Dia Mundial dos Pobres:
Francisco convida a «estender a mão» como «condição de autenticidade da fé»
Papa afirma que a Igreja
«não tem soluções globais a propor», mas oferece «o seu testemunho e gestos de
partilha»
Cidade do Vaticano, 13 jun
2020 (Ecclesia) – O Papa Francisco publicou hoje a mensagem escrita para o IV
Dia Mundial dos Pobres, afirmando que o imperativo ‘Estende a tua mão ao pobre’
é “condição da autenticidade da fé”.
“Manter o olhar voltado para
o pobre é difícil, mas tão necessário para imprimir a justa direção à nossa
vida pessoal e social. Não se trata de gastar muitas palavras, mas antes de
comprometer concretamente a vida, impelidos pela caridade divina. Todos os
anos, com o Dia Mundial dos Pobres, volto a esta realidade fundamental para a
vida da Igreja, porque os pobres estão e sempre estarão connosco para nos
ajudar a acolher a companhia de Cristo na existência do dia a dia”, escreveu
Francisco, numa mensagem divulgada hoje pela Sala de Imprensa da Santa Sé.
O Papa indica que o encontro
com uma pessoa em condições de pobreza não pode parar de “provocar e
questionar”: “Como podemos contribuir para eliminar ou pelo menos aliviar a sua
marginalização e o seu sofrimento? Como podemos ajudá-la na sua pobreza
espiritual?”.
Desde 2017, a celebração
promovida por Francisco quer colocar a pessoa em situação de pobreza no centro
do agir da Igreja; este ano a mensagem para a celebração, no dia 15 de
novembro, está envolva no contexto da pandemia de Covid-19.
O período da pandemia
constrangeu-nos a um isolamento forçado, impedindo-nos até de poder consolar e
estar junto de amigos e conhecidos atribulados com a perda dos seus entes
queridos. Experimentamos a impossibilidade de estar junto de quem sofre e, ao mesmo
tempo, tomamos consciência da fragilidade da nossa existência”.
Além da dificuldade,
evidencia Francisco, estes meses mostram que “estender a mão é um sinal que
apela imediatamente à proximidade, à solidariedade, ao amor” e que, apesar da
“malvadez e a violência, a prepotência e a corrupção”, a vida está “tecida por
atos de respeito e generosidade que não só compensam o mal, mas impelem a
ultrapassá-lo permanecendo cheios de esperança”.
“Nestes meses, em que o
mundo inteiro foi dominado por um vírus que trouxe dor e morte, desconforto e
perplexidade, pudemos ver tantas mãos estendidas! A mão estendida do médico que
se preocupa de cada paciente, procurando encontrar o remédio certo”, pode
ler-se.
O Papa presta homenagem a
todas as mãos que “desafiaram o contágio e o medo, a fim de dar apoio e
consolação”.
A mão estendida da
enfermeira e do enfermeiro que permanece, muito para além dos seus horários de
trabalho, a cuidar dos doentes. A mão estendida de quem trabalha na
administração e providencia os meios para salvar o maior número possível de
vidas. A mão estendida do farmacêutico exposto a inúmeros pedidos num arriscado
contacto com as pessoas. A mão estendida do sacerdote que, com o coração
partido, continua a abençoar. A mão estendida do voluntário que socorre quem
mora na rua e a quantos, embora possuindo um teto, não têm nada para comer. A
mão estendida de homens e mulheres que trabalham para prestar serviços
essenciais e segurança”.
O Papa Francisco afirma que
a Igreja “não tem soluções globais a propor”, mas procura oferecer “o seu
testemunho e gestos de partilha”, sentindo-se “obrigada” a evidenciar os
pedidos de “quantos não têm o necessário para viver”, lembrando, assim, que “o
grande valor do bem comum é, para o povo cristão, um compromisso vital, que se
concretiza na tentativa de não esquecer nenhum daqueles cuja humanidade é
violada nas suas necessidades fundamentais”.
O texto alerta que as
“graves crises económicas, financeiras e políticas não cessarão” enquanto cada
um não “assumir os pesos dos mais vulneráveis”.
A generosidade de apoiar “o
vulnerável”, consolar o aflito, “mitigar sofrimentos”, refere Francisco,
“devolve dignidade a quem dela está privado, é condição para uma vida
plenamente humana”, que “não pode estar condicionada pelo tempo disponível ou
por interesses privados, nem por projetos pastorais ou sociais desencarnados”.
“Não se pode sufocar a força
da graça de Deus pela tendência narcisista de se colocar sempre a si mesmo no
primeiro lugar”, sublinha.
O Papa Francisco critica, em
contraste com o “estender a mão ao pobre”, quem “conserva as mãos nos bolsos e
não se deixa comover pela pobreza, da qual frequentemente é cúmplice”.
“Existem mãos estendidas
para premir rapidamente o teclado de um computador e deslocar somas de dinheiro
duma parte do mundo para outra, decretando a riqueza de restritas oligarquias e
a miséria de multidões ou a falência de nações inteiras”, acrescenta.
Há mãos estendidas a
acumular dinheiro com a venda de armas que outras mãos, incluindo mãos de
crianças, utilizarão para semear morte e pobreza. Existem mãos estendidas que,
na sombra, trocam doses de morte para se enriquecer e viver no luxo e num
efémero desregramento. Existem mãos estendidas que às escondidas trocam favores
ilegais para um lucro fácil e corrupto. E há também mãos estendidas que, numa
hipócrita respeitabilidade, estabelecem leis que eles mesmos não observam”.
O Papa defende que a
comunidade cristã tem de ser chamada a “coenvolver-se na experiência de
partilha, ciente de que não é lícito delegá-la a outros”.
“O clamor silencioso de
tantos pobres deve encontrar o povo de Deus na vanguarda, sempre e em toda
parte, para lhes dar voz, defendê-los e solidarizar-se com eles face a tanta
hipocrisia e tantas promessas não cumpridas, e para os convidar a participar na
vida da comunidade”, indica.
O Papa afirma que oração e solidariedade com os “pobres e
enfermos” são “inseparáveis” e que para celebrar “um culto agradável a Deus”,
“é preciso reconhecer que toda a pessoa, mesmo a mais indigente e desprezada,
traz gravada em si mesma a imagem de Deus”.
“O objetivo de cada ação nossa só pode ser o amor: tal é o objetivo para onde caminhamos, e nada deve distrair-nos dele. Este amor é partilha, dedicação e serviço, mas começa pela descoberta de que primeiro fomos nós amados e despertados para o amor”, escreve.
MENSAGEM DO SANTO PADRE FRANCISCO
PARA O IV DIA MUNDIAL DOS POBRES
XXXIII DOMINGO DO TEMPO COMUM
(15 DE NOVEMBRO DE 2020)
«Estende
a tua mão ao pobre» (Sir 7,
32)
«Estende
a tua mão ao pobre» (Sir 7, 32): a sabedoria antiga dispôs estas
palavras como um código sacro que se deve seguir na vida. Hoje ressoam com toda
a densidade do seu significado para nos ajudar, também a nós, a concentrar o
olhar no essencial e superar as barreiras da indiferença. A pobreza assume
sempre rostos diferentes, que exigem atenção a cada condição particular: em
cada uma destas, podemos encontrar o Senhor Jesus, que revelou estar presente
nos seus irmãos mais frágeis (cf. Mt 25, 40).
1.
Tomemos nas mãos o Ben-Sirá, um dos livros do Antigo Testamento.
Nele encontramos as palavras dum mestre da sabedoria que viveu cerca de
duzentos anos antes de Cristo. Andava à procura da sabedoria que torna os
homens melhores e capazes de perscrutar profundamente as vicissitudes da vida.
E fê-lo num período de dura prova para o povo de Israel, um tempo de dor, luto
e miséria por causa da dominação de potências estrangeiras. Sendo um homem de
grande fé, enraizado nas tradições dos pais, o seu primeiro pensamento foi
dirigir-se a Deus para Lhe pedir o dom da sabedoria. E o Senhor não lhe deixou faltar
a sua ajuda.
Desde
as primeiras páginas do livro, Ben-Sirá propõe os seus conselhos sobre muitas
situações concretas da vida, sendo a pobreza uma delas. Insiste que, na
contrariedade, é preciso ter confiança em Deus: «Não te perturbes no tempo do
infortúnio. Conserva-te unido a Ele e não te separes, para teres bom êxito no
teu momento derradeiro. Aceita tudo o que te acontecer e tem paciência nas
vicissitudes da tua humilhação, porque no fogo se prova o ouro, e os eleitos de
Deus no cadinho da humilhação. Nas doenças e na pobreza, confia n’Ele. Confia
em Deus e Ele te salvará, endireita os teus caminhos e espera n’Ele. Vós que
temeis o Senhor, esperai na sua misericórdia, e não vos afasteis, para não
cairdes» (2, 2-7).
2. Página
a página, descobrimos um precioso compêndio de sugestões sobre o modo de agir à
luz duma relação íntima com Deus, criador e amante da criação, justo e
providente para com todos os seus filhos. Mas, a constante referência a Deus
não impede de olhar para o homem concreto; pelo contrário, as duas realidades
estão intimamente conexas.
Demonstra-o
claramente o texto donde se tirou o título desta Mensagem (cf. 7, 29-36). São
inseparáveis a oração a Deus e a solidariedade com os pobres e os enfermos.
Para celebrar um culto agradável ao Senhor, é preciso reconhecer que toda a
pessoa, mesmo a mais indigente e desprezada, traz gravada em si mesma a imagem
de Deus. De tal consciência deriva o dom da bênção divina, atraída pela
generosidade praticada para com os pobres. Por isso, o tempo que se deve
dedicar à oração não pode tornar-se jamais um álibi para descuidar o próximo em
dificuldade. É verdade o contrário: a bênção do Senhor desce sobre nós e a
oração alcança o seu objetivo, quando são acompanhadas pelo serviço dos pobres.
3.
Como permanece atual, também para nós, este ensinamento! Na realidade, a
Palavra de Deus ultrapassa o espaço, o tempo, as religiões e as culturas. A
generosidade que apoia o vulnerável, consola o aflito, mitiga os sofrimentos,
devolve dignidade a quem dela está privado, é condição para uma vida plenamente
humana. A opção de prestar atenção aos pobres, às suas muitas e variadas
carências, não pode ser condicionada pelo tempo disponível ou por interesses
privados, nem por projetos pastorais ou sociais desencarnados. Não se pode
sufocar a força da graça de Deus pela tendência narcisista de se colocar sempre
a si mesmo no primeiro lugar.
Manter
o olhar voltado para o pobre é difícil, mas tão necessário para imprimir a
justa direção à nossa vida pessoal e social. Não se trata de gastar muitas
palavras, mas antes de comprometer concretamente a vida, impelidos pela
caridade divina. Todos os anos, com o Dia Mundial dos Pobres, volto a esta
realidade fundamental para a vida da Igreja, porque os pobres estão e sempre
estarão connosco (cf. Jo 12, 8) para nos ajudar a acolher a
companhia de Cristo na existência do dia a dia.
4. O
encontro com uma pessoa em condições de pobreza não cessa de nos provocar e
questionar. Como podemos contribuir para eliminar ou pelo menos aliviar a sua marginalização
e o seu sofrimento? Como podemos ajudá-la na sua pobreza espiritual? A
comunidade cristã é chamada a coenvolver-se nesta experiência de partilha,
ciente de que não é lícito delegá-la a outros. E, para servir de apoio aos
pobres, é fundamental viver pessoalmente a pobreza evangélica. Não podemos
sentir-nos tranquilos, quando um membro da família humana é relegado para a
retaguarda, reduzindo-se a uma sombra. O clamor silencioso de tantos pobres
deve encontrar o povo de Deus na vanguarda, sempre e em toda parte, para lhes
dar voz, defendê-los e solidarizar-se com eles face a tanta hipocrisia e tantas
promessas não cumpridas, e para os convidar a participar na vida da comunidade.
É
verdade que a Igreja não tem soluções globais a propor, mas oferece, com a
graça de Cristo, o seu testemunho e gestos de partilha. Além disso, sente-se
obrigada a apresentar os pedidos de quantos não têm o necessário para viver.
Lembrar a todos o grande valor do bem comum é, para o povo cristão, um
compromisso vital, que se concretiza na tentativa de não esquecer nenhum
daqueles cuja humanidade é violada nas suas necessidades fundamentais.
5.
Estender a mão leva a descobrir, antes de tudo a quem o faz, que dentro de nós
existe a capacidade de realizar gestos que dão sentido à vida. Quantas mãos
estendidas se veem todos os dias! Infelizmente, sucede sempre com maior
frequência que a pressa faz cair num turbilhão de indiferença, a tal ponto que
se deixa de reconhecer todo o bem que se realiza diariamente no silêncio e com grande
generosidade. Assim, só quando acontecem factos que transtornam o curso da
nossa vida é que os olhos se tornam capazes de vislumbrar a bondade dos santos
«ao pé da porta», «daqueles que vivem perto de nós e são um reflexo da presença
de Deus» (Francisco, Exort. ap. Gaudete et exsultate, 7), mas dos quais
ninguém fala. As más notícias abundam de tal modo nas páginas dos jornais, nos
sites da internet e nos visores da televisão, que faz pensar que o mal reine
soberano. Mas não é assim. Certamente não faltam a malvadez e a violência, a
prepotência e a corrupção, mas a vida está tecida por atos de respeito e
generosidade que não só compensam o mal, mas impelem a ultrapassá-lo
permanecendo cheios de esperança.
6.
Estender a mão é um sinal: um sinal que apela imediatamente à proximidade, à
solidariedade, ao amor. Nestes meses, em que o mundo inteiro foi dominado por
um vírus que trouxe dor e morte, desconforto e perplexidade, pudemos ver tantas
mãos estendidas! A mão estendida do médico que se preocupa de cada paciente,
procurando encontrar o remédio certo. A mão estendida da enfermeira e do
enfermeiro que permanece, muito para além dos seus horários de trabalho, a
cuidar dos doentes. A mão estendida de quem trabalha na administração e
providencia os meios para salvar o maior número possível de vidas. A mão
estendida do farmacêutico exposto a inúmeros pedidos num arriscado contacto com
as pessoas. A mão estendida do sacerdote que, com o coração partido, continua a
abençoar. A mão estendida do voluntário que socorre quem mora na rua e a
quantos, embora possuindo um teto, não têm nada para comer. A mão estendida de
homens e mulheres que trabalham para prestar serviços essenciais e segurança. E
poderíamos enumerar ainda outras mãos estendidas, até compor uma ladainha de
obras de bem. Todas estas mãos desafiaram o contágio e o medo, a fim de dar
apoio e consolação.
7.
Esta pandemia chegou de improviso e apanhou-nos impreparados, deixando uma
grande sensação de desorientamento e impotência. Mas, a mão estendida ao pobre
não chegou de improviso. Antes, dá testemunho de como nos preparamos para
reconhecer o pobre a fim de o apoiar no tempo da necessidade. Não nos
improvisamos instrumentos de misericórdia. Requer-se um treino diário, que
parte da consciência de quanto nós próprios, em primeiro lugar, precisamos duma
mão estendida em nosso favor.
Este
período que estamos a viver colocou em crise muitas certezas. Sentimo-nos mais
pobres e mais vulneráveis, porque experimentamos a sensação da limitação e a
restrição da liberdade. A perda do emprego, dos afetos mais queridos, como a
falta das relações interpessoais habituais, abriu subitamente horizontes que já
não estávamos acostumados a observar. As nossas riquezas espirituais e
materiais foram postas em questão e descobrimo-nos amedrontados. Fechados no
silêncio das nossas casas, descobrimos como é importante a simplicidade e o
manter os olhos fixos no essencial. Amadureceu em nós a exigência duma nova
fraternidade, capaz de ajuda recíproca e estima mútua. Este é um tempo
favorável para «voltar a sentir que precisamos uns dos outros, que temos uma
responsabilidade para com os outros e o mundo (...). Vivemos já muito tempo na
degradação moral, baldando-nos à ética, à bondade, à fé, à honestidade (...).
Uma tal destruição de todo o fundamento da vida social acaba por colocar-nos
uns contra os outros na defesa dos próprios interesses, provoca o despertar de
novas formas de violência e crueldade e impede o desenvolvimento duma
verdadeira cultura do cuidado do meio ambiente» (Francisco, Carta enc. Laudato si’, 229). Enfim, as graves crises
económicas, financeiras e políticas não cessarão enquanto permitirmos que
permaneça em letargo a responsabilidade que cada um deve sentir para com o
próximo e toda a pessoa.
8.
«Estende a mão ao pobre» é, pois, um convite à responsabilidade, sob forma de
empenho direto, de quem se sente parte do mesmo destino. É um encorajamento a
assumir os pesos dos mais vulneráveis, como recorda São Paulo: «Pelo amor,
fazei-vos servos uns dos outros. É que toda a Lei se cumpre plenamente nesta
única palavra: ama o teu próximo como a ti mesmo. (...) Carregai as cargas uns
dos outros» (Gal 5, 13-14; 6, 2). O Apóstolo ensina que a liberdade
que nos foi dada com a morte e ressurreição de Jesus Cristo é, para cada um de
nós, uma responsabilidade para colocar-se ao serviço dos outros, sobretudo dos
mais frágeis. Não se trata duma exortação facultativa, mas duma condição da
autenticidade da fé que professamos.
E
aqui volta o livro de Ben-Sirá em nossa ajuda: sugere ações
concretas para apoiar os mais vulneráveis e usa também algumas imagens
sugestivas. Primeiro, toma em consideração a debilidade de quantos estão
tristes: «Não fujas dos que choram» (7, 34). O período da pandemia
constrangeu-nos a um isolamento forçado, impedindo-nos até de poder consolar e
estar junto de amigos e conhecidos atribulados com a perda dos seus entes
queridos. E, depois, afirma o autor sagrado: «Não sejas preguiçoso em visitar
um doente» (7, 35). Experimentamos a impossibilidade de estar junto de quem
sofre e, ao mesmo tempo, tomamos consciência da fragilidade da nossa
existência. Enfim, a Palavra de Deus nunca nos deixa tranquilos e continua a
estimular-nos para o bem.
9.
«Estende a mão ao pobre» faz ressaltar, por contraste, a atitude de quantos
conservam as mãos nos bolsos e não se deixam comover pela pobreza, da qual
frequentemente são cúmplices também eles. A indiferença e o cinismo são o seu
alimento diário. Que diferença relativamente às mãos generosas que acima
descrevemos! Com efeito, existem mãos estendidas para premer rapidamente o
teclado dum computador e deslocar somas de dinheiro duma parte do mundo para
outra, decretando a riqueza de restritas oligarquias e a miséria de multidões
ou a falência de nações inteiras. Há mãos estendidas a acumular dinheiro com a
venda de armas que outras mãos, incluindo mãos de crianças, utilizarão para
semear morte e pobreza. Existem mãos estendidas que, na sombra, trocam doses de
morte para se enriquecer e viver no luxo e num efémero desregramento. Existem
mãos estendidas que às escondidas trocam favores ilegais para um lucro fácil e
corruto. E há também mãos estendidas que, numa hipócrita respeitabilidade,
estabelecem leis que eles mesmos não observam.
Neste
cenário, «os excluídos continuam a esperar. Para se poder apoiar um estilo de
vida que exclui os outros ou mesmo entusiasmar-se com este ideal egoísta,
desenvolveu-se uma globalização da indiferença. Quase sem nos dar conta,
tornamo-nos incapazes de nos compadecer ao ouvir os clamores alheios, já não
choramos à vista do drama dos outros, nem nos interessamos por cuidar deles,
como se tudo fosse uma responsabilidade de outrem, que não nos incumbe»
(Francisco, Exort. ap Evangelii gaudium, 54). Não poderemos ser
felizes enquanto estas mãos que semeiam morte não forem transformadas em
instrumentos de justiça e paz para o mundo inteiro.
10.
«Em todas as tuas obras, lembra-te do teu fim» (Sir 7, 36): tal é a
frase com que Ben-Sirá conclui a sua reflexão. O texto presta-se a uma dupla
interpretação. A primeira destaca que precisamos de ter sempre presente o fim
da nossa existência. A lembrança do nosso destino comum pode ajudar a conduzir
uma vida sob o signo da atenção a quem é mais pobre e não teve as mesmas
possibilidades que nós. Mas existe também uma segunda interpretação, que
evidencia principalmente a finalidade, o objetivo para o qual tende cada um. É
a finalidade da nossa vida que exige um projeto a realizar e um caminho a
percorrer sem se cansar. Pois bem! O objetivo de cada ação nossa só pode ser o
amor: tal é o objetivo para onde caminhamos, e nada deve distrair-nos dele.
Este amor é partilha, dedicação e serviço, mas começa pela descoberta de que
primeiro fomos nós amados e despertados para o amor. Esta finalidade aparece no
momento em que a criança se cruza com o sorriso da mãe, sentindo-se amada pelo
próprio facto de existir. De igual modo um sorriso que partilhamos com o pobre
é fonte de amor e permite viver na alegria. Possa então a mão estendida
enriquecer-se sempre com o sorriso de quem não faz pesar a sua presença nem a
ajuda que presta, mas alegra-se apenas em viver o estilo dos discípulos de
Cristo.
Neste
caminho de encontro diário com os pobres, acompanha-nos a Mãe de Deus que é,
mais do que qualquer outra, a Mãe dos pobres. A Virgem Maria conhece de perto
as dificuldades e os sofrimentos de quantos estão marginalizados, porque Ela
mesma Se viu a dar à luz o Filho de Deus num estábulo. Devido à ameaça de
Herodes, fugiu, juntamente com José, seu esposo, e o Menino Jesus, para outro
país e, durante alguns anos, a Sagrada Família conheceu a condição de
refugiados. Possa a oração à Mãe dos pobres acomunar estes seus filhos
prediletos e quantos os servem em nome de Cristo. E a oração transforme a mão
estendida num abraço de partilha e reconhecida fraternidade.
Roma,
em São João de Latrão, na Memória litúrgica de Santo António, 13 de junho de
2020.
Francisco
Sem comentários:
Enviar um comentário