um mendigo: «Coragem, levanta-te que [Jesus] chama-te» (Mc 10, 49). É Ele, o Ressuscitado, que nos levanta a nós, mendigos. Se te sentes fraco e frágil no caminho, se cais, não tenhas medo; Deus estende-te a mão dizendo: «Coragem!» Entretanto poderias exclamar como padre Abbondio: «A coragem, não no-la podemos dar» (I promessi sposi, XXV). Não a podes dar a ti mesmo, mas podes recebê-la, como um presente. Basta abrir o coração na oração, basta levantar um pouco aquela pedra colocada à boca do coração, para deixar entrar a luz de Jesus. Basta convidá-Lo: «Vinde, Jesus, aos meus medos e dizei também a mim: coragem!» Convosco, Senhor, seremos provados; mas não turvados. E, seja qual for a tristeza que habite em nós, sentiremos o dever de esperar, porque convosco a cruz desagua na ressurreição, porque Vós estais connosco na escuridão das nossas noites: sois certeza nas nossas incertezas, Palavra nos nossos silêncios e nada poderá jamais roubar-nos o amor que nutris por nós.
Eis o anúncio pascal, anúncio de esperança. Este contém uma segunda parte, o envio. «Ide anunciar aos meus irmãos que partam para a Galileia» (Mt 28,10): diz Jesus. Ele «vai à vossa frente para a Galileia» (28, 7): diz o anjo. O Senhor precede-nos. É bom saber que caminha diante de nós, que visitou a nossa vida e a nossa morte para nos preceder na Galileia, isto é, no lugar que, para Ele e para os seus discípulos, lembrava a vida diária, a família, o trabalho. Jesus deseja que levemos a esperança lá, à vida de cada dia. Mas, para os discípulos, a Galileia era também o lugar das recordações, sobretudo da primeira chamada. Voltar à Galileia é lembrar-se de ter sido amado e chamado por Deus. Precisamos de retomar o caminho, lembrando-nos de que nascemos e renascemos a partir duma chamada gratuita de amor. Este é o ponto donde recomeçar sempre, sobretudo nas crises, nos tempos de provação.
Mais ainda. A Galileia era a região mais distante de Jerusalém, onde estavam. E não só geograficamente: a Galileia era o lugar mais distante do caráter sacro da Cidade Santa. Era uma região habitada por povos diferentes, que praticavam vários cultos: era a «Galileia dos gentios» (Mt 4, 15). Jesus envia para lá, pede para recomeçar de lá. Que nos diz isto? Que o anúncio da esperança não deve ficar confinado nos nossos recintos sagrados, mas ser levado a todos. Porque todos têm necessidade de ser encorajados e, se não o fizermos nós que tocamos com a mão «o Verbo da vida» (1 Jo 1, 1), quem o fará? Como é belo ser cristãos que consolam, que carregam os fardos dos outros, que encorajam: anunciadores de vida em tempo de morte! A cada Galileia, a cada região desta humanidade a que pertencemos e que nos pertence, porque todos somos irmãos e irmãs, levemos o cântico da vida! Façamos calar os gritos de morte: de guerras, basta! Pare a produção e o comércio das armas, porque é de pão que precisamos, não de metralhadoras. Cessem os abortos, que matam a vida inocente. Abram-se os corações daqueles que têm, para encher as mãos vazias de quem não dispõe do necessário.
No fim, as mulheres «estreitaram os pés» de Jesus (Mt 28, 9), aqueles pés que, para nos encontrar, haviam percorrido um longo caminho até entrar e sair do túmulo. Abraçaram os pés que espezinharam a morte e abriram o caminho da esperança. Hoje nós, peregrinos em busca de esperança, estreitamo-nos a Vós, Jesus ressuscitado. Voltamos as costas à morte e abrimos os corações para Vós, que sois a Vida.

sexta-feira, 10 de abril de 2020

UMA VIA SACRA DA PANDEMIA

Covid-19. Uma Via Sacra da pandemia

03.04.2020 às 18h32

Esta Via Sacra é um texto de ficção em que Jesus Cristo percorre todas as etapas de um infetado com covid-19. Ou quando as coisas não correm tão bem, segundo um teólogo da Universidade Católica.

     FOTO D.R.

TEXTO ALEXANDRE PALMA
Primeira estação
Ecce Homo de Antonello de Messina

JESUS TEM SINTOMAS

Foi mais um dia intenso. Muito andar. Muito conversar. Encontros variados. Uns pessoais, tu a tu. Outros não tanto. Reuniões com estranhos e conhecidos. Uns vindo de perto, outros chegados de longe. Anoiteceu. Chegou, enfim, a hora do silêncio. Saio da cidade e entro no recolhimento possível. «Descansa agora um pouco», ouço-me dizer.
Mas algo não está bem. Sinto um incómodo vago. Não é uma certeza. É uma dúvida chata. Não é nada de especial. É só uma sensação difusa de cansaço. E talvez também uma ligeira dor de cabeça. Mas desconfio do meu corpo. Desconfio de mim mesmo. Deve ser só psicológico.
A noite, contudo, faz-se mais densa. O incómodo confirma-se. Vigio toda a noite. Que escura se tornou! O meu próprio corpo o sinto arder. Suo. Suo muito. Estremeço de febre. Afinal, não consigo sossegar. Agora soma-se-lhe a tosse. E uma dor que veio morar no meu peito. Tusso até não poder mais. Inquieto-me. Canso-me. Esgoto-me. A cabeça não para. Não consegue calar a pergunta: Porquê logo agora? Porquê nesta hora? Pode não ser nada. Pode também ser aquele vírus de que oiço falar. Até eu terei sido infetado? Espero o melhor. Mas angustio-me com a possibilidade de tal não vir a acontecer. A minha alma está perturbada. Afaste-se de mim esse vírus!
Segunda estação
Jesus e a Cruz de Luis de Morales

JESUS INFORMA OS AMIGOS E COLEGAS DE TRABALHO

Penso nos outros. Sobretudo nos que me estão mais próximos. De repente, uma sombra lívida me envolve. Gelo só de imaginar: e se lhes passei o vírus? Falta-me o ar. Não são os pulmões que fraquejam. É o susto que me paralisa o peito. Sufoco só de pensar que lhes possa ter transmitido o vírus. Logo eu. Logo a eles, a quem tudo amo. Que tortura pérfida a desta doença! Corrói-nos os laços, antes mesmo de nos destruir os pulmões. O seu primeiro sintoma é mesmo a solidão. E o medo. Não apenas medo por mim. Medo também pelo próximo. Medo pelo que por minha causa lhe venha a suceder. Que angústia de morte!
É preciso agir. Tenho de lhes dizer. Preciso de os prevenir. Falo-lhes à distância. Encontro-os ainda a dormir. Não vigiaram comigo. Aliás, nestas circunstâncias, não o poderiam fazer. Mostro-me como estou. Falo-lhes abertamente do que sinto. Surpreendidos, não compreendem. Anuncio o meu necessário isolamento. Vou ter me retirar. Vou-lhes ser retirado. Mas eles mo serão também. Antecipo-lhes o seu próprio isolamento. Sou eu agora o leproso e o excluído. Tomem cuidado. Estejam atentos aos sinais. Este vírus também vos há de perseguir a vós. E remato: levantem-se, vão.
Terceira estação
           FOTO D.R.

JESUS LIGA UMA PRIMEIRA VEZ PARA A LINHA TELEFÓNICA DE APOIO

Preciso de ajuda. Recorro ao que insistentemente publicitam estar ali, disponível para me dizer o que é preciso fazer. Pelo telefone é seguro. Garantem que será simples. Há até boas razões cívicas para o fazer. Assim não entupirei ainda mais os já sobrelotados serviços de saúde. Poderei até curar-me aqui, sem sair do meu espaço e fora da cidade. Isto, se é que estou mesmo doente. Do outro lado estará alguém que conhece os mistérios deste vírus. Bastará chamar e essa voz mágica a tudo responderá.
Assim faço. De tão ouvido por estes dias, o número de telefone sei-o de cor. Faço a chamada. É preciso esperar. Di-lo uma voz mecânica, interpolada por música que não é mais que um imenso vazio sonoro. Ao início havia a expectativa de as coisas se poderem compor. E o ânimo correspondente. Mas a prolongada espera tudo muda. Primeiro, transformando-os em irritação. Depois em cansaço. Ao fim, em desnorte. Agora o que é que eu faço?
Quarta estação
Jesus encontra a sua mãe de Theophile_Lybaert

JESUS ISOLA-SE DE SUA MÃE

Sinto falta da minha mãe. A doença tem o condão de ressuscitar em nós aquela carência de criança que só uma mãe pode satisfazer. A solidão deste vírus torna a sua ausência ainda mais sentida. Tenho de lhe falar. Não posso deixar de lhe contar. Ela própria, decerto, já intuiu que algo se passa. A uma mãe não se pode mentir e nada se consegue esconder. Mesmo sem saber, ela já o saberá.
Mas, ao mesmo tempo, não o posso fazer. É preciso cabeça fria. Sejamos lógicos. Quererá vir imediatamente. Correrá sobre quaisquer obstáculos. Não se poupará. Esquecer-se-á de si. Relativizará os cuidados e distanciamentos recomendados. Quererá colocar-se entre mim e o vírus. Mas já tem alguma idade. Não pode ser. Pertence ao grupo de risco. Para ela será provavelmente fatal. Temos de estar isolados. Temos de nos isolar um do outro.
Estranha terapêutica nos impõe este vírus: isolar um filho de uma mãe. Nova expulsão, agora imposta pelas leis mais negras da natureza. Como se uma mãe, como se a minha mãe, não experimentasse também em si o vírus que me mora no corpo. Como se nela não morasse tudo de meu, ela que me trouxe todo em si.
Quinta estação
Jesus carrega a Cruz de Ticiano

JESUS É AJUDADO PELO CIRENEU A FAZER COMPRAS NO SUPERMERCADO

Acasos da vida ou talvez coisa diferente. Só me resta o vizinho do lado. Aquele que até me parecia simpático, mas com quem nunca troquei uma palavra. Só um esporádico e atrapalhado cruzar de olhares. Aquele com que por vezes nos cumprimentamos em sociedade. Vemos que fomos vistos e isso basta para garantir o ritual. Instrumentaliza-se o olhar. Assim não passamos por antipáticos e, simultaneamente, conservamos os outros à distância. É um olhar sanitário, sem contacto físico ou emocional. Como se prescreve por estes dias.
Mas que fazer? Não me resta mais ninguém. Consta que este vizinho, neste contexto de pandemia, tem ajudado os mais velhos das redondezas. Faz-lhes as compras. Vai ao supermercado, à padaria e à farmácia. Garante-lhes o essencial a quem se encontra nesta reclusão domiciliária. Ele é, paradoxalmente, sinal da vitória e da derrota do vírus. Impede que os mais vulneráveis se exponham ao seu contágio. Mas mostra bem a força do cerco que ele nos montou.
Agora tocou-me a mim. Sou eu quem preciso dele. Sou eu, agora, o vulnerável. Em quarentena, aprendo a custo o que isso significa.
Sexta estação
Verónica

JESUS LIGA UMA SEGUNDA VEZ PARA A LINHA TELEFÓNICA...

Isto tem de ter uma solução. Pelo menos uma resposta. Insisto uma e outra vez pelo telefone. Não sei se o faço por clarividência ou se por aflição. Faço-o por necessidade. Sobre isso, não há dúvida. Acredito mesmo que quem pede recebe; que a quem é importuno acaba por lhe ser feita justiça. As tentativas de telefonema sucedem-se. Insisto, mas a teimosia não basta. O estado de espírito vai-se alterando. O resultado, contudo, não. Não consigo estabelecer contacto. Fico a falar sozinho. Do outro lado parece não haver ninguém para me escutar. Muito menos para me dirigir uma palavra sequer.
Vou-me abaixo. Caio-o. A cada telefonema frustrado fico prostrado, por dentro e por fora. À fadiga imposta pela doença soma-se-lhe a solidão. Estou só. Estou só, nisto. Desorientado, por não saber o que fazer. Encurralado, por não poder sair. Abandonado, por não ter quem me valha. Não sei como o vírus poderia conseguir algo pior.
Finalmente, alguém atende! Vem aí ajuda.
Sétima estação
                     FOTO D.R.

VERÓNICA PÕE A MÁSCARA RESPIRATÓRIA A JESUS

Não lhe chego a ver a cara. Vem protegida com fatos que nem sei descrever. Mas por detrás daquele equipamento sintético está alguém de verdade. Ela torna-se para mim, de imediato, a imagem da esperança. É um efeito inevitável de quem é visitado por um pouco de branco em circunstâncias tão escuras. Talvez haja uma saída.
Aprecio a delicadeza com que me aborda. Coloca na voz um tom intencionalmente tranquilo. Esforça-se, mas não consegue esconder a sua apreensão. Faz-me o que percebo serem as perguntas de catálogo para esta doença. Como boa profissional da área, cumpre os protocolos médicos. Percorre os vários sintomas. Tenho tudo. A minha desconfiança tornou-se também a dela. Só o teste o poderá confirmar. Mas entre nós não restam muitas dúvidas: é o vírus.
Já me habituara a dizê-lo na minha cabeça. Mas as minhas palavras não são as de um profissional de saúde. Ouvi-lo na boca dela foi outra coisa. Os meus medos e dúvidas, de repente, ganharam substância. Têm agora nome e diagnóstico. Só me resta mesmo colocar a máscara. Passo agora a ter de usar o grande símbolo desta pandemia. Também a mim, o vírus expropria-me do meu próprio o rosto. A minha face torna-se igual à de todos outros que foram também tocados por esta pandemia.
Oitava estação
Giandomenico Tiepolo

JESUS ESPERA SER ATENDIDO NUM HOSPITAL DE CAMPANHA

A minha situação degrada-se. Os sintomas avançam galopantes. Quase não consigo falar. Às tantas perguntas que me fazem devolvo apenas silêncio. Sou transportado por astronautas que visitam esta terra.
Estou agora num parque de estacionamento. Deserto de alcatrão, ocupado por um hospital improvisado. Apetece-me o silêncio, mas o amarelo daquelas tendas berra-me aos olhos. A emergência fez nascer um hospital à frente do hospital. É assim porque os desta doença são diferentes. Têm de ficar fora. À porta. Para não contaminar. Há que esperar. Nós somos muitos. Eles são poucos. É fora que é feita a triagem. Esta ditará o que fazer. Melhor: ditará o que me farão.
Entretanto, espero. A angústia está lá. Não sei por que graça, mantenho-me firme. Sinto os calores do corpo. Tremo e tusso sem parar. Padeço a espera. Mas também há dignidade na doença. Disto não vou abrir mão. Essa, repito, não sei por que graça tomou conta de mim. Vou com ela até ao fim.
Nona estação
                       FOTO D.R.

JESUS DESINFETA AS SUAS VESTES

O vírus pegou-se a tudo. Por isso nada posso ter comigo. Até o que me reveste o tenho de deixar. Despojado de tudo. Afastado de todos. Despem o nada que sobra de mim. Vejo os restos da minha identidade serem ensacados. Divididos pelo lixo hospitalar. Tudo hermeticamente selado e rotulado: biohazard.
Vestem-me de algo que não sou, mas em que me tornei. Roupa de hospital, assética e industrial. Sinto-me nu, embora vestido. Colocam-me na mão o suporte para o soro. O meu único afago tátil. A minha companhia mais próxima. O frio do metal queima na mão febril.
Eis o doente! Despersonalizado, torno-me apenas mais um naquele corredor sem fim. Irmão de todos os demais. E eles de mim. Familiarizados pelo que do vírus nos corre nas veias. Estamos juntos naquela barca invertida. Somos herdeiros nas sortes que a pandemia lançou.
Décima estação
 El Greco

JESUS FAZ (FINALMENTE) O TESTE

A dimensão do caos só é suplantada pela grandeza da generosidade. O esgotamento é geral. A dedicação também. Mas a escassez é evidente. Não chega para todos. Não chega para tudo. O desalento também se contagia, circulando entre doentes e cuidadores.
Desde que aqui cheguei aguardo o teste que tudo esclarecerá. Entre nós, os doentes, ele parece uma miragem. Um Godot para nós. É ele o assunto. Mas de que serve falar? Não o vejo chegar. Não basta chamar. A voz emudeceu. Os ouvidos, pelos vistos, também. O tempo é nosso inimigo.
Finalmente acontece. Fui testado. Sou até um privilegiado. A simplicidade do gesto acirra a irracionalidade da espera. Porquê? Agora é mais do mesmo. Agora é esperar a sentença. Calado e parado. Afinal é um juízo. De um juiz sem rosto nem nome. E eu réu de culpa nenhuma. Só falei na rua. Só toquei o impuro.
O veredicto chegou. O teste fala verdade enquanto mente. O negativo diz-se positivo. Estou condenado.
Décima primeira estação
Paul Rubens

JESUS É INTERNADO NUM PAVILHÃO POLIDESPORTIVO

Lavrada a sentença, uno-me aos amaldiçoados. Um armazém de doentes. Depósito de vírus. Num comboio de gente. Cada cama um vagão. Lado a lado dispostas. Olho à minha esquerda. Olho à minha direita. Condenados como eu. Uns resmungam a sua revolta. Gemem o seu desconforto. Outros mansamente quietos. Suportam tudo isto calados. Sou também uns e outros. Calo-me. Mas grito também.
Tubos e fios amarram-me à vida. Amarram-me também esta cama. O mesmo que me sustém, é isso que me prende. As artes da medicina fazem tudo por mim. O meu corpo já não responde. Eu já não respondo. Isto não tem cura.
Faltam-me os meus. Onde estão? Não me podem visitar. Não os posso ver nem tocar. Imagino a sua angústia lá fora. Percebo. E não percebo. Também esta cura me falta. Um cuidado. Uma companhia. Uma palavra. Uma oração. Uma mão na minha mão.Um abraço. Um beijo. Porque me abandonaram?
Décima segunda estação
                       FOTO D.R.

JESUS NÃO FOI CONTADO NAS ESTATÍSTICAS OFICIAIS

Não sou já ninguém. Não tenho já nome. Esse está posto aos meus pés, como se para ser por mim próprio pisado. Sou um número entre números. Foi isso que escreveram sobre este leito.
Sou apenas mais uma cifra nalguma contagem. Talvez nem isso. Até pelas contabilidades da doença serei ignorado? Sou apenas um ínfimo pontinho na linha de algum gráfico. Importo porque lhe acentuo o ângulo. Porque engrosso o volume de infetados graves. Porque não achato a curva. Sou já somente material para os modelos matemáticos. Variável a interferir com as projeções da pandemia.
Como vim acabar assim? Nunca fui bom com números. E em número acabei transformado. Sou bom com nomes. Mas esses, aqui não os encontro. O dos profissionais de saúde, não há forma de perguntar. O dos que estão a meu lado, desconheço. O meu, ninguém aqui conhece.
Décima terceira estação
                      FOTO D.R.

JESUS, POR FIM, "EXPIROU"

O fim aproxima-se. Pressinto-o. Já o vi acontecer por aqui. Já sei como é. A respiração arrasta-se. Tudo isto me sufoca. Trago o peso do universo inteiro sobre o meu peito. A cada golfada de ar preciso de o vencer. Os pulmões fraquejam. Tudo o resto também. O alento vai-me deixando, um pouco de cada vez. À minha volta reúnem-se mais batas brancas e máscaras que não escondem a apreensão. Tudo está preparado.
O contraste é grande. Por fora, o corpo luta. Tantos lutam por mim. Por dentro, simplesmente me entrego. É preciso saber partir. No derradeiro momento, boicoto o vírus. Não, não és tu que me roubas a vida. Sou que a entrego. Se é pela respiração que me destróis. Então é pela respiração que te derroto. Morres comigo.
E expirou.
Décima quarta estação
 Tiepolo

JESUS É SEPULTADO

De novo à porta. Agora do cemitério. Jardim de pedras. É ali, só ali, que se podem fazer umas preces. Encomendá-lo a quem sempre esteve com ele. Assim lhe dizia a fé. Entre muitos, convalesceu só. Embora ladeado, morreu só. Agora, é coerentemente sepultado só. Ou quase. Apenas alguma família mais íntima. A mãe de que se isolara. Mais um ou outro amigo discreto. Estes, porventura, a mais. A pandemia não o autoriza.
A ele já ninguém o vê. A urna vem selada. Ele não importa. Os que o choram também não. Ainda agora, só uma coisa importa: que o vírus não se propague. Nem na morte tem rosto. Ou toque. Ou beijo. Não há última vontade, nem mesmo depois da hora. Falta o perfume das flores. A oração é acelerada. O rito abreviado. Não se diz adeus assim! Não há vela. Nem nesta hora se lhe faz companhia. Só há luto. E a pergunta calada que rasga por dentro:
Quando terá isto fim?