JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA
ADVENTO
EXISTE UMA HISTÓRIA INVISÍVEL QUE REEMERGE DO SEU
FUNDO SUBTERRÂNEO E NOS FAZ COMPREENDER QUE, NA SUA INTENSIDADE DESCONTÍNUA,
CADA FRAÇÃO DE TEMPO TEM UMA NATUREZA MESSIÂNICA
Talvez, para a maior parte de nós, o
Advento seja apenas um marco cronológico que oficializa os preparativos vários
para a festa do Natal. Talvez o vejamos apenas como uma espécie de contador decrescente,
sem que consigamos perspetivar o seu conteúdo ou que impacto efetivo poderá ter
em nós. E, contudo, o Advento é uma entrada decisiva não só para colher o
sentido da celebração do Natal, mas para olhar para a inteireza da nossa
própria existência. Mais do que supomos somos figuras do Advento, habitamos o
seu território e recebemos dele iluminação para as perguntas que transportamos
no tempo.
O
termo “advento” provém do latim e significa “vinda”. Na gramática cristã esta
vinda é o adventus domini, a vinda do Senhor,
acontecimento que configura a vida do mundo como abertura e expectativa. Em
Jesus, Deus torna-se humano para que, desse modo, todo o humano se torne capaz
de Deus. O mistério que celebramos em cada Natal não é simplesmente um sim
pontual de Deus à história dos homens, mas é uma confirmação permanente e
irrevogável. Deus entra em contacto com a nossa Humanidade, torna-se
incessantemente “aquele que vem”, deixa-se conhecer como “Deus connosco”. Nesse
sentido, o advento é a tomada de consciência desta expectativa da vinda de Deus
que atravessa a nossa existência a todo instante. E a fé não é tanto a
disponibilidade para crer no extraordinário, quanto a sóbria e vigilante
convicção de que a eternidade de Deus pulsa no nosso tempo pequeno, precário e
mortal. No nosso tempo humano. Deus veio e vem a cada momento. Como escreve
Walter Benjamin, nas suas teses sobre o conceito de história, há possíveis não
codificados e existe uma história invisível que reemerge do seu fundo
subterrâneo e nos faz compreender que, na sua intensidade descontínua, cada
fração de tempo tem uma natureza messiânica. E mais: este exato segundo é a
pequena porta pela qual pode entrar o Messias. O advento inscreve-nos aí,
expectantes, esperançosos, sedentos.
Recordo
aquilo que o teólogo Karl Rahner dizia ser o duplo e esclarecedor impacto do
Advento em nós: o primeiro é o sublinhar da nossa condição de precursores; o
segundo é o redimensionar surpreendente da nossa visão habitual da vida. De
facto, não somos todos, à maneira de João Batista, precursores? Não somos os
detentores atuais de uma experiência destinada a ser metamorfoseada e
ultrapassada? Os pais são, por exemplo, precursores para os filhos, as gerações
mais velhas para as mais novas, a ciência que construímos hoje para a ciência
que se formulará em seguida. Mas não apenas nesse sentido somos precursores. O
Advento torna-nos precursores porque nos incita a habitarmos criativa e
corajosamente a fronteira de um futuro maior do que nós próprios. Porque nos
desafia a servir não apenas este presente estabelecido (este presente
bloqueado, prisioneiro de tantos impossíveis declarados), mas a antecipar o
futuro, ligando-nos desde já a ele, aceitando viver na sua tensão,
comprometendo-nos como mediadores credíveis desse horizonte onde cintila a
promessa.
E,
do mesmo modo, o Advento motiva-nos a compreender o tempo corrente, na sua
cinzenta e férrea monotonia, na sua soma de momentos indistintos, na sua
extenuante construção como epifania. No seu anónimo e minúsculo formato, naquela
que parece ser simplesmente a monocórdica escrita do quotidiano, emerge uma
possibilidade radical de rutura: o nascimento de Deus e o nosso. Não, não é de
fora que a vida se ilumina. É por dentro de nós que podemos perceber o mistério
que ela é. A vida como advento.
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