Os novos proletários e o dever do Papa de ser “advogado dos pobres”
Há cinquenta anos nascia a Carta Encíclica Octagesima Adveniens. Nela,
Paulo VI falou do êxodo diante das grandes aglomerações urbanas, da dignidade
das mulheres e do pluralismo das opções políticas. Criticou, ainda, as
ideologias marxistas e liberais. Apresentando a Carta, defendeu os
“direitos-deveres” da Igreja de expressar-se sobre temas sociais.
Andrea Tornelli, Vatican News, 08-05-2021
Palavras proféticas sobre estas que, hoje, o seu
sucessor Francisco chama “os descartados”. Uma análise realística sobre os
grandes desequilíbrios e sobre as consequências do êxodo diante das grandes
aglomerações urbanas. Uma crítica à ideologia marxista e ao seu materialismo
ateu, mas também uma crítica à ideologia liberal que menos de vinte anos depois
prevaleceria abrindo definitivamente caminho ao turbo-capitalismo.
Corria o ano de 1971, e no dia 14 de maio, Paulo VI celebrava o aniversário de
oitenta anos da Rerum Novarum de Leão XIII com uma Carta
Apostólica endereçada ao cardeal Maurice Roy, arcebispo de Quebec e presidente
do Pontifício Conselho para a Justiça e a Paz. O documento de Montini, que fala
da pobreza, do desenvolvimento e do compromisso político, deve ser lido na
perspetiva da Populorum Progressio (1967), mas também à luz
das mudanças daqueles últimos anos.
O Papa fala das “diferenças evidentes” que “subsistem
no desenvolvimento económico, cultural e político das nações”, recordando os
povos na luta contra a fome. Declara quais as modalidades de ação, de
compromisso e de intervenção concreta que devem ser deixadas ao juízo das
realidades locais, porque “corresponde às comunidades cristãs analisar
objetivamente a situação dos seus países, esclarecê-las à luz das palavras
imutáveis do Evangelho, buscar princípios de reflexão, critérios de juízo e
diretivas de ação no ensinamento social da Igreja”.
Chama, então a atenção sobre um fenómeno de grande
importância que caracteriza tanto os países industrializados, como os em desenvolvimento:
o urbanismo e o êxodo das zonas rurais em direção às metrópoles. “Neste
crescimento desordenado nascem, de facto, novos proletariados. [...] Ao invés
de favorecer o encontro fraterno e a mútua ajuda, a cidade desenvolve grandes
discriminações e também a indiferença; fomenta novas formas de exploração e de
domínio, na qual ainda, baseando-se nas necessidades dos outros, geram lucros
inadmissíveis. Por detrás do que se vê, escondem-se muitas misérias,
desconhecidas também aos mais próximos”.
Paulo VI, que já quando era arcebispo tinha constatado
os problemas das novas periferias milaneses nos anos das explosões económicas -
e que, como Papa, continuou seguir com atenção e com ajuda concreta as
periferias romanas, financiando por exemplo a construção de 99 apartamentos no
distrito de Acilia para destinar aos sem-casa de Roma -, escreve: “é urgente
reconstruir, o tamanho da rua, dos bairros, ou da grande aglomeração, o tecido
social no qual o homem possa satisfazer as exigências da sua personalidade.
Centros de interesse e de cultura devem ser criados ou desenvolvidos ao nível
das comunidades e das paróquias”.
Um trecho da Carta Encíclica é dedicado às mulheres.
Paulo VI, que no ano precedente tinha proclamado duas mulheres doutoras da
Igreja – Teresa d’Ávila e Catarina de Sena – pede que acabem as discriminações
e que as legislações sejam dirigidas “no sentido da proteção da vocação própria
da mulher e, junto, do reconhecimento da sua independência como pessoa, da
igualdade de seus direitos no que diz respeito à sua participação na vida
cultural, económica, social e política”. Acenando para o crescimento demográfico
nos países pobres, o Papa Montini define “inquietante” aquela “espécie de
fatalismo, que toma conta até dos responsáveis” e “conduz, às vezes, a soluções
malthusianas, exaltadas por uma ativa propaganda a favor da anticoncepção e do
aborto”. O Pontífice fala também do meio ambiente e adverte que “através de uma
exploração desconsiderada da natureza”, o homem corre o risco de destruí-la e
de ser ele mesmo vítima de tal degradação”.
Citando o compromisso social e político, Paulo VI
convida o cristão a não aderir “a sistemas ideológicos que se oponham
radicalmente - ou sobre pontos substanciais - à sua fé e à sua conceção
do homem: nem à ideologia marxista, ao seu materialismo ateu, à sua dialética
de violência e ao modo com que esta reabsorve a liberdade individual na
coletividade, negando também toda a transcendência ao homem e a sua história,
pessoal e coletiva, nem à ideologia liberal que tende a exaltar a liberdade
individual subtraindo-a a todo limite, estimulando-a com a busca exclusiva do
interesse e do poder”.
Enfim, naquele que é, talvez, o trecho mais recordado
do documento, o Papa expressa-se em favor da pluralidade de opções políticas
para o cristão, sem deixar a sua adesão aos princípios evangélicos: “Nas
situações concretas e tendo consciência das solidariedades vividas de cada um,
é necessário reconhecer uma legítima variedade de opções possíveis. Uma mesma
fé cristã pode conduzir a compromissos “diversificados”. Dois dias após a
publicação de Octagesima adveniens, domingo, 16 de maio, Paulo VI presidia
na Basílica de São Pedro uma Missa para celebrar o aniversário da Encíclica de
Leão XIII, definindo a palavra do seu predecessor como “libertadora e
profética”. A homilia foi uma ocasião para explicar as razões do Magistério
Social da Igreja: “Por que falou o Papa? Tinha esse direito? Tinha competência
para isso? Sim, respondemos, porque tinha o dever de dizer. Aqui tratar-se-ia
de justificar esta intervenção da Igreja e do Papa nas questões sociais, que
são por natureza questões temporais, questões desta terra, as quais parecem ir
além da competência de quem apoia a sua razão de ser de Cristo, que declarou
que o seu Reino não é deste mundo”.
Mas, “olhando bem – continuava Paulo VI – não se
tratava para o Papa do reino deste mundo, digamos simplesmente da política ou
da economia; tratava-se dos homens que compõem este reino, tratava-se dos
critérios de sabedoria e de justiça que também devem inspirá-lo; e sob este
aspeto da voz do Papa, que se fazia advogado dos pobres, contritos a
permanecerem pobres no processo gerador da nova riqueza, advogado dos humildes
e dos explorados, não era outra coisa que o eco da voz de Cristo, que se fez
centro de todos aqueles que estão atribulados e oprimidos para os consolar e
remediar; e que proclama bem-aventurados os pobres e os que têm fome de
justiça, e que deseja ainda identificar-se com cada ser humano, pequeno,
frágil, sofredor, desgraçado, assumindo sobre si o preço de uma recompensa sem
medida para todos os que possuem coração, e remédio para todo tipo de miséria
humana.
Disso deriva, acrescentava o Bispo de Roma, “um
direito-dever do Papa, que representa Cristo, e de toda a Igreja, que é também
o Corpo Místico de Cristo, antes de cada autêntico cristão, declarado irmão de
todo homem, de ocupar-se, de prodigar-se pelo bem do próximo; direito-dever
tanto mais forte e urgente quanto mais grave e digna de piedade é a condição do
próximo na necessidade”.
“E quer dizer ainda- concluía Paulo VI – que a Igreja, nos seus ministros e nos seus membros, é aliada por vocação nata da humanidade indigente e paciente; porque a salvação de todos é a sua missão, e porque todos têm necessidade de serem salvos; mas a sua preferência é por quem tem necessidade, também no campo temporal, de ser ajudado e defendido. A necessidade humana é o título primário de seu amor”.
Sem comentários:
Enviar um comentário