Via-sacra do cristão cansado
Há um lugar para todos ao longo do caminho que sobe ao
Calvário. Hoje gostaria de reservar, em sete estações da via-sacra, um lugar ao
cristão que sente o coração algo pesado, que vive a fatiga do caminho, que
percebe a sua fé a vacilar, que sente o cansaço de estar na Igreja de hoje, nas
comunidades de hoje, no mundo de hoje.
1.ª
Estação
Jesus reza no Horto das Oliveiras
-
Nós te adoramos e bendizemos, ó Jesus.
- Que pela tua Santa Cruz remiste o mundo.
«Saiu então e foi, como de costume, para o Monte das
Oliveiras. E os discípulos seguiram também com Ele. Quando chegou ao local,
disse-lhes: “Orai, para que não entreis em tentação.” Depois afastou-se
deles, à distância de um tiro de pedra, aproximadamente; e, pondo-se de
joelhos, começou a orar, dizendo: «Pai, se quiseres, afasta de mim este cálice;
contudo, não se faça a minha vontade, mas a tua.» Então, vindo do Céu,
apareceu-lhe um anjo que o confortava. Cheio de angústia, pôs-se a orar mais
instantemente, e o suor tornou-se-lhe como grossas gotas de sangue, que caíam
na terra. Depois de orar, levantou-se e foi ter com os discípulos,
encontrando-os a dormir, devido à tristeza. Disse-lhes: “Porque dormis?
Levantai-vos e orai, para que não entreis em tentação.”» (Lucas 22, 39-46)
Tenho de o admitir: muitas vezes a minha oração é
árdua, distraída, superficial. Sinto a preguiça, noto a tentação de pensar que
a oração, no fundo, não serve. Interrogo-me sobre o que é realmente a oração e
na maior parte das vezes não tenho resposta. Quando rezo, balbucio alguma coisa;
o silêncio custa-me. Permanecer na Palavra exige-me mais do que aquilo que
estou disposto a conceder. Vivo a liturgia com dificuldade; o culto por vezes
é-me tão estranho que não percebo o que estou a fazer, o motivo porque, no
fundo, continuo a frequentá-lo. Aprecio a emoção criada por certas devoções,
mas a maior parte delas diz-me pouco ou mal.
A injustiça e a dor do mundo desarranjam a minha oração, tornando-a árida. Sinto como meu o sono dos discípulos adormecidos no jardim.
Senhor,
Tu sabes o que me habita,
o bem que procuro dar-te,
o mal que procuro repudiar.
Senhor, aumenta a minha fé,
sustém a minha fragilidade,
continua a dirigir-me o convite
a falar contigo.
2.ª
Estação
Jesus é condenado à morte
-
Nós te adoramos e bendizemos, ó Jesus.
- Que pela tua Santa Cruz remiste o mundo.
«Era o dia da Preparação da Páscoa, por volta do
meio-dia. Disse, então, aos judeus: “Aqui está o vosso Rei!” E eles bradaram:
“Fora! Fora! Crucifica-o!” Disse-lhes Pilatos: “Então, hei de crucificar o
vosso Rei?” Replicaram os sumos sacerdotes: “Não temos outro rei, senão César.”
Então, entregou-o para ser crucificado. E eles tomaram conta de Jesus.» (João
19, 14-16)
Cultivei esperanças, dei o meu tempo e o meu empenho,
deixei-me guiar pelas minhas ideias, que me pareciam boas; amadureci
convicções, tive a coragem de dar espaço a algumas intuições sobre o modo de
viver a fé aqui e agora. Gastei energias, fiz escolhas e renúncias. Mas depois,
grande parte desse trabalho, desse dom de mim, boa parte das minhas opiniões,
passadas inclusive pelo exame do diálogo, do estudo, da oração, foram
acantonadas. Boa parte daquilo em que acreditava no passado foi crucificado;
boa parte daquilo que acredito hoje foi crucificado. Aconteceu-me ouvir as
palavras mais duras, ver as atitudes mais hostis da parte daqueles que teriam
funções de orientação, de apoio, de acompanhamento, muitas vezes
autoabsolvendo-se. Somos todos muito corajosos a encontrar justificações para
as nossas condenações.
Pilatos, a multidão, os sumos-sacerdotes: cada um tem uma maneira de se
reafirmar a si próprio. A partir dos chefes, como não raramente acontece, quem
tem responsabilidade e poder sufoca o que não está alinhado, o que sobressalta
pela novidade, o que exige a discussão. E quantas vezes, por causa de uma
tomada de posição, para manter ou adquirir um poder, Cristo foi vendido pelos
sumos-sacerdotes ao poderoso de turno ou aos gritos da multidão. O maior
cansaço é ter a força de manter a paz mesmo quando muito daquilo se construiu
foi posto de parte, para não dizer destruído. Alguém chamava a isso «alegria
perfeita». A mim, porém, custa-me entrar na «alergia perfeita». A cruz não é
uma experiência nem fácil nem ligeira. Deve entrar na vida, deve entrar na
carne. E é dura. É uma experiência que acontece a muitos. É uma experiência que
aconteceu também a Jesus de Nazaré.
Senhor,
dá-me a constância de responder àquilo que sou,
àquilo que Tu desejas que eu seja;
dá-me a lealdade de pensamento
e a humildade de saber renunciar a ele;
dá-me a verdade de mim mesmo,
mesmo quando exige pequenas e grandes crucificações.
3.ª
Estação
Jesus cai sob a cruz
-
Nós te adoramos e bendizemos, ó Jesus.
- Que pela tua Santa Cruz remiste o mundo.
«O terror invade-me. A minha prosperidade foi varrida
como o vento e, qual nuvem, passou a minha felicidade.Agora, a minha alma perde a força, os dias da aflição apoderam-se de mim. De
noite, a dor trespassa-me os ossos, e os males que me roem não têm descanso. Com
violência agarra a minha roupa, aperta-me como a gola da minha túnica.» (Job
30, 15-18)
Tinha estima por algumas grandes figuras; lia os seus
livros, encontrava inspiração nas páginas que escreviam, nos discursos que
proferiam. Depois, um dia, uma verdade mantida culpavelmente oculta foi
revelada, e assim aquelas grandes figuras caíram. Caíram pela sua malvadez,
pela sua arrogância, pelas suas absurdas justificações teológicas, pela sua
vida dupla, pelo seu pecado que ceifou vítimas como trigo. Caem, depois de ter
posto às costas de alguns, mais frágeis e débeis, cruzes pesadíssimas. Caem, e
com ele arrastam muitas vezes grupos e instituições que construíram a
cobertura, que defenderam a mentira, que rejeitaram a vítima para proteger o
culpado. Caem muitos no momento do desvelamento: quem fez, quem sofreu. Caem
diversos: mas, no fim, só um rosto permanece esmagado por terra. E ao passo que
a dor de quem sofreu não se pode medir, ao passo que o mal cometido é um
abismo, recordo também a dor de quem, como eu, olhava com sincera admiração
para aqueles que por fim se mostraram como carnífices, antes de serem abatidos
por uma verdade pesada como uma cruz. Também eu, também nós vítimas do mal.
Senhor,
recorda-me que só Tu és Deus,
só Tu és Senhor,
só Tu és o homem que cumpre a humanidade,
só Tu és confiável até à consumação de si.
4.ª
Estação
Simão de Cirene ajuda Jesus a levar a cruz
-
Nós te adoramos e bendizemos, ó Jesus.
- Que pela tua Santa Cruz remiste o mundo.
«Quando o iam conduzindo, lançaram mão de um certo
Simão de Cirene, que voltava do campo, e carregaram-no com a cruz, para a levar
atrás de Jesus.» (Lucas 23, 26)
Quantos homens e mulheres estão dobrados por pesos e
cansaços, dores e sofrimentos. E depois, por vezes, também nós, cristãos,
colocamos mais um peso, em vez de sermos como aquele Simão de Cirene e ajudar
quem suporta uma carga penosa. Olho de longo, talvez exclame algumas frases
bonitas. Mas ajudar a levar a cruz é um compromisso de que fujo. Ponho pesos
quando sou prisioneiro do meu juízo seguro, das minhas leituras, dos meus
raciocínios, dos meus comportamentos habituais. Ponho pesos quando me fecho,
inflexível, nos meus artigos de fé e de vida, nos meus critérios pessoais de
avaliação. Ponho pesos quando o meu olhar condena. Ponho pesos quando ponho em
questão os outros, para não me pôr eu em questão. Sinto-me também parte de uma
Igreja que por vezes põe pesos para não se sujar nos dramas da vida, para não
compreender as dores de existências feridas. Uma Igreja que põe pesos ao longe
para não se aproximar, mesmo quando o Evangelho exigiria acolhimento,
misericórdia, bondade. Há um Simão de Cirene que por vezes eu imitei. Há um
Simão de Cirene que muito mais vezes eu afastei de mim.
Senhor,
dá-me a capacidade de compreender quando ponho pesos
às costas frágeis dos outros,
dá-me o dom de carregar mais do que pesar,
dá-me o dom de partilhar mais do que julgar,
dá-me o dom de aproximar-me quando, pelo contrário, quero distanciar-me
do irmão e da irmã sem fôlego.
5.ª
Estação
Jesus encontra as mulheres de Jerusalém
-
Nós te adoramos e bendizemos, ó Jesus.
- Que pela tua Santa Cruz remiste o mundo.
«Seguiam Jesus uma grande multidão de povo e umas
mulheres que batiam no peito e se lamentavam por Ele. Jesus voltou-se para elas
e disse-lhes: “Filhas de Jerusalém, não choreis por mim, chorai antes por vós
mesmas e pelos vossos filhos; pois virão dias em que se dirá: ‘Felizes as
estéreis, os ventres que não geraram e os peitos que não amamentaram.’ Hão de,
então, dizer aos montes: ‘Caí sobre nós!’ E às colinas: ‘Cobri-nos!’ Porque, se
tratam assim a árvore verde, o que não acontecerá à seca?”» (Lucas 23, 27-31)
Não é preciso muita honestidade intelectual para
reconhecer o quanto as mulheres sofreram ao longo dos séculos, também por uma
religião administrada por homens, com critérios de homens. E no entanto hoje as
nossas comunidades são suportadas pelo trabalho, tantas vezes silencioso, de
muitas mulheres, a quem quase sempre são confiadas tarefas de segunda ordem. O
importante, continua hoje a parecer, no século XXI, é que as mulheres não
decidam ou decidam sobre coisas não importantes. Há ainda demasiada distância
entre as palavras e as ações. São incoerências que cansam, são opções parciais
que ainda se radicam numa exclusão, são retóricas que muitas vezes exaltam
modelos tão distantes que são irreais. Não consigo ver pulsar a vida verdadeira
das mulheres nos espaços eclesiais. Há um pranto das mulheres que inunda os
séculos e que se torna um pranto por aquilo que foi, um pranto por aquilo que
ainda é.
Senhor,
dá-me a força de renunciar a alguma coisa
para dar espaço aos outros,
ilumina a estrada para um caminho partilhado,
onde todos sejam filhas e filhos,
onde cada um possa levar aquilo que é realmente.
6.ª
Estação
Jesus é despojado das vestes
-
Nós te adoramos e bendizemos, ó Jesus.
- Que pela tua Santa Cruz remiste o mundo.
«Os soldados, depois de terem crucificado Jesus,
pegaram na roupa dele e fizeram quatro partes, uma para cada soldado, exceto a
túnica. A túnica, toda tecida de uma só peça de alto a baixo, não tinha
costuras. Então, os soldados disseram uns aos outros: “Não a rasguemos;
tiremo-la à sorte, para ver a quem tocará.” Assim se cumpriu a Escritura, que
diz: “Repartiram entre eles as minhas vestes e sobre a minha túnica lançaram
sortes.” E foi isto o que fizeram os soldados.» (João 19, 23-24)
A veste arrancada do Crucificado é a Igreja que hoje
habito: dividida e ferida. E não falo das diferentes confissões cristãs, mas da
Igreja católica. Grupos e grupetos, calúnias e venenos. Um papa hostilizado,
criticado e ofendido como poucas vezes na história. Nós, cristãos, tornámo-nos
um espetáculo penoso: guerras de gangues, notícias falsas e tendenciosas,
calúnias. Quem deveria trabalhar para a unidade juntamente com Pedro faz
circular documentos anónimos, fomenta o ódio, transmite venenos a órgãos
mediáticos propensos e interessados em lançar cada vez mais descrédito, talvez
justificando-se de mil maneiras. Admite-se o boato por causas aparentemente
mais altas. Falsamente envolvidos em boas intenções e zeladores em defesa de verdades
parciais, demasiados cristãos arrancam fragmentos de veste do Cristo. As redes
sociais tornaram-se uma arena para desafogar frustrações eclesiais e
transformar em acrimónia medos profundos. O ataque pessoal substituiu o diálogo
respeitoso. E enquanto consumimos energias e tempo em batalhas fora da história
e fora do Evangelho, poucos têm ainda a coragem de erguer o olhar para o Cristo
crucificado na sua nudez.
Senhor,
dá-me o respeito e a docilidade,
a capacidade de construir e não de destruir;
dá-me a misericórdia e a escuta;
dá-me o dom de ver a diversidade como uma riqueza,
de conhecer o bem do outro mesmo quando me é hostil,
elimina a agressividade e o ódio entre irmãos de fé;
dá-me um olhar bom sobre o mundo,
que Tu já salvaste e que não esqueceste.
7.ª
Estação
Jesus morre na cruz
-
Nós te adoramos e bendizemos, ó Jesus.
- Que pela tua Santa Cruz remiste o mundo.
«Ao chegar o meio-dia, fez-se trevas por toda a terra,
até às três da tarde. E às três da tarde, Jesus exclamou em alta voz: “Eloí, Eloí,
lemá sabachtáni?”, que quer dizer: Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste? Ao
ouvi-lo, alguns que estavam ali disseram: “Está a chamar por Elias!” Um deles
correu a embeber uma esponja em vinagre, pô-la numa cana e deu-lhe de beber,
dizendo: “Esperemos, a ver se Elias vem tirá-lo dali.” Mas Jesus, com um grito
forte, expirou.» (Marcos 15, 33-37)
A pena do mundo, a dor dos inocentes, a doença, a
violência, a guerra, a morte, porquê tudo isto? Porquê, Senhor, se morreste em
oferta, se atravessaste aquela passagem de escuridão, se sofreste o ultraje, se
padeceste como inocente, se estás morto… porque, Senhor, não nos poupaste este
caminho? Porquê a dor e a morte de pessoas queridas? Porquê a minha morte? O
sofrimento põe em discussão a minha fé e impele-me a gritar: «Porque nos
abandonaste?» Devo permitir à cruz que sacuda a minha fé. Porque se acredito,
quero acreditar em profundidade. Não me satisfaço com frases feitas, com
discursos frios que são apenas outros pregos na carne, com explicações superficiais.
Se acredito, quero acreditar com todo o meu ser. Interrogar-me e interrogar-te.
Procurar um sentido. Tentar sempre. É o que também Tu fizeste: levantaste um
grito. Nisto recordo que cada grito ao Céu pelo mal do mundo é não só lícito,
mas também divino.
Senhor,
acolhe o brado dos inocentes,
infunde na criação o teu bem,
sustenta os crucificados,
não permitas que a dúvida seja tão penetrante
ao ponto de anular a fé.
Epílogo
No caminho de Emaús
«Nesse mesmo dia, dois dos discípulos iam a caminho de
uma aldeia chamada Emaús, que ficava a cerca de duas léguas de Jerusalém; e
conversavam entre si sobre tudo o que acontecera. Enquanto conversavam e
discutiam, aproximou-se deles o próprio Jesus e pôs-se com eles a caminho.»
(Lucas 24, 13-15)
Habito este tempo, esta Igreja, esta vida. Aqui posso
ser alcançado pelo Cristo. É aqui, e não noutro lugar: enquanto caminho por
estas estradas, e não por aquelas que imagino, por aquelas que teria sido eu a
querer. Nesta terra, neste entardecer: aqui Jesus pode juntar-se, pode caminhar
comigo. Aqui pode escutar-me, pode falar-me, aqui pode desatar os nós do meu
coração, os nós da minha fé frágil, da minha fé sempre a renovar. Aqui, a pouca
distância de Jerusalém, para onde sinto que devo ir. Ainda que de Jerusalém, do
centro, da instituição, me afastei duas léguas. Mas ali está, igualmente, um
viandante que espera. Aqui posso dar espaço à minha humanidade, abrir a minha
existência à sua Palavra; aqui posso experimentar a força da sua ressurreição.
Porque a minha fé não é uma fé que termina na cruz, mas uma fé que da cruz
conduz à ressurreição, à vida, à luz.
Senhor,
acosta-te a mim,
oferece-me a tua saudação,
caminha comigo,
lá onde eu estiver,
lá onde ponho em jogo aquilo que sou,
lá onde o caminho me está a conduzir.
Acosta-te, fala-me,
partilha comigo a luz de vida
da tua ressurreição.
Ámen.
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