«Sou especialista em
Medicina Interna e Medicina Intensiva e tive, na semana que passou, a
oportunidade de assistir nos Cuidados Intensivos um doente crónico de trinta e
poucos anos com uma doença neuromuscular degenerativa. Está há vários anos
totalmente dependente da ajuda de terceiros para se deslocar, alimentar e em
todos os cuidados de higiene. Está ainda dependente de suporte ventilatório não
invasivo para respirar. Este doente tem um apoio diário incondicional da sua
família, de associações não-governamentais dedicadas a este tipo de doentes e
do sistema de saúde.
Apesar de toda a sua
debilidade, ainda consegue, com o apoio da família e das associações, fazer
natação. É acompanhado em consultas de especialidade no hospital onde tem o
adequado apoio médico e de enfermagem. Todos os cuidados prestados tentam ir ao
encontro do tratamento da doença, mas acima de tudo do suporte e conforto do
doente. Independentemente do mau prognóstico, grau de dependência e mesmo do
sofrimento que a doença possa trazer, a vida deste doente vale tanto como
qualquer outra. Esta vida é sempre digna.
Em Portugal está agendada para breve a votação de projetos de legalização da eutanásia e suicídio assistido. Que perigos corre este doente com a aprovação destas leis?
1. O doente tem vontade
de viver mas sabe que com a aprovação da despenalização da eutanásia é
brutalmente enfraquecido o conceito de inviolabilidade da vida humana, em
especial das vidas não produtivas e dependentes como a sua, que assim ficam à
mercê de soluções fáceis e imediatas apelidadas de “morte digna” para vidas
presumivelmente tidas como menos dignas. O valor da vida passa a ser relativo e
dependente de circunstâncias. Naturalmente, sabendo que é um peso para os seus
cuidadores, será impelido a ter um gesto de “altruísmo”, solicitando a sua
própria morte como se fosse a única coisa decente a fazer.
O doente sente e sabe
que a sua vida passa a ter menos valor que outras, menos dignidade e, por isso,
pode ser descartada.
2. A família e as
associações que dão apoio ao doente recebem uma mensagem de desvalorização da
doença crónica e incapacitante. Por um lado, o doente pode mais facilmente ser
olhado como um incómodo e um empecilho; e, por outro, a falta de solidariedade,
disfunção familiar e eventualmente o oportunismo e a ganância poderão empurrar
o doente para a dita “morte digna”.
Horroriza que o doente
que vive pacificado num clima de cuidado e carinho possa ver aberta, pelos seus
cuidadores, a oportunidade da morte como resposta possível para a sua doença.
3. Num país em que
apenas 25% da população tem acesso aos Cuidados Paliativos é de prever que, no
momento em que é confrontado com uma situação de agravamento ou progressão da
doença, com maior fragilidade e sofrimento, tenha certamente condicionada a sua
opção pela eutanásia. Diria que é, no mínimo, cruel a aprovação destas leis num
país que precisa de um enorme investimento na saúde, para que se possa aliviar
o sofrimento de quem tem doenças graves e incuráveis. Escolher o caminho mais
fácil e mais barato, em que não existem os meios para minimizar a solidão e o
sofrimento, colocando hipótese de eliminar a vida do mais doente e
desfavorecido é inaceitável.
A aprovação da
eutanásia não pode ser uma prioridade, nem acredito que seja a resposta que o
Sistema Nacional de Saúde deve dar a este doente.
4. Quando uma pessoa está
cercada pelo desespero, o Estado e a sociedade devem estender-lhe a mão,
aliviando-lhe o sofrimento, em vez de a conduzir para a morte. Quando um doente
pede para ser morto porque acha que a sua vida não tem sentido ou porque sente
que é um peso para os outros, o Estado não deve validar esse sentimento de
vida menos digna.
Numa sociedade cada
vez mais envelhecida, o nosso empenho tem de estar em criar condições para quem
envelhece, em ajudar quem sofre lesões irreversíveis ou adoece gravemente a
sentir-se acompanhado e protegido. Estes são os verdadeiros sinais de progresso
civilizacional.
Aprovar a eutanásia é
um convite a uma sociedade menos solidária para com os doentes, os que têm
menos recursos e os que estão mais sozinhos. É este o Estado e a sociedade que
queremos?
Este doente não quer
um país onde supostamente há vidas que, pela sua fragilidade, vulnerabilidade,
dependência e doença, são indignas e, por isso, sujeitas à crueldade da
proclamada “morte digna”.
Não há vidas indignas
e o Estado não pode transmitir isso pela via legislativa.»
Francisco Adão da Fonseca
Médico especialista em Medicina Interna e Medicina Intensiva
In ,Público online, 18 de Fevereiro de
2020, 9:28
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