Papa convocou o “Ano de São José”
Para celebrar os 150 anos da declaração do Esposo
de Maria como Padroeiro da Igreja Católica, o Papa Francisco convocou o
"Ano de São José" com a Carta apostólica “Patris corde – Com coração
de Pai”.
Vatican News
Pai amado, pai
na ternura, na obediência e no acolhimento; pai com coragem criativa,
trabalhador, sempre na sombra: com estas palavras, o Papa Francisco descreve
São José. E fá-lo na Carta apostólica “Patris corde – Com coração de Pai”, publicada por ocasião dos 150 anos da declaração do Esposo de Maria como Padroeiro
da Igreja Católica.
Com o
decreto Quemadmodum Deus, assinado em 8 de dezembro de 1870, o
Beato Pio IX quis dar este título a São José. Para celebrar esta data, o
Pontífice convocou um “Ano” especial dedicado ao Pai putativo de Jesus a partir
do dia 8 de dezembro de 2020, até 8 de dezembro de 2021.
Protagonismo sem
paralelo
A Carta
apostólica traz os sinais da pandemia da Covid-19, que – escreve Francisco –
nos fez compreender a importância das pessoas comuns, aquelas que, distantes
dos holofotes, exercitam todos os dias paciência e infundem esperança, semeando
corresponsabilidade. Justamente como São José, “o homem que passa
desapercebido, o homem da presença quotidiana discreta e escondida”.
E mesmo assim, o
seu é “um protagonismo sem paralelo na história da salvação”. Com efeito, São
José expressou concretamente a sua paternidade ao ter convertido a sua vocação
humana “na oblação sobre-humana de si mesmo ao serviço do Messias”. E por isto
ele “foi sempre muito amado pelo povo cristão” (1).
Nele, “Jesus viu
a ternura de Deus”, que “nos faz aceitar a nossa fraqueza”, através da qual se
realiza a maior parte dos desígnios divinos. Deus, de facto, “não nos condena,
mas acolhe-nos, abraça-nos, ampara-nos e nos perdoa-nos” (2). José é pai também
na obediência a Deus: com o seu ‘fiat’, salva Maria e Jesus e ensina a seu
Filho a “fazer a vontade do Pai”, cooperando “no grande mistério da Redenção”
(3).
Exemplo para os
homens de hoje
Ao mesmo tempo,
José é “pai no acolhimento”, porque “acolhe Maria sem colocar condições
prévias”, um gesto importante ainda hoje – afirma Francisco – “neste mundo onde
é patente a violência psicológica, verbal e física contra a mulher”. Mas o
Esposo de Maria é também aquele que, confiante no Senhor, acolhe na sua vida os
acontecimentos que não compreende com um protagonismo “corajoso e forte”, que
deriva “da fortaleza que nos vem do Espírito Santo”.
Através de São
José, é como se Deus nos repetisse: “Não tenhais medo!”, porque “a fé dá
significado a todos os acontecimentos, sejam eles felizes ou tristes”. O
acolhimento praticado pelo pai de Jesus “convida-nos a receber os outros, sem
exclusões, tal como são”, com “uma predileção especial pelos mais frágeis” (4).
“Patris corde”
evidencia, ainda, “a coragem criativa” de São José, “o qual sabe transformar um
problema numa oportunidade, antepondo sempre a sua confiança na Providência”.
Ele enfrenta os “problemas concretos” da sua Família, exatamente como fazem as
outras famílias do mundo, em especial as migrantes. Protetor de Jesus e de
Maria, José “não pode deixar de ser o Guardião da Igreja”, da sua maternidade e
do Corpo de Cristo: todo necessitado é “o Menino” que José continua a guardar e
de quem se pode aprender a “amar a Igreja e os pobres i” (5).
A dignidade do
trabalho
Honesto
carpinteiro, o Esposo de Maria ensina-nos também “o valor, a dignidade e a
alegria” de “comer o pão fruto do próprio trabalho”. Esta aceção do pai de
Jesus oferece ao Papa a ocasião para lançar um apelo a favor do trabalho, que
se tornou uma “urgente questão social” até mesmo nos países com certo
nível de bem-estar.
“É necessário
tomar renovada consciência do significado do trabalho que dignifica”, escreve
Francisco, que “se torna participação na própria obra da salvação” e
“oportunidade de realização” para si mesmos e para a própria família, “núcleo
originário da sociedade”. Eis então a exortação que o Pontífice faz a todos
para “redescobrir o valor, a importância e a necessidade do trabalho”, para
“dar origem a uma nova «normalidade», em que ninguém seja excluído”. Em
especial, diante do agravamento do desemprego por causa da pandemia da
Covid-19, o Papa pede a todos que se empenhem para que se possa dizer: ”Nenhum
jovem, nenhuma pessoa, nenhuma família sem trabalho!” (6).
“Não se nasce
pai, torna-se tal”
“Não se nasce
pai, torna-se tal”, afirma ainda Francisco, porque “se cuida responsavelmente”
de um filho assumindo a responsabilidade pela sua vida. Infelizmente, na
sociedade atual, “muitas vezes os filhos parecem ser órfãos de pai” que sejam
capazes de “introduzir o filho na experiência da vida”, sem o prender “nem
o subjugar”, mas tornando-o “capaz de opções, de liberdade, de partir”.
Neste sentido,
José recebeu o apelativo de “castíssimo”, que é “o contrário da posse”: ele,
com efeito, “soube amar de maneira extraordinariamente livre”, “soube
descentralizar-se” para colocar no centro da sua vida Jesus e Maria. A sua
felicidade está no “dom de si mesmo”: nunca frustrado e sempre confiante, José
permanece em silêncio, sem lamentações, mas realizando “gestos concretos de
confiança”. A sua figura, portanto, é exemplar, evidencia o Papa, num mundo que
“precisa de pais e rejeita os dominadores”, rejeita quem confunde “autoridade com
autoritarismo, serviço com servilismo, confronto com opressão, caridade com
assistencialismo, força com destruição”.
Na décima nota, “Patris corde”
revela também um hábito da vida de Francisco: todos os dias, o Pontífice reza
uma oração ao Esposo de Maria “tirada dum livro francês de devoções, do século
XIX, da Congregação das Religiosas de Jesus e Maria”. Trata-se de uma oração
que “expressa devoção e confiança” a São José, mas também “certo desafio”,
explica o Papa, porque se conclui com estas palavras: “Que não se diga que eu
Vos invoquei em vão, e dado que tudo podeis junto de Jesus e Maria, mostrai-me
que a vossa bondade é tão grande como o vosso poder”.
CARTA APOSTÓLICA
PATRIS CORDE
DO PAPA FRANCISCO
POR OCASIÃO DO 150º ANIVERSÁRIO
DA DECLARAÇÃO DE SÃO JOSÉ
COMO PADROEIRO UNIVERSAL DA IGREJA
Com coração de pai: assim José amou a Jesus, designado nos quatro
Evangelhos como «o filho de José».[1]
Os dois evangelistas que puseram em relevo a sua figura, Mateus e Lucas,
narram pouco, mas o suficiente para fazer compreender o género de pai que era e
a missão que a Providência lhe confiou.
Sabemos que era um humilde carpinteiro (cf. Mt 13, 55),
desposado com Maria (cf. Mt 1, 18; Lc 1, 27);
um «homem justo» (Mt 1, 19), sempre pronto a cumprir a vontade de
Deus manifestada na sua Lei (cf. Lc 2, 22.27.39) e através de
quatro sonhos (cf. Mt 1, 20; 2, 13.19.22). Depois duma viagem
longa e cansativa de Nazaré a Belém, viu o Messias nascer num estábulo, «por
não haver lugar para eles» (Lc 2, 7) noutro sítio. Foi testemunha
da adoração dos pastores (cf. Lc 2, 8-20) e dos Magos
(cf. Mt 2, 1-12), que representavam respetivamente o povo de
Israel e os povos pagãos.
Teve a coragem de assumir a paternidade legal de Jesus, a quem deu o
nome revelado pelo anjo: dar-Lhe-ás «o nome de Jesus, porque Ele salvará o povo
dos seus pecados» (Mt 1, 21). Entre os povos antigos, como se sabe,
dar o nome a uma pessoa ou a uma coisa significava conseguir um título de
pertença, como fez Adão na narração do Génesis (cf. 2, 19-20).
No Templo, quarenta dias depois do nascimento, José – juntamente com a
mãe – ofereceu o Menino ao Senhor e ouviu, surpreendido, a profecia que Simeão
fez a respeito de Jesus e Maria (cf. Lc 2, 22-35). Para
defender Jesus de Herodes, residiu como forasteiro no Egito (cf. Mt 2,
13-18). Regressado à pátria, viveu no recôndito da pequena e ignorada cidade de
Nazaré, na Galileia – donde (dizia-se) «não sairá nenhum profeta» (Jo 7,
52), nem «poderá vir alguma coisa boa» (Jo 1, 46) –, longe de
Belém, a sua cidade natal, e de Jerusalém, onde se erguia o Templo. Foi
precisamente durante uma peregrinação a Jerusalém que perderam Jesus (tinha ele
doze anos) e José e Maria, angustiados, andaram à sua procura, acabando por
encontrá-Lo três dias mais tarde no Templo discutindo com os doutores da Lei
(cf. Lc 2, 41-50).
Depois de Maria, a Mãe de Deus, nenhum Santo ocupa tanto espaço no
magistério pontifício como José, seu esposo. Os meus antecessores aprofundaram
a mensagem contida nos poucos dados transmitidos pelos Evangelhos para realçar
ainda mais o seu papel central na história da salvação: o Beato Pio IX
declarou-o «Padroeiro da Igreja Católica»,[2] o
Venerável Pio XII apresentou-o como «Padroeiro dos operários»;[3] e
São João Paulo II, como «Guardião do Redentor».[4] O
povo invoca-o como «padroeiro da boa morte».[5]
Assim ao completarem-se 150 anos da sua declaração como Padroeiro
da Igreja Católica, feita pelo Beato Pio IX a 8 de dezembro de 1870,
gostaria de deixar «a boca – como diz Jesus – falar da abundância do coração» (Mt 12,
34), para partilhar convosco algumas reflexões pessoais sobre esta figura
extraordinária, tão próxima da condição humana de cada um de nós. Tal desejo
foi crescendo ao longo destes meses de pandemia em que pudemos experimentar, no
meio da crise que nos afeta, que «as nossas vidas são tecidas e sustentadas por
pessoas comuns (habitualmente esquecidas), que não aparecem nas manchetes dos
jornais e revistas, nem nas grandes passarelas do último espetáculo, mas que
hoje estão, sem dúvida, a escrever os acontecimentos decisivos da nossa
história: médicos, enfermeiras e enfermeiros, trabalhadores dos supermercados,
pessoal da limpeza, curadores, transportadores, forças policiais, voluntários,
sacerdotes, religiosas e muitos – mas muitos – outros que compreenderam que
ninguém se salva sozinho. (…) Quantas pessoas dia a dia exercitam a paciência e
infundem esperança, tendo a peito não semear pânico, mas corresponsabilidade! Quantos
pais, mães, avôs e avós, professores mostram às nossas crianças, com pequenos
gestos do dia a dia, como enfrentar e atravessar uma crise, readaptando
hábitos, levantando o olhar e estimulando a oração! Quantas pessoas rezam, se
imolam e intercedem pelo bem de todos».[6] Todos
podem encontrar em São José – o homem que passa despercebido, o homem da presença
quotidiana discreta e escondida – um intercessor, um amparo e uma guia nos
momentos de dificuldade. São José lembra-nos que todos aqueles que estão,
aparentemente, escondidos ou em segundo plano, têm um protagonismo sem paralelo
na história da salvação. A todos eles, dirijo uma palavra de reconhecimento e
gratidão.
1. Pai amado
A grandeza de São José consiste no facto de ter sido o esposo de Maria e
o pai de Jesus. Como tal, afirma São João Crisóstomo, «colocou-se inteiramente
ao serviço do plano salvífico».[7]
São Paulo VI faz notar que a sua paternidade se exprimiu, concretamente,
«em ter feito da sua vida um serviço, um sacrifício, ao mistério da encarnação
e à conjunta missão redentora; em ter usado da autoridade legal que detinha
sobre a Sagrada Família para lhe fazer dom total de si mesmo, da sua vida, do
seu trabalho; em ter convertido a sua vocação humana ao amor doméstico na
oblação sobre-humana de si mesmo, do seu coração e de todas as capacidades no
amor colocado ao serviço do Messias nascido na sua casa».[8]
Por este seu papel na história da salvação, São José é um pai que foi
sempre amado pelo povo cristão, como prova o facto de lhe terem sido dedicadas
numerosas igrejas por todo o mundo; de muitos institutos religiosos, confrarias
e grupos eclesiais se terem inspirado na sua espiritualidade e adotado o seu
nome; e de, há séculos, se realizarem em sua honra várias representações sacras.
Muitos Santos e Santas foram seus devotos apaixonados, entre os quais se conta
Teresa de Ávila que o adotou como advogado e intercessor, recomendando-se
instantemente a São José e recebendo todas as graças que lhe pedia; animada
pela própria experiência, a Santa persuadia os outros a serem igualmente
devotos dele.[9]
Em todo o manual de orações, há sempre alguma a São José. São-lhe
dirigidas invocações especiais todas as quartas-feiras e, de forma particular,
durante o mês de março inteiro, tradicionalmente dedicado a ele.[10]
A confiança do povo em São José está contida na expressão «ite ad
Joseph», que faz referência ao período de carestia no Egito, quando o povo
pedia pão ao Faraó e ele respondia: «Ide ter com José; fazei o que ele vos
disser» (Gn 41, 55). Tratava-se de José, filho de Jacob, que
acabara vendido, vítima da inveja dos seus irmãos (cf. Gn 37,
11-28); e posteriormente – segundo a narração bíblica – tornou-se vice-rei do
Egito (cf. Gn 41, 41-44).
Enquanto descendente de David (cf. Mt 1, 16.20), de cuja
raiz deveria nascer Jesus segundo a promessa feita ao rei pelo profeta Natan
(cf. 2 Sam 7), e como esposo de Maria de Nazaré, São José
constitui a dobradiça que une o Antigo e o Novo Testamento.
2. Pai na ternura
Dia após dia, José via Jesus crescer «em sabedoria, em estatura e em
graça, diante de Deus e dos homens» (Lc 2, 52). Como o Senhor fez
com Israel, assim ele ensinou Jesus a andar, segurando-O pela mão: era para Ele
como o pai que levanta o filho contra o seu rosto, inclinava-se para Ele a fim de
Lhe dar de comer (cf. Os 11, 3-4).
Jesus viu a ternura de Deus em José: «Como um pai se compadece dos
filhos, assim o Senhor Se compadece dos que O temem» (Sal 103, 13).
Com certeza, José terá ouvido ressoar na sinagoga, durante a oração dos
Salmos, que o Deus de Israel é um Deus de ternura,[11] que
é bom para com todos e «a sua ternura repassa todas as suas obras» (Sal 145,
9).
A história da salvação realiza-se, «na esperança para além do que se
podia esperar» (Rm 4, 18), através das nossas fraquezas. Muitas
vezes pensamos que Deus conta apenas com a nossa parte boa e vitoriosa, quando,
na verdade, a maior parte dos seus desígnios se cumpre através e apesar da
nossa fraqueza. Isto mesmo permite a São Paulo dizer: «Para que não me enchesse
de orgulho, foi-me dado um espinho na carne, um anjo de Satanás, para me ferir,
a fim de que não me orgulhasse. A esse respeito, três vezes pedi ao Senhor que
o afastasse de mim. Mas Ele respondeu-me: “Basta-te a minha graça, porque a
força manifesta-se na fraqueza”» (2 Cor 12, 7-9).
Se esta é a perspetiva da economia da salvação, devemos aprender a
aceitar, com profunda ternura, a nossa fraqueza.[12]
O Maligno faz-nos olhar para a nossa fragilidade com um juízo negativo,
ao passo que o Espírito trá-la à luz com ternura. A ternura é a melhor forma
para tocar o que há de frágil em nós. Muitas vezes o dedo em riste e o juízo
que fazemos a respeito dos outros são sinal da incapacidade de acolher dentro
de nós mesmos a nossa própria fraqueza, a nossa fragilidade. Só a ternura nos
salvará da obra do Acusador (cf. Ap 12, 10). Por isso, é
importante encontrar a Misericórdia de Deus, especialmente no sacramento da
Reconciliação, fazendo uma experiência de verdade e ternura. Paradoxalmente,
também o Maligno pode dizer-nos a verdade, mas, se o faz, é para nos condenar.
Entretanto nós sabemos que a Verdade vinda de Deus não nos condena, mas
acolhe-nos, abraça-nos, ampara-nos, perdoa-nos. A Verdade apresenta-se-nos
sempre como o Pai misericordioso da parábola (cf. Lc 15, 11-32):
vem ao nosso encontro, devolve-nos a dignidade, levanta-nos, ordena uma festa
para nós, dando como motivo que «este meu filho estava morto e reviveu, estava
perdido e foi encontrado» (Lc 15, 24).
A vontade de Deus, a sua história e o seu projeto passam também através
da angústia de José. Assim ele ensina-nos que ter fé em Deus inclui também
acreditar que Ele pode intervir inclusive através dos nossos medos, das nossas
fragilidades, da nossa fraqueza. E ensina-nos que, no meio das tempestades da
vida, não devemos ter medo de deixar a Deus o timão da nossa barca. Por vezes
queremos controlar tudo, mas o olhar d’Ele vê sempre mais longe.
3. Pai na obediência
De forma análoga a quanto fez Deus com Maria, manifestando-Lhe o seu
plano de salvação, também revelou a José os seus desígnios por meio de sonhos,
que na Bíblia, como em todos os povos antigos, eram considerados um dos meios
pelos quais Deus manifesta a sua vontade.[13]
José sente uma angústia imensa com a gravidez incompreensível de Maria:
mas não quer «difamá-la»,[14] e
decide «deixá-la secretamente» (Mt 1, 19). No primeiro sonho, o
anjo ajuda-o a resolver o seu grave dilema: «Não temas receber Maria, tua esposa,
pois o que Ela concebeu é obra do Espírito Santo. Ela dará à luz um filho, ao
qual darás o nome de Jesus, porque Ele salvará o povo dos seus pecados» (Mt 1,
20-21). A sua resposta foi imediata: «Despertando do sono, José fez como lhe
ordenou o anjo» (Mt 1, 24). Com a obediência, superou o seu drama e
salvou Maria.
No segundo sonho, o anjo dá esta ordem a José: «Levanta-te, toma o
menino e sua mãe, foge para o Egito e fica lá até que eu te avise, pois Herodes
procurará o menino para o matar» (Mt 2, 13). José não hesitou em
obedecer, sem se questionar sobre as dificuldades que encontraria: «E ele
levantou-se de noite, tomou o menino e sua mãe e partiu para o Egito,
permanecendo ali até à morte de Herodes» (Mt 2, 14-15).
No Egito, com confiança e paciência, José esperou do anjo o aviso
prometido para voltar ao seu país. Logo que o mensageiro divino, num terceiro
sonho – depois de o informar que tinham morrido aqueles que procuravam matar o
menino –, lhe ordena que se levante, tome consigo o menino e sua mãe e regresse
à terra de Israel (cf. Mt 2, 19-20), de novo obedece sem
hesitar: «Levantando-se, ele tomou o menino e sua mãe e voltou para a terra de
Israel» (Mt 2, 21).
Durante a viagem de regresso, porém, «tendo ouvido dizer que Arquelau
reinava na Judeia, em lugar de Herodes, seu pai, teve medo de ir para lá. Então
advertido em sonhos – e é a quarta vez que acontece – retirou-se para a região
da Galileia e foi morar numa cidade chamada Nazaré» (Mt 2, 22-23).
Por sua vez, o evangelista Lucas refere que José enfrentou a longa e
incómoda viagem de Nazaré a Belém, devido à lei do imperador César Augusto
relativa ao recenseamento, que impunha a cada um registar-se na própria cidade
de origem. E foi precisamente nesta circunstância que nasceu Jesus (cf. 2,
1-7), sendo inscrito no registo do Império, como todos os outros meninos.
São Lucas, de modo particular, tem o cuidado de assinalar que os pais de
Jesus observavam todas as prescrições da Lei: os ritos da circuncisão de Jesus,
da purificação de Maria depois do parto, da oferta do primogénito a Deus (cf.
2, 21-24).[15]
Em todas as circunstâncias da sua vida, José soube pronunciar o seu «fiat»,
como Maria na Anunciação e Jesus no Getsémani.
Na sua função de chefe de família, José ensinou Jesus a ser submisso aos
pais (cf. Lc 2, 51), segundo o mandamento de Deus (cf. Ex 20,
12).
Ao longo da vida oculta em Nazaré, na escola de José, Ele aprendeu a
fazer a vontade do Pai. Tal vontade torna-se o seu alimento diário (cf. Jo 4,
34). Mesmo no momento mais difícil da sua vida, vivido no Getsémani, preferiu
que se cumprisse a vontade do Pai, e não a sua,[16] fazendo-Se
«obediente até à morte (…) de cruz» (Flp 2, 8). Por isso, o autor
da Carta aos Hebreus conclui que Jesus «aprendeu a obediência por aquilo que
sofreu» (5, 8).
Vê-se, a partir de todas estas vicissitudes, que «José foi chamado por
Deus para servir diretamente a Pessoa e a missão de Jesus, mediante o exercício
da sua paternidade: desse modo, precisamente, ele coopera no grande mistério da
Redenção, quando chega a plenitude dos tempos, e é verdadeiramente ministro da
salvação».[17]
4. Pai no acolhimento
José acolhe Maria, sem colocar condições prévias. Confia nas palavras do
anjo. «Anobreza do seu coração fá-lo subordinar à caridade aquilo que aprendera
com a lei; e hoje, neste mundo onde é patente a violência psicológica, verbal e
física contra a mulher, José apresenta-se como figura de homem respeitoso,
delicado que, mesmo não dispondo de todas as informações, se decide pela honra,
dignidade e vida de Maria. E, na sua dúvida sobre o melhor a fazer, Deus
ajudou-o a escolher iluminando o seu discernimento».[18]
Na nossa vida, muitas vezes sucedem coisas, cujo significado não
entendemos. E a nossa primeira reação, frequentemente, é de desilusão e
revolta. Diversamente, José deixa de lado os seus raciocínios para dar lugar ao
que sucede e, por mais misterioso que possa aparecer a seus olhos, acolhe-o,
assume a sua responsabilidade e reconcilia-se com a própria história. Se não
nos reconciliarmos com a nossa história, não conseguiremos dar nem mais um
passo, porque ficaremos sempre reféns das nossas expectativas e consequentes
desilusões.
A vida espiritual que José nos mostra, não é um caminho que explica,
mas um caminho que acolhe. Só a partir deste acolhimento, desta
reconciliação, é possível intuir também uma história mais excelsa, um
significado mais profundo. Parecem ecoar as palavras inflamadas de Job, quando,
desafiado pela esposa a rebelar-se contra todo o mal que lhe está a acontecer,
responde: «Se recebemos os bens da mão de Deus, não aceitaremos também os
males?» (Job 2, 10).
José não é um homem resignado passivamente. O seu protagonismo é
corajoso e forte. O acolhimento é um modo pelo qual se manifesta, na nossa
vida, o dom da fortaleza que nos vem do Espírito Santo. Só o Senhor nos pode
dar força para acolher a vida como ela é, aceitando até mesmo as suas
contradições, imprevistos e desilusões.
A vinda de Jesus ao nosso meio é um dom do Pai, para que cada um se
reconcilie com a carne da sua história, mesmo quando não a compreende
totalmente.
O que Deus disse ao nosso Santo – «José, Filho de David, não temas…» (Mt 1,
20) –, parece repeti-lo a nós também: «Não tenhais medo!» É necessário deixar
de lado a ira e a desilusão para – movidos não por qualquer resignação mundana,
mas com uma fortaleza cheia de esperança – dar lugar àquilo que não escolhemos
e, todavia, existe. Acolher a vida desta maneira introduz-nos num significado
oculto. A vida de cada um de nós pode recomeçar miraculosamente, se
encontrarmos a coragem de a viver segundo aquilo que nos indica o Evangelho. E
não importa se tudo parece ter tomado já uma direção errada, e se algumas
coisas já são irreversíveis. Deus pode fazer brotar flores no meio das rochas.
E mesmo que o nosso coração nos censure de qualquer coisa, Ele «é maior que o
nosso coração e conhece tudo» (1 Jo 3, 20).
Reaparece aqui o realismo cristão, que não deita fora nada do que
existe. A realidade, na sua misteriosa persistência e complexidade, é portadora
dum sentido da existência com as suas luzes e sombras. É isto que leva o
apóstolo Paulo a dizer: «Sabemos que tudo contribui para o bem daqueles que
amam a Deus» (Rm 8, 28). E Santo Agostinho acrescenta: tudo,
«incluindo aquilo que é chamado mal».[19] Nesta
perspetiva global, a fé dá significado a todos os acontecimentos, sejam eles
felizes ou tristes.
Assim, longe de nós pensar que crer signifique encontrar fáceis soluções
consoladoras. Antes, pelo contrário, a fé que Cristo nos ensinou é a que vemos
em São José, que não procura atalhos, mas enfrenta de olhos abertos aquilo que
lhe acontece, assumindo pessoalmente a responsabilidade por isso.
O acolhimento de José convida-nos a receber os outros, sem exclusões,
tal como são, reservando uma predileção especial pelos mais frágeis, porque
Deus escolhe o que é frágil (cf. 1 Cor 1, 27), é «pai dos
órfãos e defensor das viúvas» (Sal 68, 6) e manda amar o
forasteiro.[20] Posso
imaginar ter sido do procedimento de José que Jesus tirou inspiração para a
parábola do filho pródigo e do pai misericordioso (cf. Lc 15,
11-32).
5. Pai com coragem criativa
Se a primeira etapa de toda a verdadeira cura interior é acolher a
própria história, ou seja, dar espaço no nosso íntimo até mesmo àquilo que não
escolhemos na nossa vida, convém acrescentar outra caraterística importante: a
coragem criativa. Esta vem ao de cima sobretudo quando se encontram
dificuldades. Com efeito, perante uma dificuldade, pode-se estacar e abandonar
o campo, ou tentar vencê-la de algum modo. Às vezes, são precisamente as
dificuldades que fazem sair de cada um de nós recursos que nem pensávamos ter.
Frequentemente, ao ler os «Evangelhos da Infância», apetece-nos
perguntar por que motivo Deus não interveio de forma direta e clara. Porque
Deus intervém por meio de acontecimentos e pessoas: José é o homem por meio de
quem Deus cuida dos primórdios da história da redenção; é o verdadeiro «milagre»,
pelo qual Deus salva o Menino e sua mãe. O Céu intervém, confiando na coragem
criativa deste homem que, tendo chegado a Belém e não encontrando alojamento
onde Maria possa dar à luz, arranja um estábulo e prepara-o de modo a tornar-se
o lugar mais acolhedor possível para o Filho de Deus, que vem ao mundo
(cf. Lc 2, 6-7). Face ao perigo iminente de Herodes, que quer
matar o Menino, de novo em sonhos José é alertado para O defender e, no coração
da noite, organiza a fuga para o Egito (cf. Mt 2, 13-14).
Numa leitura superficial destas narrações, a impressão que se tem é a de
que o mundo está à mercê dos fortes e poderosos, mas a «boa notícia» do
Evangelho consiste precisamente em mostrar como, não obstante a arrogância e a
violência dos dominadores terrenos, Deus encontra sempre a forma de realizar o
seu plano de salvação. Às vezes também a nossa vida parece à mercê dos poderes
fortes, mas o Evangelho diz-nos que Deus consegue sempre salvar aquilo que
conta, desde que usemos a mesma coragem criativa do carpinteiro de Nazaré, o
qual sabe transformar um problema numa oportunidade, antepondo sempre a sua
confiança na Providência.
Se, em determinadas situações, parece que Deus não nos ajuda, isso não
significa que nos tenha abandonado, mas que confia em nós com aquilo que
podemos projetar, inventar, encontrar.
Trata-se da mesma coragem criativa demonstrada pelos amigos do
paralítico que, desejando levá-lo à presença de Jesus, fizeram-no descer pelo
teto (cf. Lc 5, 17-26). A dificuldade não deteve a audácia e
obstinação daqueles amigos. Estavam convencidos de que Jesus podia curar o
doente e, «não achando por onde introduzi-lo, devido à multidão, subiram ao
teto e, através das telhas, desceram-no com a enxerga, para o meio, em frente
de Jesus. Vendo a fé daqueles homens, disse: “Homem, os teus pecados estão
perdoados”» (5, 19-20). Jesus reconhece a fé criativa com que aqueles homens
procuram trazer-Lhe o seu amigo doente.
O Evangelho não dá informações relativas ao tempo que Maria, José e o
Menino permaneceram no Egito. Mas certamente tiveram de comer, encontrar uma
casa, um emprego. Não é preciso muita imaginação para colmatar o silêncio do
Evangelho a tal respeito. A Sagrada Família teve que enfrentar problemas
concretos, como todas as outras famílias, como muitos dos nossos irmãos
migrantes que ainda hoje arriscam a vida acossados pelas desventuras e a fome.
Neste sentido, creio que São José seja verdadeiramente um padroeiro especial
para quantos têm que deixar a sua terra por causa das guerras, do ódio, da
perseguição e da miséria.
No fim de cada acontecimento que tem José como protagonista, o Evangelho
observa que ele se levanta, toma consigo o Menino e sua mãe e faz o que Deus
lhe ordenou (cf. Mt 1, 24; 2, 14.21). Com efeito, Jesus e
Maria, sua mãe, são o tesouro mais precioso da nossa fé.[21]
No plano da salvação, o Filho não pode ser separado da Mãe, d’Aquela que
«avançou pelo caminho da fé, mantendo fielmente a união com seu Filho até à
cruz».[22]
Sempre nos devemos interrogar se estamos a proteger com todas as nossas
forças Jesus e Maria, que misteriosamente estão confiados à nossa
responsabilidade, ao nosso cuidado, à nossa guarda. O Filho do Todo-Poderoso
vem ao mundo, assumindo uma condição de grande fragilidade. Necessita de José
para ser defendido, protegido, cuidado e criado. Deus confia neste homem, e o
mesmo faz Maria que encontra em José aquele que não só Lhe quer salvar a vida,
mas sempre A sustentará a Ela e ao Menino. Neste sentido, São José não pode
deixar de ser o Guardião da Igreja, porque a Igreja é o prolongamento do Corpo
de Cristo na história e ao mesmo tempo, na maternidade da Igreja, espelha-se a
maternidade de Maria.[23] José,
continuando a proteger a Igreja, continua a proteger o Menino e sua mãe;
e também nós, amando a Igreja, continuamos a amar o Menino e sua mãe.
Este Menino é Aquele que dirá: «Sempre que fizestes isto a um destes
meus irmãos mais pequeninos, a Mim mesmo o fizestes» (Mt 25, 40).
Assim, todo o necessitado, pobre, atribulado, moribundo, forasteiro, recluso,
doente são «o Menino» que José continua a guardar. Por isso mesmo, São José é
invocado como protetor dos miseráveis, necessitados, exilados, aflitos, pobres,
moribundos. E pela mesma razão a Igreja não pode deixar de amar em primeiro
lugar os últimos, porque Jesus conferiu-lhes a preferência ao identificar-Se
pessoalmente com eles. De José, devemos aprender o mesmo cuidado e
responsabilidade: amar o Menino e sua mãe; amar os Sacramentos e a caridade;
amar a Igreja e os pobres. Cada uma destas realidades é sempre o Menino
e sua mãe.
6. Pai trabalhador
Um aspeto que carateriza São José – e tem sido evidenciado desde os dias
da primeira encíclica social, a Rerum novarum de Leão XIII – é
a sua relação com o trabalho. São José era um carpinteiro que trabalhou
honestamente para garantir o sustento da sua família. Com ele, Jesus aprendeu o
valor, a dignidade e a alegria do que significa comer o pão fruto do próprio
trabalho.
Neste nosso tempo em que o trabalho parece ter voltado a constituir uma
urgente questão social e o desemprego atinge por vezes níveis impressionantes,
mesmo em países onde se experimentou durante várias décadas um certo bem-estar,
é necessário tomar renovada consciência do significado do trabalho que
dignifica e do qual o nosso Santo é patrono e exemplo.
O trabalho torna-se participação na própria obra da salvação,
oportunidade para apressar a vinda do Reino, desenvolver as próprias
potencialidades e qualidades, colocando-as ao serviço da sociedade e da
comunhão; o trabalho torna-se uma oportunidade de realização não só para o
próprio trabalhador, mas sobretudo para aquele núcleo originário da sociedade
que é a família. Uma família onde falte o trabalho está mais exposta a
dificuldades, tensões, fraturas e até mesmo à desesperada e desesperadora
tentação da dissolução. Como poderemos falar da dignidade humana sem nos
empenharmos para que todos, e cada um, tenham a possibilidade dum digno
sustento?
A pessoa que trabalha, seja qual for a sua tarefa, colabora com o
próprio Deus, torna-se em certa medida criadora do mundo que a rodeia. A crise
do nosso tempo, que é económica, social, cultural e espiritual, pode constituir
para todos um apelo a redescobrir o valor, a importância e a necessidade do
trabalho para dar origem a uma nova «normalidade», em que ninguém seja
excluído. O trabalho de São José lembra-nos que o próprio Deus feito homem não
desdenhou o trabalho. A perda de trabalho que afeta tantos irmãos e irmãs e tem
aumentado nos últimos meses devido à pandemia de Covid-19, deve ser um apelo a
revermos as nossas prioridades. Peçamos a São José Operário que encontremos
vias onde nos possamos comprometer até se dizer: nenhum jovem, nenhuma pessoa,
nenhuma família sem trabalho!
7. Pai na sombra
O escritor polaco Jan Dobraczyński, no seu livro A Sombra do Pai,[24] narrou
a vida de São José em forma de romance. Com a sugestiva imagem da sombra,
apresenta a figura de José, que é, para Jesus, a sombra na terra do Pai
celeste: guarda-O, protege-O, segue os seus passos sem nunca se afastar d’Ele.
Lembra o que Moisés dizia a Israel: «Neste deserto (…) vistes o Senhor, vosso
Deus, conduzir-vos como um pai conduz o seu filho, durante toda a caminhada que
fizeste até chegar a este lugar» (Dt 1, 31). Assim José exerceu a
paternidade durante toda a sua vida.[25]
Não se nasce pai, torna-se tal... E não se torna pai, apenas porque se
colocou no mundo um filho, mas porque se cuida responsavelmente dele. Sempre que
alguém assume a responsabilidade pela vida de outrem, em certo sentido exercita
a paternidade a seu respeito.
Na sociedade atual, muitas vezes os filhos parecem ser órfãos de pai. A
própria Igreja de hoje precisa de pais. Continua atual a advertência dirigida
por São Paulo aos Coríntios: «Ainda que tivésseis dez mil pedagogos em Cristo,
não teríeis muitos pais» (1 Cor 4, 15); e cada sacerdote ou bispo
deveria poder acrescentar como o Apóstolo: «Fui eu que vos gerei em Cristo
Jesus, pelo Evangelho» (4, 15). E aos Gálatas diz: «Meus filhos, por quem sinto
outra vez dores de parto, até que Cristo se forme entre vós!» (Gl 4,
19).
Ser pai significa introduzir o filho na experiência da vida, na
realidade. Não segurá-lo, nem prendê-lo, nem subjugá-lo, mas torná-lo capaz de
opções, de liberdade, de partir. Talvez seja por isso que a tradição,
referindo-se a José, ao lado do apelido de pai colocou também o de
«castíssimo». Não se trata duma indicação meramente afetiva, mas é a síntese
duma atitude que exprime o contrário da posse. A castidade é a liberdade da
posse em todos os campos da vida. Um amor só é verdadeiramente tal, quando é
casto. O amor que quer possuir, acaba sempre por se tornar perigoso: prende,
sufoca, torna infeliz. O próprio Deus amou o homem com amor casto, deixando-o
livre inclusive de errar e opor-se a Ele. A lógica do amor é sempre uma lógica
de liberdade, e José soube amar de maneira extraordinariamente livre. Nunca se
colocou a si mesmo no centro; soube descentralizar-se, colocar Maria e Jesus no
centro da sua vida.
A felicidade de José não se situa na lógica do sacrifício de si mesmo,
mas na lógica do dom de si mesmo. Naquele homem, nunca se nota frustração, mas
apenas confiança. O seu silêncio persistente não inclui lamentações, mas sempre
gestos concretos de confiança. O mundo precisa de pais, rejeita os dominadores,
isto é, rejeita quem quer usar a posse do outro para preencher o seu próprio
vazio; rejeita aqueles que confundem autoridade com autoritarismo, serviço com
servilismo, confronto com opressão, caridade com assistencialismo, força com
destruição. Toda a verdadeira vocação nasce do dom de si mesmo, que é a
maturação do simples sacrifício. Mesmo no sacerdócio e na vida consagrada,
requer-se este género de maturidade. Quando uma vocação matrimonial,
celibatária ou virginal não chega à maturação do dom de si mesmo, detendo-se
apenas na lógica do sacrifício, então, em vez de significar a beleza e a
alegria do amor, corre o risco de exprimir infelicidade, tristeza e frustração.
A paternidade, que renuncia à tentação de decidir a vida dos filhos,
sempre abre espaços para o inédito. Cada filho traz sempre consigo um mistério,
algo de inédito que só pode ser revelado com a ajuda dum pai que respeite a sua
liberdade. Um pai sente que completou a sua ação educativa e viveu plenamente a
paternidade, apenas quando se tornou «inútil», quando vê que o filho se torna
autónomo e caminha sozinho pelas sendas da vida, quando se coloca na situação
de José, que sempre soube que aquele Menino não era seu: fora simplesmente
confiado aos seus cuidados. No fundo, é isto mesmo que dá a entender Jesus
quando afirma: «Na terra, a ninguém chameis “Pai”, porque um só é o vosso
“Pai”, aquele que está no Céu» (Mt 23, 9).
Todas as vezes que nos encontramos na condição de exercitar a
paternidade, devemos lembrar-nos que nunca é exercício de posse, mas «sinal»
que remete para uma paternidade mais alta. Em certo sentido, estamos sempre
todos na condição de José: sombra do único Pai celeste, que «faz com que o sol
se levante sobre os bons e os maus, e faz cair a chuva sobre os justos e os
pecadores» (Mt 5, 45); e sombra que acompanha o Filho.
* * *
«Levanta-te, toma o menino e sua mãe» (Mt 2, 13): diz o anjo
da parte de Deus a são José.
O objetivo desta carta apostólica é aumentar o amor por este grande
Santo, para nos sentirmos impelidos a implorar a sua intercessão e para imitarmos
as suas virtudes e o seu desvelo.
Com efeito, a missão específica dos Santos não é apenas a de conceder
milagres e graças, mas de interceder por nós diante de Deus, como fizeram
Abraão[26] e
Moisés,[27] como
faz Jesus, «único mediador» (1 Tm 2, 5), que junto de Deus Pai é o
nosso «advogado» (1 Jo 2, 1), «vivo para sempre, a fim de
interceder por [nós]» (Heb 7, 25; cf. Rm 8, 34).
Os Santos ajudam todos os fiéis «a tender à santidade e perfeição do próprio
estado».[28] A
sua vida é uma prova concreta de que é possível viver o Evangelho.
À semelhança de Jesus que disse: «Aprendei de Mim, porque sou manso e
humilde de coração» (Mt 11, 29), também os Santos são exemplos de
vida que havemos de imitar. A isto nos exorta explicitamente São Paulo:
«Rogo-vos, pois, que sejais meus imitadores» (1 Cor 4, 16).[29] O
mesmo nos diz São José através do seu silêncio eloquente.
Estimulado com o exemplo de tantos Santos e Santas diante dos olhos,
Santo Agostinho interrogava-se: «Então não poderás fazer o que estes e estas
fizeram?» E, assim, chegou à conversão definitiva exclamando: «Tarde Vos amei,
ó Beleza tão antiga e tão nova, tarde Vos amei!»[30]
Só nos resta implorar, de São José, a graça das graças: a nossa
conversão.
Dirijamos-lhe a nossa oração:
Salve, guardião do Redentor
e esposo da Virgem Maria!
A vós, Deus confiou o seu Filho;
em vós, Maria depositou a sua confiança;
convosco, Cristo tornou-Se homem.
Ó Bem-aventurado José, mostrai-vos pai também para nós
e guiai-nos no caminho da vida.
Alcançai-nos graça, misericórdia e coragem,
e defendei-nos de todo o mal. Ámen.
Roma, em São João de Latrão, na Solenidade da
Imaculada Conceição da Bem-Aventurada Virgem Maria, 8 de dezembro do ano de
2020, oitavo do meu pontificado.
Francisco
[1] Lucas4, 22; João 6,
42; cf. Mateus 13, 55; Marcos 6, 3.
[2] Sacra Congr. dos Ritos, Quemadmodum
Deus (8 de dezembro de 1870): ASS 6 (1870-71), 194.
[3] Cf. Discurso às Associações Cristãs
dos Trabalhadores Italianos (ACLI) por ocasião da Solenidade de São José
Operário (1 de maio de 1955): AAS 47 (1955), 406.
[4] Cf. Exort. ap. Redemptoris custos (15 de agosto de
1989): AAS 82 (1990), 5-34.
[5] Catecismo da Igreja Católica, 1014.
[6] Francisco, Meditação em tempo de pandemia (27 de
março de 2020): L’Osservatore Romano (29/III/2020), 10.
[7] Homiliæ in Matthæum, V, 3: PG 57,
58.
[8] Homilia (19 de março de 1966): Insegnamenti
di Paolo VI, IV (1966), 110.
[9] Cf. Livro da Vida, 6, 6-8.
[10]Todos os dias, há mais de quarenta anos, depois das
Laudes, recito uma oração a São José tirada dum livro francês de devoções, do
século XIX,da Congregação das Religiosas de Jesus e Maria,que expressa devoção,
confiança e um certo desafio a São José:
«Glorioso Patriarca São José, cujo poder consegue tornar possíveis as
coisas impossíveis, vinde em minha ajuda nestes momentos de angústia e
dificuldade. Tomai sob a vossa proteção as situações tão graves e difíceis que
Vos confio, para que obtenham uma solução feliz. Meu amado Pai, toda a minha
confiança está colocada em Vós. Que não se diga que eu Vos invoquei em vão, e dado
que tudo podeis junto de Jesus e Maria, mostrai-me que a vossa bondade é tão
grande como o vosso poder. Ámen».
[11] Cf. Deuteronómio4, 31; Salmo 69,
17; 78, 38; 86, 5; 111, 4; 116, 5; Jeremias 31, 20.
[12] Cf. Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de novembro de
2013), 88; 288: AAS 105 (2013) 1057; 1136-1137.
[13] Cf. Génesis 20, 3; 28, 12;
31, 11.24; 40, 8; 41, 1-32; Números 12, 6; I Samuel 3,
3-10; Daniel 2; 4; Job 33, 15.
[14] Também nestes casos, estava prevista a
lapidação (cf. Deuteronómio 22, 20-21).
[15] Cf. Levítico 12, 1-8; Êxodo 13,
2.
[16] Cf. Mateus 26, 39; Marcos 14,
36; Lucas 22, 42.
[17] São João Paulo II, Exort. ap.Redemptoris custos (15 de agosto de
1989), 8: AAS 82 (1990), 14.
[18] Francisco, Homilia na Santa Missa com Beatificações (Villavicencio
– Colômbia, 8 de setembro de 2017): AAS 109 (2017), 1061.
[19] «… etiam illud quod malum dicitur»,
in Enchiridion de fide, spe et caritate, 3.11: PL 40,
236.
[20] Cf. Deuteronómio 10,
19; Êxodo 22, 20-22; Lucas 10, 29-37.
[21] Cf.Sacra Congr. dos Ritos, Quemadmodum
Deus (8 de dezembro de 1870): ASS 6 (1870-71), 193;
Beato Pio IX, Carta ap. Inclytum Patriarcham (7 de julho de
1871): ASS 6 (1870-71), 324-327.
[22] Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. Lumen gentium, 58.
[23] Cf. Catecismo da Igreja Católica, 963-970.
[24] Edição original: Cień Ojca (Varsóvia
1977).
[25] Cf. São João Paulo II, Exort. ap. Redemptoris custos (15 de agosto de
1989), 7-8: AAS 82 (1990), 12-16.
[26] Cf. Génesis 18, 23-32.
[27] Cf. Êxodo17, 8-13; 32, 30-35.
[28] Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. Lumen gentium, 42.
[29] Cf. I Coríntios 11, 1; Filipenses 3,
17; I Tessalonicenses 1, 6.
[30] Confissões, 8,11,17; 10,27,38: PL 32,
761; 795.
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