sábado, 23 de março de 2024

 QUARESMA PASSO A PASSO

Semana Santa  

2024 - Ano B

 

Tema da Semana Santa:

«Onde queres que façamos os preparativos para comer a Páscoa?».

Domingo de Ramos – 24/03/2024

Evangelho Mc 14, 1-15,47

«Meu Deus, meu Deus, porque Me abandonastes?»

Com as leituras deste domingo iniciamos a Semana Santa. Somos convidados a viver esta semana, que agora começa, num ambiente de oração, recolhimento e silêncio interior. Que seja um tempo de verdadeiro encontro com Deus, Pai, Filho e Espírito Santo. Que o Senhor, que deu a vida por cada um de nós, tenha compaixão da humanidade inteira e nos salve. Confiemos totalmente n’Ele, hoje e sempre, pelos séculos sem fim. 

Na 1ªleitura (Is. 50, 4-7) Isaías fala-nos d’Aquele que todo Se entrega ao Pai, num ato de Amor total, sem qualquer reserva, para salvação de cada um de nós. É nesta entrega incondicional a Deus que Jesus é prefigurado por Isaías. É nesta intimidade total com o Pai que Jesus nos revela Deus Amor infinito pelas Suas criaturas. Deixemo-nos amar por Deus, Trindade Santíssima, para que, cada um dos que connosco convive, possa também sentir-se assim amado por Deus, na totalidade do seu ser.

“O Senhor deu-me a graça de falar como um discípulo, para que eu saiba dizer uma palavra de alento aos que andam abatidos. Todas as manhãs Ele desperta os meus ouvidos, para eu escutar, como escutam os discípulos. O Senhor Deus abriu-me os ouvidos e eu não resisti nem recuei um passo. Apresentei as costas àqueles que me batiam e a face aos que me arrancavam a barba; não desviei o meu rosto dos que me insultavam e cuspiam. Mas o Senhor Deus veio em meu auxílio, e, por isso, não fiquei envergonhado; tornei o meu rosto duro como pedra, e sei que não ficarei desiludido.”

Na 2ª leitura (Filip 2, 6-11) S.Paulo explica-nos o mistério da Paixão. Apresenta-nos Jesus como Aquele que nos resgatou, por Amor a Deus e nos adquiriu para o Pai, com o Seu Sangue. N’Ele fomos garantidos como filhos de Deus, no Filho, passando também nós a poder tratar Deus por Abbá. Confiemos e entreguemo-nos, de coração, a Deus, uno e trino.

“Cristo Jesus, que era de condição divina, não Se valeu da sua igualdade com Deus, mas aniquilou-Se a Si próprio. Assumindo a condição de servo, tornou-Se semelhante aos homens. Aparecendo como homem, humilhou-Se ainda mais, obedecendo até à morte e morte de cruz. Por isso Deus O exaltou e Lhe deu um nome que está acima de todos os nomes, para que ao nome de Jesus todos se ajoelhem no céu, na terra e nos abismos, e toda a língua proclame que Jesus Cristo é o Senhor, para glória de Deus Pai.”

O texto, do evangelho de hoje, (Mc 14, 1 – 15, 47) introduz-nos em duas multidões diferentes: uma, a dos que vêm a Jerusalém celebrar a Páscoa, gente simples, temente a Deus, que louva Jesus e o aclama como Filho de David; a outra, gente importante, socialmente falando, muitos deles fariseus, que querem acabar com Jesus, querem que Ele morra. E é nesta dialética de morte e de vida, de festa e de tristeza, que somos conduzidos, sem nunca perder de vista o Amor maior de Deus que atinge o pico, quando Jesus todo se entrega, por Amor, no Jardim das Oliveiras. É aí que Jesus, o inocente, que é também homem, num sofrimento sem paralelo, verdadeiramente se sente só e abandonado e, no limite das Suas forças, todo Se entrega por Amor ao Pai, para restabelecer, de uma vez para sempre, a Aliança entre Deus e a humanidade, por nosso Amor. Meu Senhor e meu Deus, como nos amais! Bendito e louvado sejais pelo Vosso Eterno Amor!

“Faltavam dois dias para a festa da Páscoa e dos Ázimos e os príncipes dos sacerdotes e os escribas procuravam maneira de se apoderarem de Jesus à traição para Lhe darem a morte. Mas diziam:

R «Durante a festa, não, para que não haja algum tumulto entre o povo».

N Jesus encontrava-Se em Betânia, em casa de Simão o Leproso, e, estando à mesa, veio uma mulher que trazia um vaso de alabastro com perfume de nardo puro de alto preço. Partiu o vaso de alabastro e derramou-o sobre a cabeça de Jesus. Alguns indignaram-se e diziam entre si:
R «Para que foi esse desperdício de perfume? Podia vender-se por mais de duzentos denários e dar o dinheiro aos pobres».

N E censuravam a mulher com aspereza. Mas Jesus disse:

J «Deixai-a. Porque estais a importuná-la? Ela fez uma boa ação para comigo. Na verdade, sempre tereis os pobres convosco e, quando quiserdes, podereis fazer-lhes bem; mas a Mim, nem sempre Me tereis. Ela fez o que estava ao seu alcance: ungiu de antemão o meu corpo para a sepultura. Em verdade vos digo: Onde quer que se proclamar o Evangelho, pelo mundo inteiro, dir-se-á também em sua memória o que ela fez».

N Então, Judas Iscariotes, um dos Doze, foi ter com os príncipes dos sacerdotes para lhes entregar Jesus. Quando o ouviram, alegraram-se e prometeram dar-lhe dinheiro. E ele procurava uma oportunidade para entregar Jesus.

N No primeiro dia dos Ázimos, em que se imolava o cordeiro pascal, os discípulos perguntaram a Jesus:

R «Onde queres que façamos os preparativos para comer a Páscoa?».

N Jesus enviou dois discípulos e disse-lhes:

J «Ide à cidade. Virá ao vosso encontro um homem com uma bilha de água. Segui-o e, onde ele entrar, dizei ao dono da casa: ‘O Mestre pergunta: Onde está a sala, em que hei de comer a Páscoa com os meus discípulos?’. Ele vos mostrará uma grande sala no andar superior, alcatifada e pronta. Preparai-nos lá o que é preciso».

N Os discípulos partiram e foram à cidade. Encontraram tudo como Jesus lhes tinha dito e prepararam a Páscoa.

Ao cair da tarde, chegou Jesus com os Doze. Enquanto estavam à mesa e comiam, Jesus disse:

J «Em verdade vos digo: Um de vós, que está comigo à mesa, há de entregar-Me».

N Eles começaram a entristecer-se e a dizer um após outro:

R «Serei eu?».

N Jesus respondeu-lhes:

J «É um dos Doze, que mete comigo a mão no prato. O Filho do homem vai partir, como está escrito a seu respeito, mas ai daquele por quem o Filho do homem vai ser traído! Teria sido melhor para esse homem não ter nascido».

N Enquanto comiam, Jesus tomou o pão, recitou a bênção e partiu-o, deu-o aos discípulos e disse:

J «Tomai: isto é o meu Corpo».

N Depois tomou um cálice, deu graças e

entregou-lho. E todos beberam dele. Disse Jesus:

J «Este é o meu Sangue, o Sangue da nova aliança, derramado pela multidão dos homens. Em verdade vos digo: Não voltarei a beber do fruto da videira, até ao dia em que beberei do vinho novo no reino de Deus».

N Cantaram os salmos e saíram para o monte das Oliveiras.

N Disse-lhes Jesus:

J «Todos vós Me abandonareis, como está escrito: ‘Ferirei o pastor e dispersar-se-ão as ovelhas’. Mas depois de ressuscitar, irei à vossa frente para a Galileia».

N Disse-Lhe Pedro:

R «Embora todos Te abandonem, eu não».

N Jesus respondeu-lhe:

J «Em verdade te digo: Hoje, esta mesma noite, antes de o galo cantar duas vezes, três vezes Me negarás».

N Mas Pedro continuava a insistir:
R «Ainda que tenha de morrer contigo, não Te negarei».
N E todos afirmaram o mesmo.

Entretanto, chegaram a uma propriedade
chamada Getsémani e Jesus disse aos seus discípulos:

J «Ficai aqui, enquanto Eu vou orar».

N Tomou consigo Pedro, Tiago e João e começou a sentir pavor e angústia. Disse-lhes então:

J «A minha alma está numa tristeza de morte. Ficai aqui e vigiai».

N Adiantando-Se um pouco, caiu por terra e orou para que, se fosse possível, se afastasse d’Ele aquela hora. Jesus dizia:

J «Abá, Pai, tudo Te é possível: afasta de Mim este cálice. Contudo, não se faça o que Eu quero, mas o que Tu queres».

N Depois, foi ter com os discípulos, encontrou-os a dormir e disse a Pedro:

J «Simão, estás a dormir? Não pudeste vigiar uma hora? Vigiai e orai, para não entrardes em tentação. O espírito está pronto, mas a carne é fraca».

N Afastou-Se de novo e orou, dizendo as mesmas palavras. Voltou novamente e encontrou-os dormindo, porque tinham os olhos pesados e não sabiam que responder. Jesus voltou pela terceira vez e disse-lhes:

J «Dormi agora e descansai... Chegou a hora: o Filho do homem vai ser entregue às mãos dos pecadores. Levantai-vos. Vamos. Já se aproxima aquele que Me vai entregar».

N Ainda Jesus estava a falar, quando apareceu Judas, um dos Doze, e com ele uma grande multidão, com espadas e varapaus, enviada pelos príncipes dos sacerdotes, pelos escribas e os anciãos. O traidor tinha-lhes dado este sinal: «Aquele que eu beijar, é esse mesmo. Prendei-O e levai-O bem seguro». Logo que chegou, aproximou-se de Jesus e beijou-O, dizendo:

R «Mestre».

N Então deitaram-Lhe as mãos e prenderam-n’O.

Um dos presentes puxou da espada e feriu o servo do sumo sacerdote, cortando-lhe a orelha. Jesus tomou a palavra e disse-lhes:

J «Vós saístes com espadas e varapaus para Me prender, como se fosse um salteador. Todos os dias Eu estava no meio de vós, a ensinar no templo, e não Me prendestes! Mas é para se cumprirem as Escrituras».

N Então os discípulos deixaram-n’O e fugiram todos. Seguiu-O um jovem, envolto apenas num lençol. Agarraram-no, mas ele, largando o lençol, fugiu nu.

N Levaram então Jesus à presença do sumo sacerdote, onde se reuniram todos os príncipes dos sacerdotes, os anciãos e os escribas. Pedro, que O seguira de longe, até ao interior do palácio do sumo sacerdote, estava sentado com os guardas, a aquecer-se ao lume. Entretanto, os príncipes dos sacerdotes e todo o Sinédrio procuravam um testemunho contra Jesus para Lhe dar a morte, mas não o encontravam. Muitos testemunhavam falsamente contra Ele, mas os seus depoimentos não eram concordes. Levantaram-se então alguns, para proferir contra Ele este falso testemunho:

R «Ouvimo-l’O dizer: ‘Destruirei este templo feito pelos homens e em três dias construirei outro que não será feito pelos homens’».

N Mas nem assim o depoimento deles era concorde. Então o sumo sacerdote levantou-se no meio de todos e perguntou a Jesus:

R «Não respondes nada ao que eles depõem contra Ti?».

N Mas Jesus continuava calado e nada respondeu. O sumo sacerdote voltou a interrogá-l’O:

R «És Tu o Messias, Filho do Deus Bendito?».

N Jesus respondeu:

J «Eu Sou. E vós vereis o Filho do homem sentado à direita do Todo-poderoso vir sobre as nuvens do céu».

N O sumo sacerdote rasgou as vestes e disse:

R «Que necessidade temos ainda de testemunhas? Ouvistes a blasfémia. Que vos parece?».

N Todos sentenciaram que Jesus era réu de morte. Depois, alguns começaram a cuspir-Lhe, a tapar-Lhe o rosto com um véu e a dar-Lhe punhadas, dizendo:

R «Adivinha».

N E os guardas davam-Lhe bofetadas. Pedro estava em baixo, no pátio, quando chegou uma das criadas do sumo sacerdote. Ao vê-lo a aquecer-se, olhou-o de frente e disse-lhe:

R «Tu também estavas com Jesus, o Nazareno».

N Mas ele negou:

R «Não sei nem entendo o que dizes».

N Depois saiu para o vestíbulo e o galo cantou. A criada, vendo-o de novo, começou a dizer aos presentes:

R «Este é um deles».

N Mas ele negou segunda vez. Pouco depois, os presentes diziam também a Pedro:

R «Na verdade, tu és deles, pois também és galileu».

N Mas ele começou a dizer imprecações e a jurar:

R «Não conheço esse homem de quem falais».

N E logo o galo cantou pela segunda vez. Então Pedro lembrou-se do que Jesus lhe tinha dito: «Antes de o galo cantar duas vezes, três vezes Me negarás». E desatou a chorar.

N Logo de manhã, os príncipes dos sacerdotes reuniram-se em conselho com os anciãos e os escribas e todo o Sinédrio. Depois de terem manietado Jesus, foram entregá-l’O a Pilatos.
Pilatos perguntou-Lhe:

R «Tu és o Rei dos judeus?».

N Jesus respondeu:

J «É como dizes».

N E os príncipes dos sacerdotes faziam muitas acusações contra Ele. Pilatos interrogou-O de novo:

R «Não respondes nada? Vê de quantas coisas Te acusam».

N Mas Jesus nada respondeu, de modo que Pilatos estava admirado. Pela festa da Páscoa, Pilatos costumava soltar-lhes um preso à sua escolha. Havia um, chamado Barrabás, preso com os insurretos que numa revolta tinham cometido um assassínio. A multidão, subindo, começou a pedir o que era costume conceder-lhes. Pilatos respondeu:

R «Quereis que vos solte o Rei dos judeus?».

N Ele sabia que os príncipes dos sacerdotes O tinham entregado por inveja. Entretanto, os príncipes dos sacerdotes incitaram a multidão a pedir que lhes soltasse antes Barrabás. Pilatos, tomando de novo a palavra, perguntou-lhes:

R «Então que hei de fazer d’Aquele que chamais o Rei dos judeus?».

N Eles gritaram de novo:

R «Crucifica-O!».

N Pilatos insistiu:

R «Que mal fez Ele?».

N Mas eles gritaram ainda mais:

R «Crucifica-O!».

N Então Pilatos, querendo contentar a multidão, soltou-lhes Barrabás e, depois de ter mandado açoitar Jesus, entregou-O para ser crucificado. Os soldados levaram-n’O para dentro do palácio, que era o pretório, e convocaram toda a coorte. Revestiram-n’O com um manto de púrpura e puseram-Lhe na cabeça uma coroa de espinhos que haviam tecido. Depois começaram a saudá-l’O:

R «Salve, Rei dos judeus!».

N Batiam-Lhe na cabeça com uma cana, cuspiam-Lhe e, dobrando os joelhos, prostravam-se diante d’Ele. Depois de O terem escarnecido, tiraram-Lhe o manto de púrpura e vestiram-Lhe as suas roupas. Em seguida levaram-n’O dali para O crucificarem. Requisitaram, para Lhe levar a cruz, um homem que passava, vindo do campo, Simão de Cirene, pai de Alexandre e Rufo. E levaram Jesus ao lugar do Gólgota, quer dizer, lugar do Calvário. Queriam dar-Lhe vinho misturado com mirra, mas Ele não o quis beber. Depois crucificaram-n’O. E repartiram entre si as suas vestes, tirando-as à sorte, para verem o que levaria cada um.

Eram nove horas da manhã quando O crucificaram. O letreiro que indicava a causa da condenação tinha escrito: «Rei dos Judeus».

Crucificaram com Ele dois salteadores, um à direita e outro à esquerda. Os que passavam insultavam-n’O e abanavam a cabeça, dizendo:
R «Tu que destruías o templo e o reedificavas em três dias, salva-Te a Ti mesmo e desce da cruz». Os príncipes dos sacerdotes e os escribas troçavam uns com os outros, dizendo:
R «Salvou os outros e não pode salvar-Se a Si mesmo! Esse Messias, o Rei de Israel, desça agora da cruz, para nós vermos e acreditarmos».
N Até os que estavam crucificados com Ele O injuriavam. Quando chegou o meio-dia, as trevas envolveram toda a terra até às três horas da tarde. E às três horas da tarde, Jesus clamou com voz forte:

J «Eloí, Eloí, lemá sabactáni?».

N Que quer dizer: «Meu Deus, meu Deus, porque Me abandonastes?». Alguns dos presentes, ouvindo isto, disseram:

R «Está a chamar por Elias».

N Alguém correu a embeber uma esponja em vinagre e, pondo-a na ponta duma cana, deu-Lhe a beber e disse:

R «Deixa ver se Elias vem tirá-l’O dali».

N Então Jesus, soltando um grande brado, expirou. O véu do templo rasgou-se em duas partes de alto a baixo. O centurião que estava em frente de Jesus, ao vê-l’O expirar daquela maneira, exclamou:

R «Na verdade, este homem era Filho de Deus».

N Estavam também ali umas mulheres a observar de longe, entre elas Maria Madalena, Maria, mãe de Tiago e de José, e Salomé, que acompanhavam e serviam Jesus, quando estava na Galileia, e muitas outras que tinham subido com Ele a Jerusalém.

Ao cair da tarde – visto ser a Preparação, isto é, a véspera do sábado – José de Arimateia, ilustre membro do Sinédrio, que também esperava o reino de Deus, foi corajosamente à presença de Pilatos e pediu-lhe o corpo de Jesus. Pilatos ficou admirado de Ele já estar morto e, mandando chamar o centurião, perguntou-lhe se Jesus já tinha morrido. Informado pelo centurião, ordenou que o corpo fosse entregue a José. José comprou um lençol, desceu o corpo de Jesus e envolveu-O no lençol; depois depositou-O num sepulcro escavado na rocha e rolou uma pedra para a entrada do sepulcro. Entretanto, Maria Madalena e Maria, mãe de José, observavam onde Jesus tinha sido depositado.”

O relato da paixão de Jesus, que a liturgia nos propõe neste domingo, ocupa um quinto de todo o Evangelho segundo Marcos. É o relato mais antigo contido nos Evangelhos, uma longa narração em que encontramos o eco das testemunhas, acima de tudo de Pedro, cujo nome retorna frequentemente, e depois dos outros discípulos. Todos, porém, no momento da prisão, fogem...

Dada a amplitude desse trecho, não podemos fazer um comentário pontual; portanto, limitar-nos-emos a um olhar de conjunto que evidencia a boa notícia, o Evangelho, contido no relato da Paixão. 

Essa narrativa põe à prova o nosso olhar de fé sobre Jesus: somos quase forçados a sofrer o escândalo e a loucura da cruz (cf. 1Co 1,23), somos colocados diante do resultado de um aparente falhanço total da vida de Jesus. Aquele que: passou no meio do seu povo fazendo o bem (cf. At 10,38), cuidando dos doentes e às vezes curando-os, e forçando o diabo a obedecer-Lhe(cf. Mc 1,27) e a recuar; como profeta poderoso em obras e palavras, “todos O procuravam” (cf. Mc 1,37); atraiu a si as multidões, que O aclamaram como bem-aventurado e como Aquele que vem no nome do Senhor (cf. Mc 11,9); conseguiu reunir ao seu redor uma comunidade itinerante de homens e mulheres que O reconhecia como Profeta e Messias, esse homem, Jesus de Nazaré, conhece um fim impensável e chega a uma morte infame, cruel e escandalosa.

Cada leitor atento do Evangelho, cada discípulo que seguiu Jesus desde seu batismo até o fim, não pode deixar de ficar profundamente abalado, perturbado com tal resultado... 

Onde foi parar – alguém se pode perguntar – a força de Jesus, o poder com que Ele libertava da doença e da morte aqueles que por elas estavam marcados? “A outros salvou, a Si mesmo não pode salvar” (Mc 15,31) – os seus adversários zombam dele...

Onde foi parar aquele carisma profético com o qual Ele anunciava como muito próximo ou, melhor, presente o Reino de Deus (cf. Mc 1,15)? Por que é que, na Paixão, Jesus está reduzido ao silêncio e Se deixa humilhar sem abrir a boca (cf. Is 53,7)?

Onde está aquela autoridade que lhe foi reconhecida tantas vezes por aqueles que o chamavam de Mestre, o aclamavam como Profeta, o invocavam como Messias e Salvador?

Todos aqueles que pareciam ser seus seguidores e simpatizantes desapareceram, e Jesus está sozinho, abandonado por todos, inerme e sem qualquer defesa.

Mas o enigma é ainda mais radical: onde está Deus durante a Paixão de Jesus? Aquele Deus que parecia ser tão próximo d’Ele e a quem chamava confidencialmente de “Abba”, isto é, “Paizinho”; aquele Deus que O havia declarado “Filho amado” no batismo (cf. Mc 1,11) e na transfiguração (cf. Mc 9,7); aquele Deus por quem Jesus havia colocado em jogo e consumido toda a Sua vida, onde está agora?

Não nos esqueçamos: a morte de cruz – como o apóstolo Paulo compreendeu - é a morte de um amaldiçoado por Deus (cf. Dt 21,23; Gl 3,13), julgado como tal pela legítima autoridade religiosa de Israel, e ao mesmo tempo, é o suplício extremo infligido a quem é considerado como nocivo à sociedade humana. Jesus verdadeiramente morreu como um impostor, na ignomínia, pendurado entre céu e terra, por ter sido rejeitado pelos homens… mas, na fé, como cristãos, sabemos que não é o fim... Jesus provou-nos que  a maldade dos homens e as forças da morte não têm a última palavra, ainda que assim possa parecer...

http://jesuitasbrasil.org.br/

Glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo. Assim como era no princípio, agora e sempre. Ámen.

«Meu Deus, meu Deus, porque Me abandonaste?» (Mt 27, 46): é a invocação que a Liturgia nos fez repetir hoje no Salmo Responsorial (cf. Sal 22/21, 2), sendo também – no Evangelho que ouvimos – a única pronunciada na cruz por Jesus. Representam, pois, as palavras que nos conduzem ao coração da paixão de Cristo, ao ponto culminante dos sofrimentos que padeceu para nos salvar. «Porque Me abandonaste?».

Muitos foram os sofrimentos de Jesus e, sempre que ouvimos a narração da paixão, penetram-nos na alma. Foram sofrimentos do corpo: pensemos nas bofetadas, nas pancadas, na flagelação, na coroa de espinhos, na tortura da cruz. Foram sofrimentos da alma: a traição de Judas, as negações de Pedro, as condenações religiosa e civil, a zombaria dos guardas, os insultos ao pé da cruz, a rejeição de tantos, a falência de tudo, o abandono dos discípulos. E contudo, no meio de todo este sofrimento, restava a Jesus uma certeza: a proximidade do Pai. Mas agora acontece o impensável; antes de morrer, clama: «Meu Deus, meu Deus, porque Me abandonaste?» O abandono de Jesus.

Estamos perante o sofrimento mais dilacerante, que é o sofrimento do espírito: na hora mais trágica, Jesus experimenta o abandono por parte de Deus. Antes disto, nunca chamara o Pai pelo nome genérico de Deus. Para nos fazer sentir a intensidade daquele momento, o Evangelho apresenta a frase também em aramaico; dentre as palavras pronunciadas por Jesus na cruz, esta é a única que nos chega na língua original. O acontecimento real é o abaixamento extremo, ou seja, o abandono de seu Pai, o abandono de Deus. Aquilo que o Senhor chega a sofrer por nosso amor, até temos dificuldade de o entender. Vê o céu fechado, experimenta o viver no seu amargo limite, o naufrágio da existência, o colapso de toda a certeza: grita «o porquê dos porquês». «Tu, ó Deus, porquê?»

«Meu Deus, meu Deus, porque Me abandonaste?» Na Bíblia, o verbo «abandonar» é forte; aparece em momentos de dor extrema: em amores fracassados, rejeitados e traídos; em filhos enjeitados e abortados; em situações de repúdio, viuvez e orfandade; em casamentos gorados, em exclusões que privam dos laços sociais, na opressão da injustiça e na solidão da doença. Em suma, nas mais drásticas dilacerações dos vínculos, aplica-se esta palavra: «abandono». Cristo levou tudo isto para a cruz, ao carregar sobre Si o pecado do mundo. E, no auge, Ele – Filho unigénito e predileto – experimentou a situação mais estranha no seu caso: o abandono, a distância de Deus.

E porque foi tão longe? Por nós; não há outra resposta. Por nós. Irmãos e irmãs, isto hoje não é um espetáculo. Cada um de nós, ouvindo referir o abandono sofrido por Jesus, diga para si mesmo: por mim. Este abandono é o preço que pagou por mim. Fez-Se solidário com cada um de nós até ao ponto extremo, para estar connosco até ao fim. Experimentou o abandono para não nos deixar reféns da desolação e permanecer ao nosso lado para sempre. Fê-lo por mim, por ti, para que, quando eu, tu ou qualquer outro se vir encurralado à parede, perdido num beco sem saída, precipitado no abismo do abandono, sorvido no redemoinho de tantos «porquês» sem resposta, saibamos que há uma esperança: Ele, uma esperança para ti, para mim. Não é o fim, porque Jesus esteve ali e agora está contigo: Ele que sofreu a distância causada pelo abandono para acolher no seu amor todas as nossas distâncias. A fim de que possa cada um de nós dizer: nas minhas quedas (cada um de nós caiu tantas vezes!), na minha desolação, quando me sinto traído ou traí os outros, quando me sinto descartado ou descarto os outros, quando me sinto abandonado ou abandonei os outros, pensemos que Ele foi abandonado, traído, descartado. Nisto encontramo-Lo a Ele. Quando me sinto transviado e perdido, quando não aguento mais, Ele está comigo; nos meus tantos porquês sem resposta, Ele está neles.

É assim que o Senhor nos salva: a partir de dentro dos nossos «porquês». De lá, descerra a esperança que não desilude. De facto, na cruz, enquanto experimenta o abandono extremo, não Se deixa cair no desespero – este é o limite –, mas reza e entrega-Se: grita o seu «porquê» com as palavras de um Salmo (22/21, 2) e entrega-Se nas mãos do Pai, embora O sinta distante (cf. Lc 23, 46) ou nem O sinta sequer, porque Se encontra abandonado. No abandono, entrega-Se. No abandono, continua a amar os Seus que O deixaram sozinho. No abandono, perdoa aos que O crucificaram (cf. Lc 23, 34). E assim o abismo dos nossos inúmeros males é imerso num amor maior, de tal modo que cada uma das nossas separações se transforma em comunhão.

Irmãos e irmãs, um amor assim como o de Jesus, que dá tudo por nós, até ao fim, é capaz de transformar os nossos corações de pedra em corações de carne. É um amor de piedade, ternura e compaixão. Este é o estilo de Deus: proximidade, compaixão e ternura. Deus é assim. Cristo, abandonado, impele-nos a procurá-Lo e a amá-Lo nos abandonados. Porque neles, não temos apenas necessitados, mas temo-Lo a Ele, Jesus Abandonado, Aquele que nos salvou descendo até ao fundo da nossa condição humana. Ele está com cada um deles, abandonados até à morte... Penso naquele homem sem-abrigo, alemão, que morreu sob a colunata, sozinho, abandonado. É Jesus para cada um de nós. Muitos precisam da nossa proximidade, tantos abandonados. Também eu preciso que Jesus me acaricie e Se aproxime de mim, e, para isso, vou encontrá-Lo nos abandonados, nas pessoas sozinhas. Ele deseja que cuidemos dos irmãos e irmãs que mais se parecem com Ele, com Ele no ato extremo do sofrimento e da solidão. Hoje, queridos irmãos e irmãs, há tantos «cristos abandonados». Há povos inteiros explorados e deixados à própria sorte; há pobres que vivem nas encruzilhadas das nossas estradas e cujo olhar não temos a coragem de fixar; há migrantes, que já não são rostos, mas números; há reclusos rejeitados, pessoas catalogadas como problema. Mas há também muitos cristos abandonados invisíveis, escondidos, que são descartados de forma «elegante»: crianças impedidas de nascer, idosos deixados sozinhos – podem porventura ser o teu pai, a tua mãe, o avô, a avó, abandonados nos lares de terceira idade –, doentes não visitados, pessoas portadoras de deficiência ignoradas, jovens que sentem dentro um grande vazio sem que ninguém escute verdadeiramente o seu grito de dor. E não encontram outra estrada senão o suicídio. Os abandonados de hoje. Os cristos de hoje.

Jesus abandonado pede-nos para termos olhos e coração para os abandonados. Para nós, discípulos do Abandonado, ninguém pode ser marginalizado, ninguém pode ser deixado a si mesmo; porque – recordemo-lo – as pessoas rejeitadas e excluídas são ícones vivos de Cristo, recordam-nos o seu amor louco, o seu abandono que nos salva de toda a solidão e desolação. Irmãos e irmãs, peçamos hoje esta graça: saber amar Jesus abandonado e saber amar Jesus em cada abandonado, em cada abandonada. Peçamos a graça de saber ver, saber reconhecer o Senhor que continua a clamar neles. Não permitamos que a sua voz se perca no silêncio ensurdecedor da indiferença. Não fomos deixados sozinhos por Deus; cuidemos de quem é deixado só. Então, só então, faremos nossos os desejos e os sentimentos d’Aquele que por nós «Se esvaziou a Si mesmo» (Flp 2, 7).

Esvaziou-se totalmente por nós.

Papa Francisco

(Homilia de Domingo de Ramos, 2 de abril de 2023)

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