QUARESMA PASSO A PASSO - 2023
SEXTA-FEIRA DA SEMANA SANTA
"Pai, perdoa-lhes,porque não sabem o que fazem."
"Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito."
Sexta-feira da Semana Santa – dia 39 – 07/04/2023
EVANGELHO Jo 18, 1-19,
42
«Crucifica-O! Crucifica-O!».
O Senhor
Jesus todo se entregou, num ato de Amor Único. Por Amor ao Pai, entregou a Sua
vida por toda a Humanidade e por cada um de nós em particular. E é aí, no alto
da Cruz, que Jesus se revela como o Verdadeiro Filho de Deus. É na cruz que Ele
vence a Morte e nos dá a Vida. Neste Seu Trono de Glória Jesus revela o quanto
somos amados por Deus Pai, que assim, na imolação do Cordeiro Imaculado que é
Cristo, Seu Amado Filho, restabelece a Sua Aliança de Amor com toda a
Humanidade.
A Cruz tornou-se a partir deste momento na Árvore da Vida, dela me nutro, nela
me comprazo, nas suas raízes cresço, nos seus braços eu me estendo.
Naquele tempo, Jesus saiu com os
seus discípulos para o outro lado da torrente do Cedron. Havia lá um
jardim, onde Ele entrou com os seus discípulos. Judas, que O ia entregar, conhecia
também o local, porque Jesus Se reunira
lá muitas vezes com os discípulos.
Tomando consigo uma
companhia de soldados e alguns
guardas, enviados pelos príncipes dos sacerdotes e pelos fariseus, Judas chegou ali,
com archotes, lanternas e armas. Sabendo Jesus tudo o que Lhe ia acontecer, adiantou-Se e
perguntou-lhes:
J «A quem buscais?».
N Eles responderam-Lhe:
R «A Jesus, o Nazareno».
N Jesus disse-lhes:
J «Sou Eu».
N Judas, que O ia
entregar, também estava com eles. Quando Jesus lhes disse: «Sou Eu», recuaram e
caíram por terra. Jesus perguntou-lhes novamente:
J «A quem buscais?».
N Eles responderam:
R «A Jesus, o Nazareno».
N Disse-lhes Jesus:
J «Já vos disse que sou Eu. Por isso, se é a Mim que buscais, deixai que estes se retirem».
N Assim se cumpriam as palavras que Ele tinha dito: «Daqueles que Me deste, não perdi nenhum». Então, Simão Pedro, que tinha uma espada, desembainhou-a e feriu um servo do sumo sacerdote, cortando-lhe a orelha direita. O servo chamava-se Malco. Mas Jesus disse a Pedro:
J «Mete a
tua espada na bainha. Não hei de beber o cálice que meu Pai Me deu?».
N Então, a companhia de
soldados, o oficial e
os guardas dos judeus apoderaram-se de Jesus e manietaram-n’O. Levaram-n’O
primeiro a Anás, por ser sogro de Caifás, que era o
sumo sacerdote nesse ano. Caifás é que tinha dado o seguinte conselho aos judeus: «Convém que
morra um só homem pelo povo». Entretanto,
Simão Pedro seguia Jesus com outro
discípulo. Esse discípulo era conhecido do sumo sacerdote e entrou com
Jesus no pátio do sumo sacerdote, enquanto Pedro ficava à porta, do lado de fora.
Então o
outro discípulo, conhecido do sumo sacerdote, falou à
porteira e levou Pedro para dentro.
A porteira disse a
Pedro:
R «Tu não és dos
discípulos desse homem?».
N Ele respondeu:
R «Não sou».
N Estavam ali presentes
os servos e os guardas, que, por causa do frio, tinham acendido um braseiro e se aqueciam.
Pedro
também se encontrava com eles a aquecer-se. Entretanto,
o sumo sacerdote interrogou Jesus acerca dos
seus discípulos e da sua doutrina.
Jesus
respondeu-lhe:
J «Falei abertamente ao
mundo.
Sempre
ensinei na sinagoga e no templo, onde todos os judeus se reúnem, e não disse nada
em segredo. Porque Me interrogas? Pergunta aos que Me ouviram o que
lhes disse: eles bem sabem aquilo de que lhes falei».
N A estas palavras, um dos guardas que estava ali presentedeu uma bofetada a Jesus e disse-Lhe:
R «É assim que respondes ao sumo sacerdote?».
N Jesus respondeu-lhe:
J «Se falei mal, mostra-Me em quê. Mas, se falei bem, porque Me bates?».
N Então Anás mandou Jesus manietado ao sumo sacerdote Caifás. Simão Pedro continuava ali a aquecer-se. Disseram-lhe então:
R «Tu não és também um dos seus discípulos?».
N Ele
negou, dizendo:
R «Não sou».
N Replicou um dos servos do sumo sacerdote, parente daquele a quem Pedro cortara a orelha:
R «Então eu
não te vi com Ele no jardim?».
N Pedro negou novamente, e logo um galo
cantou.
Depois, levaram Jesus da residência de Caifás ao Pretório. Era de manhã cedo. Eles não entraram no pretório, para não se contaminarem e assim poderem comer a Páscoa. Pilatos veio cá fora ter com eles e perguntou-lhes:
R «Que
acusação trazeis contra este homem?».
N Eles responderam-lhe:
R «Se não fosse malfeitor, não t’O entregávamos».
N
Disse-lhes Pilatos:
R «Tomai-O vós próprios,
e julgai-O segundo a vossa lei».
N Os judeus responderam:
R «Não nos é permitido dar a morte a ninguém».
N Assim se cumpriam as palavras que Jesus tinha dito, ao indicar de que morte ia morrer. Entretanto, Pilatos entrou novamente no pretório, chamou Jesus e perguntou-Lhe:
R «Tu és o
Rei dos judeus?».
N Jesus respondeu-lhe:
J «É por ti que o dizes, ou foram outros
que to disseram de Mim?».
N Disse-Lhe Pilatos:
R «Porventura sou eu
judeu?
O teu povo
e os sumos sacerdotes é que Te entregaram a Mim. Que
fizeste?».
N Jesus respondeu:
J «O meu reino não é deste mundo. Se o meu reino fosse deste mundo, os meus guardas lutariam para que Eu não fosse entregue aos judeus. Mas o meu reino não é daqui».
N Disse-Lhe
Pilatos:
R «Então, Tu és Rei?».
N Jesus respondeu-lhe:
J «É como dizes: sou
Rei. Para isso nasci e vim ao mundo, a fim de dar testemunho da verdade.
Todo aquele
que é da verdade escuta a minha voz».
N Disse-Lhe Pilatos:
R «Que é a verdade?».
N Dito isto, saiu
novamente para fora e declarou aos judeus:
R «Não encontro neste
homem culpa nenhuma. Mas vós estais habituados a que eu vos solte alguém pela
Páscoa. Quereis que vos solte o Rei dos judeus?».
N Eles gritaram de novo:
R «Esse não. Antes
Barrabás».
N Barrabás era um
salteador. Então Pilatos mandou que levassem Jesus e O açoitassem. Os soldados
teceram uma coroa de espinhos, colocaram-Lha na cabeça e envolveram
Jesus num manto de púrpura. Depois aproximavam-se d’Ele e diziam:
R «Salve, Rei dos
judeus».
N E davam-Lhe bofetadas.
Pilatos saiu novamente
para fora e disse:
R «Eu vo-l’O trago aqui
fora,
para saberdes
que não encontro n’Ele culpa nenhuma».
N Jesus saiu, trazendo a coroa
de espinhos e o manto de púrpura. Pilatos disse-lhes:
R «Eis o homem».
N Quando viram Jesus, os príncipes dos
sacerdotes e os guardas gritaram:
R «Crucifica-O!
Crucifica-O!».
N Disse-lhes Pilatos:
R «Tomai-O vós mesmos e crucificai-O, que eu não encontro n’Ele culpa alguma».
N
Responderam-lhe os judeus:
R «Nós temos uma lei e, segundo a nossa lei, deve morrer, porque Se fez Filho de Deus».
N Quando
Pilatos ouviu estas palavras, ficou assustado. Voltou a entrar no pretório e
perguntou a Jesus:
R «Donde és Tu?»
N Mas Jesus não lhe deu
resposta.
Disse-Lhe então Pilatos:
R «Não me falas? Não
sabes que tenho poder para Te
soltar e para Te crucificar?».
N Jesus respondeu-lhe:
J «Nenhum poder terias
sobre Mim, se não te fosse dado do alto. Por isso, quem Me entregou a ti tem
maior pecado».
N A partir de então,
Pilatos procurava libertar Jesus. Mas os judeus gritavam:
R «Se O libertares, não és amigo de César: todo aquele que se faz rei é contra César».
N Ao ouvir estas palavras, Pilatos trouxe Jesus para fora e sentou-se no tribunal, no lugar chamado «Lagedo», em hebraico «Gabatá».
Era a Preparação da Páscoa, por volta do meio-dia.
Disse então
aos judeus:
R «Eis o vosso Rei!».
N Mas eles gritaram:
R «À morte, à morte!
Crucifica-O!».
N Disse-lhes Pilatos:
R «Hei de crucificar o
vosso Rei?».
N Replicaram-lhe os
príncipes dos sacerdotes:
R «Não temos outro rei senão César».
N Entregou-lhes então Jesus, para ser crucificado. E eles apoderaram-se de Jesus. Levando a cruz, Jesus saiu para o chamado Lugar do Calvário, que em hebraico se diz Gólgota. Ali O crucificaram, e com Ele mais dois: um de cada lado e Jesus no meio. Pilatos escreveu ainda um letreiro e colocou-o no alto da cruz; nele estava escrito: «Jesus, o Nazareno, Rei dos judeus». Muitos judeus leram esse letreiro, porque o lugar onde Jesus tinha sido crucificado era perto da cidade. Estava escrito em hebraico, grego e latim. Diziam então a Pilatos os príncipes dos sacerdotes dos judeus:
R «Não
escrevas: ‘Rei dos judeus’, mas que Ele afirmou: ‘Eu sou o Rei dos judeus’».
N Pilatos retorquiu:
R «O que escrevi está
escrito».
N Quando crucificaram
Jesus,
os soldados
tomaram as suas vestes, das quais fizeram quatro lotes, um para cada soldado, e ficaram também
com a túnica. A túnica não tinha costura: era tecida de alto a baixo como um
todo. Disseram
uns aos outros:
R «Não a rasguemos, mas
lancemos sortes, para ver de
quem será».
N Assim se cumpria a Escritura: «Repartiram entre si as minhas vestes e deitaram sortes sobre a minha túnica». Foi o que fizeram os soldados.
Estavam junto à cruz de Jesus sua Mãe, a irmã de sua Mãe, Maria, mulher de Cléofas, e Maria Madalena. Ao ver sua Mãe e o discípulo predileto, Jesus disse a sua Mãe:
J «Mulher,
eis o teu filho».
N Depois disse ao
discípulo:
J «Eis a tua Mãe».
N E a partir daquela
hora,
o discípulo
recebeu-a em sua casa.
Depois, sabendo que tudo
estava consumado e para que
se cumprisse a Escritura, Jesus
disse:
J «Tenho sede».
N Estava ali um vaso
cheio de vinagre. Prenderam a
uma vara uma esponja embebida em vinagre e levaram-Lha à boca. Quando Jesus
tomou o vinagre, exclamou:
J «Tudo está consumado».
N E, inclinando a
cabeça, expirou.
N Por ser a Preparação, e para que os corpos não ficassem na cruz durante o sábado, – era um grande dia aquele sábado – os judeus pediram a Pilatos que se lhes quebrassem as pernas e fossem retirados. Os soldados vieram e quebraram as pernas ao primeiro, depois ao outro que tinha sido crucificado com ele. Ao chegarem a Jesus, vendo-O já morto, não Lhe quebraram as pernas, mas um dos soldados trespassou-Lhe o lado com uma lança, e logo saiu sangue e água. Aquele que viu é que dá testemunho e o seu testemunho é verdadeiro. Ele sabe que diz a verdade, para que também vós acrediteis. Assim aconteceu para se cumprir a Escritura, que diz: «Nenhum osso Lhe será quebrado». Diz ainda outra passagem da Escritura: «Hão de olhar para Aquele que trespassaram».
Depois disto, José de Arimateia, que era discípulo de Jesus, embora oculto por medo dos judeus, pediu licença a Pilatos para levar o corpo de Jesus. Pilatos permitiu-lho. José veio então tirar o corpo de Jesus. Veio também Nicodemos, aquele que, antes, tinha ido de noite ao encontro de Jesus. Trazia uma mistura de quase cem libras de mirra e aloés. Tomaram o corpo de Jesus e envolveram-no em ligaduras juntamente com os perfumes, como é costume sepultar entre os judeus. No local em que Jesus tinha sido crucificado, havia um jardim e, no jardim, um sepulcro novo, no qual ainda ninguém fora sepultado. Foi aí que, por causa da Preparação dos judeus, porque o sepulcro ficava perto, depositaram Jesus.
O Papa Francisco à conversa com Lorena Bianchetti
Especial de Sexta Feira Santa
RAIUNO - 15 de abril de 2022
Lorena Bianchetti: Santidade, antes de mais nada
obrigada, pois estou aqui em nome de todas as pessoas que neste momento vivem
estados de espírito complexos: de perplexidade, de angústia, de medo, de
sofrimento. Começo mencionando uma hora: três horas, três horas da tarde.
Jesus morre na cruz e morre inocente. Há tantas pessoas inocentes que não
querem a guerra, mas que a sofrem. Nos últimos dias veem-se imagens de corpos
sem vida nas ruas, fala-se até de fornos crematórios ambulantes, mas também de
estupros, devastações e barbáries.
O que está a acontecer à humanidade,
Santidade?
Santo Padre: Mas isto não é uma novidade,
cara. Um escritor disse que “Jesus Cristo está em agonia até ao fim do
mundo”, está em agonia nos seus filhos, nos seus irmãos, sobretudo nos
pobres, nos marginalizados, nas pessoas pobres que não se podem defender. Neste
momento, na Europa, esta guerra atinge-nos muito. Mas olhemos um pouco para
mais longe. O mundo está em guerra, o mundo está em guerra! A Síria, o Iémen,
pensemos nos Rohingya, expulsos, sem pátria. Em todo o lado há guerra. O genocídio
ruandês há 25 anos. Porque o mundo escolheu – é difícil dizê-lo –
mas escolheu o esquema de Caim e a guerra é implementar o cainismo, ou
seja, matar o irmão.
Lorena Bianchetti: E precisamente porque há o bem e
há o mal, tem-nos avisado muitas vezes sobre a forma como o mal age. Disse-nos
que o diabo se apresenta de uma forma amável, alicia-nos, mas na realidade o
mal só quer que falhemos: não há diálogo com o diabo. E por isso pergunto-lhe,
precisamente à luz do que dizia, como podemos encontrar formas de mediação,
formas de diálogo com quem, ou pelo menos, com aqueles que desejam e perseguem
apenas a prepotência?
Santo Padre: Quando eu digo que não há
diálogo com o diabo é porque o diabo é mau, sem nada de bom! Dizemos que ele é
como o mal absoluto. Aquele que se rebelou totalmente contra Deus! Mas com
pessoas doentes, que têm esta doença do ódio, falamos, dialogamos, e Jesus
dialogou com muitos pecadores, até com Judas, que depois se tornou “amigo”,
sempre com ternura porque todos nós temos sempre o espírito do Senhor, que Ele
semeou em nós algo de bom. E quando estou diante de uma pessoa e tenho sempre –
todos dizemos isto de forma diferente – quando estamos diante de uma pessoa
devemos pensar no que estamos a dizer sobre esta pessoa: do lado mau ou do lado
oculto, do melhor. Todos nós temos algo de bom, todos nós! É precisamente o
selo de Deus em nós. Nunca devemos considerar acabada uma vida que não
acabou... que acabou no mal, dizer “Este é um condenado”. Lembro-me
da senhora que se foi confessar ao cura d’Ars porque o marido se tinha atirado
da ponte. O cura ouviu-a, ela estava a chorar. “O que mais me irrita é
que ele está no inferno”. “Pára”, disse-lhe ele. “Entre
a ponte e o rio está a misericórdia de Deus”. Deus procura sempre
salvar-nos até ao fim, porque semeou em nós a parte boa. Semeou-a também em
Caim, Abel e Caim, mas Caim fez uma ação de violência e é com esta ação que se
faz uma guerra.
Lorena Bianchetti: Mas, na sua opinião, existe
empenho suficiente do ponto de vista cultural – estou a dizer também a nível
eclesial, não apenas a nível cultural – existe empenho suficiente para alertar
as pessoas contra a tentação de cair e viver o inferno no coração já nesta
terra? Digo isto porque por vezes vivemos numa sociedade em que parece que o
diabólico é decididamente mais fascinante, mais estimulante do que o bom, o
honesto, o gentil e também o espiritual, que aparece e é proposto como maçante.
Santo Padre: Sim, é verdade. O mal é mais
sedutor. Voltando ao diabo, alguns dizem que eu falo demasiado sobre o diabo.
Mas é uma realidade. Eu acredito nisto, eh! Alguns dizem: “Não, é um
mito”. Eu não vou com o mito, vou com a realidade, eu acredito. Mas é
sedutor. A sedução procura entrar, prometer algo sempre. Se os pecados fossem
feios, se não tivessem algo de belo, ninguém pecaria. O diabo apresenta
algo belo no pecado e leva ao pecado. Por exemplo, aqueles que fazem a guerra,
aqueles que destroem a vida dos outros, aqueles que exploram as pessoas no seu
trabalho. No outro dia ouvi uma família contar como o pai, que casou jovem,
teve de trabalhar como operário, saindo de manhã cedo e voltando à noite, por
pouco dinheiro, explorado por uma empresa bilionária. Isto também é guerra.
Também é destruição, não apenas os tanques, isto também é destruição. O diabo
procura sempre a nossa destruição. Porquê? Porque nós somos a imagem de Deus.
Voltemos ao início, às três horas da tarde. Jesus morre, morre sozinho. A mais
completa solidão, abandonado até por Deus: “Porque me abandonaste?”. A
mais completa solidão, porque queria descer à mais terrível das solidões do
homem para nos livrar dela. Ele regressa ao Pai, mas é o primeiro a descer,
está em cada pessoa explorada, que sofre guerras, que sofre destruição, que
sofre tráfico. Quantas mulheres são escravas do tráfico, aqui em Roma e nas
grandes cidades. É obra do mal. É uma guerra.
Lorena Bianchetti: Em suma, como Dostoievski disse
em Os Irmãos Karamazov: “A batalha entre Deus e o diabo
está no coração do homem”. É aí que se decide o jogo.
Santo Padre: É aí que se joga. É por isso que
precisamos da mansidão, da humildade para dizer a Deus: “Sou um
pecador, mas tu salvas-me, ajudas-me”. Pois cada um de nós tem dentro de si
a possibilidade de fazer o que quantos destroem as pessoas fazem, que exploram
as pessoas. Porque o pecado é uma possibilidade da nossa fraqueza e também do
nosso soberba.
Lorena Bianchetti: Dizia antes, recordava, a frase
pronunciada por Jesus na cruz: “Meu Deus, por que me abandonaste?” e
esta frase traduz a solidão, mas também o desânimo, a angústia e portanto
também o desespero, o estado de espírito que todos nós experimentamos quando
não sabemos qual pode ser a solução para uma dor, mas também para um sentimento
de culpa. A propósito de desespero, Santidade, vem-me à mente uma imagem desta
guerra – e digo isto como mãe – um pai a correr com o filho nos braços porque
foi atingido por estilhaços de uma bomba. Ele e a esposa a correr para o
hospital, desesperados. A notícia que chegou foi que esta criança infelizmente
não se salvou. Não consigo imaginar um desespero mais angustiante do que o de
dois pais que perdem um filho desta forma. O que diria aos pais que estão a
passar por esta experiência angustiante?
Santo Padre: Na vida, aprende-se. Tive de
aprender muitas coisas e ainda tenho de aprender porque espero viver um pouco
mais, mas tenho de aprender. E uma das coisas que aprendi foi a não falar
quando alguém está a sofrer. Seja uma pessoa doente, seja uma tragédia.
Pego-lhes na mão, em silêncio. Mas quando vêm [a dizer] e tu estás doente “Não,
mas isto, aquilo, mas o Senhor...”. Cala-te! Silêncio. Em frente da dor:
silêncio. E choro. É verdade que chorar é um dom de Deus, é um dom que devemos
pedir: a graça de chorar, perante as nossas fraquezas, perante as fraquezas e
tragédias do mundo. Mas não há palavras. Citou Dostoievski. Vem-me à mente
aquele livrete que é como um resumo de toda a sua filosofia, da sua teologia,
de tudo: Memórias do Subsolo. E ali está, quando alguém morre, quando
uma pessoa morre – são condenados, prisioneiros que estão no hospital – alguém
morre lá, pegam nele e levam-no. E o outro, da outra cama, diz: “Por
favor, parai! Ele também tinha uma mãe”. A figura da mulher, a figura da
mãe, em frente da cruz. Esta é uma mensagem, é uma mensagem de Jesus para
nós, é a mensagem da sua ternura na sua mãe. No pior momento da sua vida, Jesus
não insultou.
Lorena Bianchetti: Dado que menciona as mulheres,
Santidade, havia mulheres debaixo da cruz, debaixo da cruz de Jesus. Há outra
imagem que gostaria de lhe propor. Voltemos novamente à Ucrânia. Uma grávida,
carregada numa maca porque foi ferida na guerra, transportada no meio dos
escombros, tentando acariciar o seu ventre com o último suspiro de força que
lhe restava. Pelo que sabemos, nem esta mulher com o seu filho se salvaram. Mas
o que realmente me vem à mente são as mulheres, a força das mulheres. Vêm-me à
mente as mães russas, vêm-me à mente as mães ucranianas. E por isso
pergunto-lhe qual o papel das mulheres: quão importante é um papel ativo das
mulheres, na mesa de negociações, para construírem concretamente a paz?
Santo Padre: “As mulheres são capazes de
dar vida até a um morto” é um ditado. As mulheres estão na
encruzilhada das maiores fatalidades, elas estão lá, são fortes. É
interessante. Jesus é o esposo da Igreja e a Igreja é uma mulher, é por isso
que a Igreja-Mãe é tão forte. Não estou a falar de clericalismo, dos pecados da
Igreja. Não, Igreja-Mãe significa aquela que está aos pés da cruz a apoiar-nos,
a nós pecadores. Algo que me impressiona tanto, que me faz pensar em Maria e
nas outras mulheres aos pés da cruz. Por vezes tive de ir a alguma paróquia num
bairro chamado Villa Devoto, em Buenos Aires, e ia de autocarro, o
86. Ele passava em frente da prisão e muitas vezes eu via uma fila de mães de
presos lá. Expunham os seus rostos pelos seus filhos, porque todos os que
passavam, diziam: “Esta é a mãe de alguém que está dentro”. E
toleravam os controlos mais vergonhosos, mas para verem o seu filho. A força de
uma mulher, de uma mãe que é capaz de acompanhar os seus filhos até ao fim. E
esta é Maria e as mulheres aos pés da cruz. Acompanha o filho, sabendo que
muitas pessoas dizem: “Mas como educou o filho que acabou assim?”.
Tagarelice imediata. Mas as mulheres não se preocupam: quando há um filho
envolvido, quando há vida envolvida, as mulheres vão em frente. Por isso o que
diz – dar às mulheres um papel em momentos difíceis, em momentos de tragédia –
é tão importante, é muito importante. Elas sabem o que é vida, o que se prepara
para a vida e o que é a morte, conhecem-na bem. Falam esta linguagem.
Lorena Bianchetti: E há, Santidade – também porque
estamos a falar das muitas mortes causadas pela guerra – há mortes mais
silenciosas, mas não menos sangrentas. Estou a pensar naqueles que foram
assassinados pelas máfias e estou a pensar nas mulheres mortas pelos seus
companheiros. É verdade que os últimos serão os primeiros no Céu, mas como
podem estas pessoas e aqueles que perdem os seus afetos acreditar na justiça,
numa recompensa já nesta terra?
Santo Padre: A exploração das mulheres é o
nosso pão quotidiano. A violência contra as mulheres é o nosso pão de cada dia.
Mulheres que sofrem golpes, que sofrem violência por parte dos seus
companheiros e carregam isto em silêncio ou afastam-se sem dizer porquê. Nós,
homens, teremos sempre razão: somos os perfeitos. E as mulheres estão
condenadas ao silêncio pela sociedade. “Não, mas esta é louca, é uma pecadora”.
Era o que costumavam dizer sobre Madalena: “Olha o que ela fez, é uma
pecadora!”. “E tu não és um pecador? Não erras?”. Mas as
mulheres são a reserva da humanidade, posso dizer isto: estou convencido disto.
As mulheres são a força. E ali, aos pés da cruz, os discípulos fugiram, as
mulheres não, as que o seguiram ao longo da vida. E Jesus, a caminho do
Calvário, pára em frente de um grupo de mulheres que choravam. Elas têm a
capacidade de chorar, nós, homens, somos mais brutos. Ele pára [e diz]: “Chorai
pelos vossos filhos”, porque farão muitas coisas contra eles.
Lorena Bianchetti: E neste período, Santidade,
estou a pensar na fuga: há estas imagens que falam da fuga de ucranianos que
são forçados a deixar as suas terras, as suas casas, os seus afetos. É um dos
últimos êxodos a que provavelmente estamos, infelizmente, a habituar-nos. Mas,
neste caso, houve uma resposta concreta e real. Uma resposta que, peço-lhe, na
sua opinião derrubou os muros da indiferença, do preconceito para com aqueles
que fogem de outras partes do mundo porque estão feridos pela guerra, ou
continuam a dividir os refugiados em categorias incómodas?
Santo Padre: É verdade. Os refugiados estão
divididos. Primeira classe, segunda classe, cor da pele, [quer sejam]
provenientes de um país desenvolvido [ou de] um que não é desenvolvido. Nós
somos racistas, somos racistas. E isto é mau. O problema dos refugiados é um
problema que até Jesus sofreu, porque era um migrante e refugiado no Egito
quando era criança, para escapar à morte. Quantos destes sofrem para escapar à
morte! Há um quadro da fuga para o Egito que um pintor piemontês fez. Ele
enviou-mo e eu fiz alguns santinhos: há José com o menino em fuga. Mas não é
São José com a barba, não. É um sírio, de hoje, com a criança, a fugir da
guerra de hoje. O rosto de angústia que estas pessoas têm, como Jesus forçado a
fugir. E Jesus já passou por todas estas coisas, mas ele está lá. Na cruz estão
os povos dos países da África em guerra, do Médio Oriente em guerra, da América
Latina em guerra, da Ásia em guerra. Há alguns anos eu disse que estávamos a
viver a terceira guerra mundial em pedaços. Mas ainda não aprendemos. Eu – sou
um ministro do Senhor e um pecador, escolhido pelo Senhor – mas, pecador assim,
quando fui a Redipuglia em 2014, para a comemoração do centenário, vi e chorei.
Chorei unicamente. Todos os jovens, todos os rapazes. Então um dia fui ao
cemitério de Anzio e vi aqueles jovens que tinham desembarcado em Anzio. Todos
jovens! E eu chorei lá, outra vez. Choro diante disto. Há dois anos, penso que,
quando houve a comemoração do desembarque na Normandia, vi os chefes de
governo, houve um encontro... eles estavam a comemorar isto. Mas por que não
comemoramos todos nós os 30.000 soldados que morreram na praia da Normandia? A
guerra cresce com a vida dos nossos filhos, dos nossos jovens. É por isso que
digo que a guerra é uma monstruosidade! Vamos a estes cemitérios que são
precisamente a vida desta memória. Pensemos naquela cena que está escrita:
barcos a chegar à Normandia, abriam-se, saltavam fora com os fuzis os jovens e
os alemães... (ndr o Santo Padre imita o gesto de disparar).
30.000, na praia.
Lorena Bianchetti: Isso leva-me precisamente à
corrida aos armamentos, a este tema. Um argumento que já abordou muitas vezes,
e talvez nem sempre lhe tenha sido dada a ênfase certa. Pois disse que, nos
últimos tempos, se investiu mais em armas do que em educação ou formação. Por
que os seres humanos não aprenderam com o passado e continuam a usar armas para
resolver os seus problemas?
Santo Padre: Eu compreendo os governantes que
compram armas, compreendo-os. Não os justifico, mas compreendo-os. Porque temos
de nos defender, porque [é] o esquema cainista de guerra. Se fosse um esquema
de paz, isto não seria necessário. Mas vivemos com este esquema demoníaco, [que
diz] para nos matarmos uns aos outros por causa do poder, por causa da
segurança, por causa de muitas coisas. Mas penso nas guerras ocultas, que
ninguém vê, que estão longe de nós. Tantas. Porquê? Para explorar? Esquecemos a
linguagem da paz: esquecemo-nos dela. Fala-se de paz. As Nações Unidas fizeram
tudo, mas não tiveram êxito. Regresso ao Calvário. Lá Jesus fez tudo. Ele
tentou com piedade, com benevolência, convencer os líderes e [em vez disso]
não: guerra, guerra, guerra contra ele! Por mansidão, opõem-se à guerra pela
segurança. “É melhor que um homem morra pelo povo”, diz o sumo sacerdote,
porque, ao contrário, os romanos virão. E a guerra.
Lorena Bianchetti: Então faço uma ligação com o que
estava a dizer. Há pouco falámos sobre as mulheres aos pés da cruz. Mas a
propósito dos homens que têm poder. Na época havia Pilatos, Herodes, Caifás.
Todos eles poderiam ter salvo uma pessoa inocente, mas não o fizeram:
preferiram não enfrentar o risco da verdade. Essas pessoas morreram, mas a sua
forma de fazer as coisas continua a ser atual. Porque não temos a coragem de
escolher este bem e de defender o Homem que nos tinha simplesmente pedido para
nos amarmos uns aos outros?
Santo Padre: Há uma mulher no Evangelho sobre
a qual não se fala muito – um pouco en passant, diz-se – é a esposa
de Pilatos. Ela compreendeu alguma coisa. Diz ao marido: “Não te
envolvas com este homem justo”. Mas Pilatos não a ouve, “coisas de
mulher”. Mas esta mulher, que passa inesperada, sem força no Evangelho,
compreendeu o drama lá de longe. Porquê? Talvez ela fosse mãe, tinha essa
intuição de mulher. “Toma cuidado para que não te enganem”. Quem? O
poder. O poder que é capaz de mudar a opinião das pessoas de domingo para
sexta-feira. O Hosana de domingo torna-se o Crucifica-o!
de sexta-feira. E este é o nosso pão quotidiano. Precisamos de mulheres que
deem o alarme.
Lorena Bianchetti: Então, Santidade, Jesus na cruz,
depois daquela frase, “Meu Deus, por que me abandonaste?”. Estávamos
a falar de desespero, desânimo e também solidão: Sexta-feira Santa é um pouco
como o dia da solidão. E a solidão faz-me inevitavelmente pensar no que cada um
de nós sentiu durante o período mais difícil da pandemia. Penso nos idosos, nos
jovens, nas pessoas que vivem a provação da doença, naqueles que usavam
aparelhos porque não conseguiam respirar. E também penso em Vossa Santidade, a
27 de março de 2020. Quais foram os seus pensamentos naquele momento, ao
atravessar a Praça de São Pedro completamente vazia, molhada pela chuva, ao
chegar ao adro?
Santo Padre: Não sei se pensei. Senti, sim.
Procurava, sentia o drama daquele momento, de tantas pessoas. A senhora
sublinhou a solidão, o sofrimento daquele momento, dos idosos. É curioso: são
eles que pagam sempre a conta. E os jovens também, porque roubamos a esperança
aos jovens. Fazemo-los seguir o caminho da Turandot: “a
esperança que sempre desilude”. Não, a esperança não desilude! Mas são os
jovens e os idosos que têm nas mãos e no coração a possibilidade de reagir: é
por isso que insisto tanto para que os jovens e os idosos dialoguem. A
sabedoria dos idosos, mas com a solidão que eles sofreram. A sabedoria dos
idosos é muitas vezes negligenciada e deixada de lado num lar de idosos.
Gostava de visitar os lares de idosos em Buenos Aires, havia tantos numa grande
cidade. Perguntei a uma mulher: “Como estás? Quantos filhos? Ah,
quatro? E eles vêm?”. “Sim, não me deixam sozinha”. A enfermeira ouviu e na
saída disse: “Padre, há seis meses que não vem ninguém”. O abandono
dos idosos e o abandono da sabedoria, porque por vezes somos super-homens,
sabemos tudo. Nós não sabemos nada! A solidão dos idosos e o uso dos jovens,
porque os jovens sem a sabedoria que vem de um povo irão errar. Jesus
tinha tudo isto no seu coração naquele momento: estávamos todos lá. A senhora
lembrou a Statio Orbis de março, há dois anos, e sentia tudo
isto. Mas eu não sabia que a praça estaria vazia, não sabia. Eu cheguei lá e
[não havia] ninguém. Sim, eu sabia que com a chuva haveria poucas pessoas, mas
ninguém. Foi uma mensagem do Senhor para compreender bem a solidão. A solidão
dos idosos, a solidão dos jovens que deixamos sozinhos. “Deixai que
sejamos livres”. Não! Serão escravos sozinhos. Acompanhemo-los! É por
isso que é importante que recebam a herança dos idosos, a sua bandeira
devedora. A solidão dos jovens, dos idosos. A solidão das pessoas com problemas
mentais em casas de saúde. A solidão das pessoas que passam por uma tragédia
pessoal e familiar. A solidão de uma mulher que é espancada pelo marido, mas
[que] se cala para salvar a sua família. Temos muitas solidões nossas. Também a
senhora tem a sua. Eu tenho as minhas: a senhora terá as suas, com certeza.
Pequenas solidões, mas é nisto, nessas pequenas solidões, que podemos
compreender a solidão de Jesus, a solidão da cruz.
Lorena Bianchetti: Alguma vez se sentiu sozinho no
exercício do seu ministério?
Santo Padre: Não, Deus tem sido bom para mim.
Não sei. Sempre, quando há algo negativo, ele põe alguém para me ajudar! Faz-se
presente. Tem sido muito generoso. Talvez porque Ele sabe que eu não consigo
fazê-lo sozinho! (ndr risos).
Lorena Bianchetti: Sabe que a 27 de março – penso
que estou realmente a falar em nome de todos – pegou-nos realmente no colo,
deu-nos muita força naquele dia. A partir de então, cada um de nós tomou
consciência e, de alguma forma, penso que recomeçámos. Outra pergunta porque,
como já dissemos, Jesus foi flagelado, humilhado, coroado de espinhos,
crucificado. E tudo isto, de alguma forma, lhe veio da sua família, porque foi
traído por Judas, foi negado por Pedro. Em suma, os golpes mortais vieram
precisamente dos seus próximos. Quais são então as feridas que a Igreja
continua hoje a infligir ao Crucificado?
Santo Padre: Falo claramente, porque estou
convencido disto. A cruz mais dura que a Igreja hoje carrega sobre o Senhor é a
mundanidade, o espírito da mundanidade. O espírito de mundanidade, que é um
pouco como o espírito de poder, mas não apenas de poder, está a viver num
estilo mundano que – curiosamente – é alimentado e cresce com dinheiro. Há uma
coisa interessante. Nas três tentações do diabo a Jesus, o diabo faz propostas
mundanas. A primeira, a fome, compreende-se: é humana – mas depois o quê?
Poder, vaidade: coisas mundanas. Porque o caminho é atraente e quando cai na
mundanidade, no espírito mundano, a Igreja é derrotada. O espírito de
mundanidade é o que mais dói hoje, mas tem sido sempre assim. Quando Jesus nos
diz: “por favor fazei uma opção clara, não podeis servir dois
senhores”. Ou servis a Deus – e eu estava à espera que Ele dissesse
“ou servis o diabo” – mas Ele não diz isso. “Ou servis a Deus ou servis
o dinheiro”. Usar dinheiro para fazer o bem, para apoiar a família através
do trabalho, é ótimo. Mas servir! E a mundanidade aprecia muito isto.
Lorena Bianchetti: Leão XIII, li, tinha uma oração
contra o diabo introduzida no final da missa porque, disse, havia o risco de o
diabo poder entrar na Igreja também através das fendas das portas. Na sua
opinião, então, será esta a fenda através da qual o diabo conseguiu entrar hoje
na Igreja?
Santo Padre: A mundanidade, mas isto acontece
desde sempre. [Em] cada época a mundanidade muda de nome, mas é sempre
mundanidade. Rezo esta prece, a São Miguel Arcanjo, todos os dias, pela manhã.
Todos os dias! Para que me ajude a vencer o diabo. Quem me ouvir pode dizer: “Mas
Santidade, estudou, é Papa e ainda acredita no diabo?”. Sim, acredito,
caro, acredito. Tenho medo dele, é por isso que tenho de me defender tanto. O
diabo que fez todas as manobras para que Jesus acabasse, como ele fez, na cruz.
Poder das trevas sobre Jesus: “Esta é a vossa hora”, o poder das
trevas.
Lorena Bianchetti: E assim, Santidade, volto à
guerra na Ucrânia. Porque Kyiv – como vemos, as imagens continuam a
chegar – está completamente destruída. Cinzas. Talvez essa mesma paisagem
de que o diabo tanto gosta. Por isso pergunto-lhe: Kyiv já não é apenas um
lugar geográfico, mas aos olhos do mundo representa muito mais. No seu coração,
o que é?
Santo Padre: Uma dor. A dor é uma certeza, é
um sentimento que tira tudo. Quando alguém, após uma cirurgia, sente dor
física, a ferida que foi feita, pede uma anestesia, algo para ajudar a
tolerá-la. Mas [para] dor humana, dor moral, não há anestesia. Apenas oração e pranto.
Estou convencido de que hoje não choramos bem. Esquecemo-nos de chorar. Se
posso dar um conselho, para mim e para as pessoas, é pedir o dom das lágrimas.
E chorar, como Pedro chorou, depois de ter traído Jesus. Ele chorou, quando
fugiu, quando o negou. Ele chorou. Um grito que não é um desabafo, não. É uma
vergonha feita fisicamente e creio que nos falta vergonha. Estamos tantas vezes
sem vergonha – é um insulto que se usa na minha terra natal: “[aquele]
é sem vergonha” – mas a graça de chorar. Há uma bela oração, há uma
missa para pedir o dom das lágrimas. Uma bela prece naquela missa é
assim: “Senhor, tu que da rocha fizeste sair água, faz sair lágrimas da
rocha do meu coração”. O coração duro, o coração que não se comove,
não sabe chorar. Pergunto-me: quantas pessoas, diante das imagens de guerras,
quaisquer guerras, foram capazes de chorar? Alguns sim, tenho a certeza, mas
muitos não. Começam a justificar ou a atacar. Não, isto (ndr o
Santo Padre aponta para o coração): é preciso curar isto. E Jesus toca aqui.
Hoje, Sexta-feira Santa, em frente de Jesus Crucificado, deixa que ele toque o
teu coração, deixa que Ele te fale com o seu silêncio e com a sua dor. Que Ele
te fale através daquelas pessoas que sofrem no mundo: sofrem de fome, sofrem de
guerra, sofrem de tanta exploração e de todas estas coisas. Deixa que Jesus te
fale e por favor não fales tu. Silêncio. Deixa que seja Ele e pede a graça de
chorar.
Lorena Bianchetti: Quanto podem as religiões fazer
para remover essa desertificação dos corações? Quanto e que palavras pretende
dirigir também aos bispos ortodoxos?
Santo Padre: Sim, eles também estão a
preparar a Páscoa connosco com uma semana de diferença, porque – também os
católicos orientais – seguem o calendário juliano, não o gregoriano. Aproveito
esta oportunidade para enviar uma mensagem de fraternidade a todos os meus
irmãos bispos ortodoxos, que estão a viver esta Páscoa com a mesma dor com que
nós, eu e muitos católicos a estamos a viver. Não é fácil ser bispo... e graças
a Deus que não é fácil! É por isso que não compreendo aqueles que querem
tornar-se bispos! Eles não sabem o que os espera! Mas gostaria de aproveitar
esta oportunidade para saudar todos os bispos ortodoxos como irmãos na fé.
Lorena Bianchetti: Há outra frase que Jesus pronuncia
na cruz: “Pai, perdoa-lhes porque não sabem o que fazem”. Perdão. O
senhor disse que oferecer a outra face não significa sofrer em silêncio, ceder
à injustiça. Recordou-nos que Jesus também denuncia a injustiça, e especificou
que ele o faz sem raiva nem violência, mas com ternura. Santidade, como podemos
ser amáveis ou perdoar todas as pessoas que nos ferem, aquelas pessoas que
matam inocentes, que agridem não só física, mas também psicologicamente?
Santo Padre: dou-lhe a minha receita. Se eu
não fiz esse mal, é porque Ele me impediu com a Sua mão, com a Sua
misericórdia. Disto estou certo, porque de outra forma teria feito tantas
[coisas] como eles, tanto mal. Nisto posso dizer que sou uma testemunha da
misericórdia de Deus. É por isso que não posso condenar alguém que vem pedir
perdão. Devo perdoar sempre. Cada um de nós pode dizer isto sobre si mesmo no
seu esquema pessoal (n.d.r., exame de consciência). É verdade que
talvez não seja capaz de dizer afetivamente: “Vem caro, dá-me um beijo”.
Não, talvez eu fique zangado! Mas digo: “Senhor, livra-me da raiva, eu
perdoo, mas não tenho o sentimento de perdão. Eu perdoo. Tu arranja-te levar
este perdão...".
Lorena Bianchetti: O perdão tem uma raiz apenas
divina.
Santo Padre: Sim, o perdão no final é algo
assim.
Lorena Bianchetti: Também estou a pensar na
solidão, voltando a Jesus na cruz, penso em todas aquelas pessoas que, também
como resultado da Covid, perderam os seus empregos. Há muitas pessoas,
Santidade, que vivem com este tipo de dificuldade. Que palavras de esperança
lhes quer transmitir?
Santo Padre: A palavra-chave que acabou de
dizer é esperança. A esperança não é acariciar e dizer: “Ah, tudo vai
passar, não te preocupes”. A esperança é uma tensão para o futuro, para o
céu também. É por isso que a figura da esperança é a âncora: a âncora atirada
ali e eu aqui com a corda, para chegar lá, para resolver situações, mas sempre
com essa corda. A esperança nunca desilude, mas faz-nos esperar. A
esperança é a doméstica da vida católica, da vida cristã. É
realmente a mais humilde das virtudes. Está escondida, mas se não a tiveres [à
mão], não encontrarás o caminho certo. A esperança é o que te faz encontrar o
caminho certo. Ter esperança é não ter a ilusão: “Vou… [ter
com] alguém para ler a mão... isto vai dar certo”.
Não, isto não é esperança. A esperança é a certeza de que tenho na minha mão a
corda daquela âncora lançada. Gostamos de falar de fé, tanto, da caridade: olha
para ela! A esperança é um pouco a virtude oculta, a pequenina, a pequenina de
casa. Mas é a mais forte para nós.
Lorena Bianchetti: Então esta é também a mensagem
para os jovens, porque penso naqueles que veem o futuro a ser arrancado das
suas mãos: disse isto muito claramente há pouco. É por isso que não planeiam
muito, nem sempre acreditam em relações duradouras, não formam famílias. Em
suma, digamos que mesmo a nível institucional e cultural não são muito
ajudados. Portanto, que palavras gostaria de lhes dizer?
Santo Padre: Não confundir esperança com
otimismo. Podemos comprar o otimismo no quiosque. Sabe, o otimismo é vendido!
Mas a esperança é outra coisa. A esperança é ter a certeza de que estamos a
caminhar para a vida. Há um poeta argentino que – bom, um grande poeta – [há]
uma frase, um poema, que sempre me impressionou, uma definição de vida: “A
vida é uma morte que chega”. Não, a vida não é uma morte que chega: a vida
é, talvez, da morte chegar à vida! A esperança é forte nisto: é aquela corda da
âncora. Nunca desilude! Mas é humilde, é verdadeiramente a doméstica da vida
cristã. Mas muitas vezes são as domésticas que levam em frente
a vida de uma família.
Lorena Bianchetti: Santidade, para concluir. Hoje é
Sexta-feira Santa, mas a história da salvação não termina aqui. Graças a Deus,
o Evangelho tem um final feliz porque há a ressurreição de Jesus: esse é o
centro da história da salvação. Quais são os seus votos para esta Páscoa?
Santo Padre: Uma alegria interna. Há um salmo
que diz: “Quando o Senhor nos libertou da Babilónia, parecia-nos
[estar] a sonhar”. O pranto de alegria. É alegria. Os meus votos são para que não se perca a esperança, a verdadeira esperança – que não desilude –
é pedir a graça de chorar, mas o choro de alegria, o choro de consolação,
o choro de esperança. Tenho a certeza, repito, temos de chorar mais.
Esquecemo-nos de chorar. Vamos pedir a Pedro que nos ensine a chorar como ele
chorou. E depois o silêncio da Sexta-feira Santa.
Lorena Bianchetti: Santidade, são quase três horas.
Como devemos viver este momento hoje?
Santo Padre: (ndr não responde,
permanece em silêncio).
Lorena Bianchetti: Posso abraçá-lo em nome de todos?
Obrigada, Santidade! Obrigada.
Santo Padre: Sou eu que agradeço. O Senhor a
abençoe!
Texto da Via-Sacra (Roma, 7 de abril de 2023)
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