UMA VIA SACRA DA PANDEMIA
Covid-19. Uma Via Sacra da pandemia
Esta Via Sacra é um texto de ficção em que Jesus Cristo percorre todas as etapas de um infetado com covid-19. Ou quando as coisas não correm tão bem, segundo um teólogo da Universidade Católica.
FOTO
D.R.
Primeira estação
Ecce Homo de
Antonello de Messina
JESUS TEM SINTOMAS
Foi mais um
dia intenso. Muito andar. Muito conversar. Encontros variados. Uns pessoais, tu
a tu. Outros não tanto. Reuniões com estranhos e conhecidos. Uns vindo de
perto, outros chegados de longe. Anoiteceu. Chegou, enfim, a hora do silêncio.
Saio da cidade e entro no recolhimento possível. «Descansa agora um pouco»,
ouço-me dizer.
Mas algo não
está bem. Sinto um incómodo vago. Não é uma certeza. É uma dúvida chata. Não é
nada de especial. É só uma sensação difusa de cansaço. E talvez também uma
ligeira dor de cabeça. Mas desconfio do meu corpo. Desconfio de mim mesmo. Deve
ser só psicológico.
A noite,
contudo, faz-se mais densa. O incómodo confirma-se. Vigio toda a noite. Que
escura se tornou! O meu próprio corpo o sinto arder. Suo. Suo muito. Estremeço
de febre. Afinal, não consigo sossegar. Agora soma-se-lhe a tosse. E uma dor
que veio morar no meu peito. Tusso até não poder mais. Inquieto-me. Canso-me.
Esgoto-me. A cabeça não para. Não consegue calar a pergunta: Porquê logo agora?
Porquê nesta hora? Pode não ser nada. Pode também ser aquele vírus de que oiço
falar. Até eu terei sido infetado? Espero o melhor. Mas angustio-me com a
possibilidade de tal não vir a acontecer. A minha alma está perturbada.
Afaste-se de mim esse vírus!
Segunda estação
Jesus e a
Cruz de Luis de Morales
JESUS INFORMA OS AMIGOS E
COLEGAS DE TRABALHO
Penso nos
outros. Sobretudo nos que me estão mais próximos. De repente, uma sombra lívida
me envolve. Gelo só de imaginar: e se lhes passei o vírus? Falta-me o ar. Não
são os pulmões que fraquejam. É o susto que me paralisa o peito. Sufoco só de
pensar que lhes possa ter transmitido o vírus. Logo eu. Logo a eles, a quem
tudo amo. Que tortura pérfida a desta doença! Corrói-nos os laços, antes mesmo
de nos destruir os pulmões. O seu primeiro sintoma é mesmo a solidão. E o medo.
Não apenas medo por mim. Medo também pelo próximo. Medo pelo que por minha
causa lhe venha a suceder. Que angústia de morte!
É preciso
agir. Tenho de lhes dizer. Preciso de os prevenir. Falo-lhes à distância.
Encontro-os ainda a dormir. Não vigiaram comigo. Aliás, nestas circunstâncias,
não o poderiam fazer. Mostro-me como estou. Falo-lhes abertamente do que sinto.
Surpreendidos, não compreendem. Anuncio o meu necessário isolamento. Vou ter me
retirar. Vou-lhes ser retirado. Mas eles mo serão também. Antecipo-lhes o seu
próprio isolamento. Sou eu agora o leproso e o excluído. Tomem cuidado. Estejam
atentos aos sinais. Este vírus também vos há de perseguir a vós. E remato:
levantem-se, vão.
Terceira estação
FOTO D.R.
JESUS LIGA UMA PRIMEIRA VEZ
PARA A LINHA TELEFÓNICA DE APOIO
Preciso de
ajuda. Recorro ao que insistentemente publicitam estar ali, disponível para me
dizer o que é preciso fazer. Pelo telefone é seguro. Garantem que será simples.
Há até boas razões cívicas para o fazer. Assim não entupirei ainda mais os já
sobrelotados serviços de saúde. Poderei até curar-me aqui, sem sair do meu
espaço e fora da cidade. Isto, se é que estou mesmo doente. Do outro lado
estará alguém que conhece os mistérios deste vírus. Bastará chamar e essa voz
mágica a tudo responderá.
Assim faço.
De tão ouvido por estes dias, o número de telefone sei-o de cor. Faço a
chamada. É preciso esperar. Di-lo uma voz mecânica, interpolada por música que
não é mais que um imenso vazio sonoro. Ao início havia a expectativa de as
coisas se poderem compor. E o ânimo correspondente. Mas a prolongada espera
tudo muda. Primeiro, transformando-os em irritação. Depois em cansaço. Ao fim,
em desnorte. Agora o que é que eu faço?
Quarta estação
Jesus
encontra a sua mãe de Theophile_Lybaert
JESUS ISOLA-SE DE SUA MÃE
Sinto falta
da minha mãe. A doença tem o condão de ressuscitar em nós aquela carência de
criança que só uma mãe pode satisfazer. A solidão deste vírus torna a sua
ausência ainda mais sentida. Tenho de lhe falar. Não posso deixar de lhe
contar. Ela própria, decerto, já intuiu que algo se passa. A uma mãe não se
pode mentir e nada se consegue esconder. Mesmo sem saber, ela já o saberá.
Mas, ao
mesmo tempo, não o posso fazer. É preciso cabeça fria. Sejamos lógicos. Quererá
vir imediatamente. Correrá sobre quaisquer obstáculos. Não se poupará.
Esquecer-se-á de si. Relativizará os cuidados e distanciamentos recomendados.
Quererá colocar-se entre mim e o vírus. Mas já tem alguma idade. Não pode ser.
Pertence ao grupo de risco. Para ela será provavelmente fatal. Temos de estar
isolados. Temos de nos isolar um do outro.
Estranha
terapêutica nos impõe este vírus: isolar um filho de uma mãe. Nova expulsão,
agora imposta pelas leis mais negras da natureza. Como se uma mãe, como se a
minha mãe, não experimentasse também em si o vírus que me mora no corpo. Como
se nela não morasse tudo de meu, ela que me trouxe todo em si.
Quinta estação
Jesus
carrega a Cruz de Ticiano
JESUS É AJUDADO PELO CIRENEU
A FAZER COMPRAS NO SUPERMERCADO
Acasos da
vida ou talvez coisa diferente. Só me resta o vizinho do lado. Aquele que até
me parecia simpático, mas com quem nunca troquei uma palavra. Só um esporádico
e atrapalhado cruzar de olhares. Aquele com que por vezes nos cumprimentamos em
sociedade. Vemos que fomos vistos e isso basta para garantir o ritual.
Instrumentaliza-se o olhar. Assim não passamos por antipáticos e,
simultaneamente, conservamos os outros à distância. É um olhar sanitário, sem
contacto físico ou emocional. Como se prescreve por estes dias.
Mas que
fazer? Não me resta mais ninguém. Consta que este vizinho, neste contexto de
pandemia, tem ajudado os mais velhos das redondezas. Faz-lhes as compras. Vai
ao supermercado, à padaria e à farmácia. Garante-lhes o essencial a quem se
encontra nesta reclusão domiciliária. Ele é, paradoxalmente, sinal da vitória e
da derrota do vírus. Impede que os mais vulneráveis se exponham ao seu
contágio. Mas mostra bem a força do cerco que ele nos montou.
Agora
tocou-me a mim. Sou eu quem preciso dele. Sou eu, agora, o vulnerável. Em
quarentena, aprendo a custo o que isso significa.
Sexta estação
Verónica
JESUS LIGA UMA SEGUNDA VEZ
PARA A LINHA TELEFÓNICA...
Isto tem de
ter uma solução. Pelo menos uma resposta. Insisto uma e outra vez pelo
telefone. Não sei se o faço por clarividência ou se por aflição. Faço-o por
necessidade. Sobre isso, não há dúvida. Acredito mesmo que quem pede recebe;
que a quem é importuno acaba por lhe ser feita justiça. As tentativas de
telefonema sucedem-se. Insisto, mas a teimosia não basta. O estado de espírito
vai-se alterando. O resultado, contudo, não. Não consigo estabelecer contacto.
Fico a falar sozinho. Do outro lado parece não haver ninguém para me escutar.
Muito menos para me dirigir uma palavra sequer.
Vou-me
abaixo. Caio-o. A cada telefonema frustrado fico prostrado, por dentro e por
fora. À fadiga imposta pela doença soma-se-lhe a solidão. Estou só. Estou só,
nisto. Desorientado, por não saber o que fazer. Encurralado, por não poder
sair. Abandonado, por não ter quem me valha. Não sei como o vírus poderia
conseguir algo pior.
Finalmente,
alguém atende! Vem aí ajuda.
Sétima estação
FOTO D.R.
VERÓNICA PÕE A MÁSCARA
RESPIRATÓRIA A JESUS
Não lhe
chego a ver a cara. Vem protegida com fatos que nem sei descrever. Mas por
detrás daquele equipamento sintético está alguém de verdade. Ela torna-se para
mim, de imediato, a imagem da esperança. É um efeito inevitável de quem é
visitado por um pouco de branco em circunstâncias tão escuras. Talvez haja uma
saída.
Aprecio a
delicadeza com que me aborda. Coloca na voz um tom intencionalmente tranquilo.
Esforça-se, mas não consegue esconder a sua apreensão. Faz-me o que percebo
serem as perguntas de catálogo para esta doença. Como boa profissional da área,
cumpre os protocolos médicos. Percorre os vários sintomas. Tenho tudo. A minha
desconfiança tornou-se também a dela. Só o teste o poderá confirmar. Mas entre
nós não restam muitas dúvidas: é o vírus.
Já me
habituara a dizê-lo na minha cabeça. Mas as minhas palavras não são as de um
profissional de saúde. Ouvi-lo na boca dela foi outra coisa. Os meus medos e
dúvidas, de repente, ganharam substância. Têm agora nome e diagnóstico. Só me
resta mesmo colocar a máscara. Passo agora a ter de usar o grande símbolo desta
pandemia. Também a mim, o vírus expropria-me do meu próprio o rosto. A minha
face torna-se igual à de todos outros que foram também tocados por esta
pandemia.
Oitava estação
Giandomenico
Tiepolo
JESUS ESPERA SER ATENDIDO NUM
HOSPITAL DE CAMPANHA
A minha
situação degrada-se. Os sintomas avançam galopantes. Quase não consigo falar.
Às tantas perguntas que me fazem devolvo apenas silêncio. Sou transportado por
astronautas que visitam esta terra.
Estou agora
num parque de estacionamento. Deserto de alcatrão, ocupado por um hospital
improvisado. Apetece-me o silêncio, mas o amarelo daquelas tendas berra-me aos
olhos. A emergência fez nascer um hospital à frente do hospital. É assim porque
os desta doença são diferentes. Têm de ficar fora. À porta. Para não
contaminar. Há que esperar. Nós somos muitos. Eles são poucos. É fora que é
feita a triagem. Esta ditará o que fazer. Melhor: ditará o que me farão.
Entretanto,
espero. A angústia está lá. Não sei por que graça, mantenho-me firme. Sinto os
calores do corpo. Tremo e tusso sem parar. Padeço a espera. Mas também há
dignidade na doença. Disto não vou abrir mão. Essa, repito, não sei por que
graça tomou conta de mim. Vou com ela até ao fim.
Nona estação
FOTO D.R.
JESUS DESINFETA AS SUAS
VESTES
O vírus
pegou-se a tudo. Por isso nada posso ter comigo. Até o que me reveste o tenho
de deixar. Despojado de tudo. Afastado de todos. Despem o nada que sobra de
mim. Vejo os restos da minha identidade serem ensacados. Divididos pelo lixo
hospitalar. Tudo hermeticamente selado e rotulado: biohazard.
Vestem-me de
algo que não sou, mas em que me tornei. Roupa de hospital, assética e
industrial. Sinto-me nu, embora vestido. Colocam-me na mão o suporte para o
soro. O meu único afago tátil. A minha companhia mais próxima. O frio do metal
queima na mão febril.
Eis o
doente! Despersonalizado, torno-me apenas mais um naquele corredor sem fim.
Irmão de todos os demais. E eles de mim. Familiarizados pelo que do vírus nos
corre nas veias. Estamos juntos naquela barca invertida. Somos herdeiros nas
sortes que a pandemia lançou.
Décima estação
El Greco
JESUS FAZ (FINALMENTE) O
TESTE
A dimensão
do caos só é suplantada pela grandeza da generosidade. O esgotamento é geral. A
dedicação também. Mas a escassez é evidente. Não chega para todos. Não chega
para tudo. O desalento também se contagia, circulando entre doentes e
cuidadores.
Desde que
aqui cheguei aguardo o teste que tudo esclarecerá. Entre nós, os doentes, ele
parece uma miragem. Um Godot para nós. É ele o assunto. Mas de que serve falar?
Não o vejo chegar. Não basta chamar. A voz emudeceu. Os ouvidos, pelos vistos,
também. O tempo é nosso inimigo.
Finalmente
acontece. Fui testado. Sou até um privilegiado. A simplicidade do gesto acirra
a irracionalidade da espera. Porquê? Agora é mais do mesmo. Agora é esperar a
sentença. Calado e parado. Afinal é um juízo. De um juiz sem rosto nem nome. E
eu réu de culpa nenhuma. Só falei na rua. Só toquei o impuro.
O veredicto
chegou. O teste fala verdade enquanto mente. O negativo diz-se positivo. Estou
condenado.
Décima primeira estação
Paul Rubens
JESUS É INTERNADO NUM
PAVILHÃO POLIDESPORTIVO
Lavrada a
sentença, uno-me aos amaldiçoados. Um armazém de doentes. Depósito de vírus.
Num comboio de gente. Cada cama um vagão. Lado a lado dispostas. Olho à minha
esquerda. Olho à minha direita. Condenados como eu. Uns resmungam a sua
revolta. Gemem o seu desconforto. Outros mansamente quietos. Suportam tudo isto
calados. Sou também uns e outros. Calo-me. Mas grito também.
Tubos e fios
amarram-me à vida. Amarram-me também esta cama. O mesmo que me sustém, é isso
que me prende. As artes da medicina fazem tudo por mim. O meu corpo já não
responde. Eu já não respondo. Isto não tem cura.
Faltam-me os
meus. Onde estão? Não me podem visitar. Não os posso ver nem tocar. Imagino a
sua angústia lá fora. Percebo. E não percebo. Também esta cura me falta. Um
cuidado. Uma companhia. Uma palavra. Uma oração. Uma mão na minha mão.Um
abraço. Um beijo. Porque me abandonaram?
Décima segunda estação
FOTO D.R.
JESUS NÃO FOI CONTADO NAS
ESTATÍSTICAS OFICIAIS
Não sou já
ninguém. Não tenho já nome. Esse está posto aos meus pés, como se para ser por
mim próprio pisado. Sou um número entre números. Foi isso que escreveram sobre este
leito.
Sou apenas
mais uma cifra nalguma contagem. Talvez nem isso. Até pelas contabilidades da
doença serei ignorado? Sou apenas um ínfimo pontinho na linha de algum gráfico.
Importo porque lhe acentuo o ângulo. Porque engrosso o volume de infetados
graves. Porque não achato a curva. Sou já somente material para os modelos
matemáticos. Variável a interferir com as projeções da pandemia.
Como vim
acabar assim? Nunca fui bom com números. E em número acabei transformado. Sou
bom com nomes. Mas esses, aqui não os encontro. O dos profissionais de saúde,
não há forma de perguntar. O dos que estão a meu lado, desconheço. O meu,
ninguém aqui conhece.
Décima terceira estação
FOTO D.R.
JESUS, POR FIM,
"EXPIROU"
O fim
aproxima-se. Pressinto-o. Já o vi acontecer por aqui. Já sei como é. A
respiração arrasta-se. Tudo isto me sufoca. Trago o peso do universo inteiro
sobre o meu peito. A cada golfada de ar preciso de o vencer. Os pulmões
fraquejam. Tudo o resto também. O alento vai-me deixando, um pouco de cada vez.
À minha volta reúnem-se mais batas brancas e máscaras que não escondem a
apreensão. Tudo está preparado.
O contraste
é grande. Por fora, o corpo luta. Tantos lutam por mim. Por dentro,
simplesmente me entrego. É preciso saber partir. No derradeiro momento, boicoto
o vírus. Não, não és tu que me roubas a vida. Sou que a entrego. Se é pela
respiração que me destróis. Então é pela respiração que te derroto. Morres
comigo.
E expirou.
Décima quarta estação
Tiepolo
JESUS É SEPULTADO
De novo à
porta. Agora do cemitério. Jardim de pedras. É ali, só ali, que se podem fazer
umas preces. Encomendá-lo a quem sempre esteve com ele. Assim lhe dizia a fé.
Entre muitos, convalesceu só. Embora ladeado, morreu só. Agora, é coerentemente
sepultado só. Ou quase. Apenas alguma família mais íntima. A mãe de que se
isolara. Mais um ou outro amigo discreto. Estes, porventura, a mais. A pandemia
não o autoriza.
A ele já
ninguém o vê. A urna vem selada. Ele não importa. Os que o choram também não.
Ainda agora, só uma coisa importa: que o vírus não se propague. Nem na morte
tem rosto. Ou toque. Ou beijo. Não há última vontade, nem mesmo depois da hora.
Falta o perfume das flores. A oração é acelerada. O rito abreviado. Não se diz
adeus assim! Não há vela. Nem nesta hora se lhe faz companhia. Só há luto. E a
pergunta calada que rasga por dentro:
Quando terá
isto fim?