Leitura faseada da carta pastoral, para o próximo biénio, do Bispo de Leiria Fátima (III)
Carta Pastoral 2015-2017 – No Centenário das Aparições
Maria, Mãe de Ternura e de Misericórdia
† António Marto
Leria, 15 de setembro de 2015,
Memória de Nossa Senhora das Dores
18. Centralidade eucarística
Quer
na oração do Anjo na terceira aparição, quer sobretudo na visão de Lúcia com
que encerram as aparições, o mistério da misericórdia de Deus-Amor Trinitário
está centrado na oblação de Cristo na Cruz, donde flui no sinal do sangue para
o altar da Eucaristia. Um mistério que a iconografia do Ocidente traduz de
forma sintética na representação do “Trono da Graça”: O Pai que entrega o Filho
para ser solidário com os homens e sofre na dor do seu amor; o Filho que se
entrega a Si próprio pela multidão dos irmãos; o Espírito de Amor que sustenta
o Filho na sua entrega de amor.
É
este mistério de amor misericordioso que celebramos na Eucaristia e que está no
centro da espiritualidade de Fátima, seja na adoração eucarística seja na
Comunhão reparadora, para, na união com Cristo, vivermos a orientação da nossa
vida e renovar o sim da oferta de nós mesmos a favor dos outros.
Nesta perspetiva, recomendamos a
participação no Congresso Eucarístico Nacional em Fátima, de 10 a 12 de junho
de 2016, com o tema “Eucaristia, fonte de misericórdia”.
19. A oração
e o empenho pela paz
O
apelo à oração e ao empenho pela paz é uma constante na mensagem de Fátima.
Nossa Senhora pede a recitação do Rosário pela paz no mundo, anuncia para breve
o fim da Primeira Grande Guerra, adverte para a possível catástrofe de uma nova
guerra mundial se os homens não se converterem e pede a consagração do mundo e
da Rússia feita pelo Santo Padre em comunhão com os bispos (isto é, que envolva
toda a Igreja) para que haja um tempo de paz. Pode resumir-se a mensagem na declaração de Maria na terceira aparição:
“Se fizerem o que eu vos disser, salvar-se-ão muitas almas e terão paz” (M
121).
Na
mensagem sobressai o contraste entre “a grande” história das nações e seus
conflitos, a história dos grandes e poderosos, com a sua própria cronologia e geografia
do poder, e a “pequena” história dos pequenos, pobres, humildes e sem poder.
Estes últimos são chamados a intervir a favor da paz com outra força, outro
poder, outros meios aparentemente inúteis ou ineficazes, tais como a oração, a
conversão e a reparação.
Também
hoje, a mensagem é portadora de um apelo suplicante à nossa geração, para que
reconheça a tarefa desta hora histórica, a fim de que a humanidade não caia no
abismo nem sucumba ao poder do mal. Está também presente o apelo ao confronto
dos homens com a dimensão sobrenatural da paz de Deus. Fátima será sempre um símbolo vivo desta dimensão sobrenatural do
homem, como fonte da verdadeira paz: “foi a dor dos filhos que fez gritar o
coração da Mãe”, advertiu S. João Paulo II em Fátima. Rezar o Rosário pela
paz é contemplar a história do mundo inteiro do ponto de vista de Deus (como
história de salvação) e alegrar-se por ver Cristo “fazer novas todas as
coisas”.
20. A compaixão na relação com o
sofrimento e com quem sofre
Nossa
Senhora foi mestra dos Pastorinhos na compaixão: com ela, eles aprenderam a
“abrir o coração à universalidade do amor” (Bento XVI), a participar no amor
compassivo de Jesus pela humanidade ferida, sobretudo pelos sofredores e pelos
pobres pecadores que somos todos nós. Os pequenos videntes apreenderam que
Deus, na sua misericórdia e ternura, não é apático nem indiferente aos homens,
mas partilha o seu sofrimento e a sua suportação.
Este
aspeto é uma marca da espiritualidade de Fátima como imagem da Igreja chamada
“a cuidar dos feridos e a curar as feridas”, levando aos que sofrem a luz e o
calor do evangelho do sofrimento
(fazer bem a quem sofre e fazer bem com o próprio sofrimento) e do evangelho da compaixão de quem sofre
com o outro e pelos outros, compartilhando o sofrimento e oferecendo assim a
consolação do amor solidário de Deus.
21. O desafio ao testemunho da fé e da
santidade
A
terceira parte do segredo de Fátima põe-nos perante o testemunho da multidão
imensa de mártires cristãos do século XX por causa da fé, da justiça e da
caridade. Hoje, assistimos a um martírio semelhante em várias partes do mundo.
Embora no mundo ocidental não haja uma perseguição violenta aos cristãos, somos
chamados sobretudo a dar testemunho num ambiente de indiferença, de hostilidade
e de desprezo por parte de certa cultura dominante, que procura apagar a
memória viva do Cristianismo e extirpar as suas raízes. “Se Cristo voltasse
hoje, os homens não o poriam na cruz, mas expô-lo-iam ao ridículo”, afirmou S.
Kierkegaard. Ser testemunhas corajosas,
convictas e alegres do Evangelho, da fé e da santidade neste novo mundo plural
e pluralista é um dos desafios mais importantes. “A Igreja cresce, não por
proselitismo, mas por atração” (Bento XVI).
Por
sua vez, o testemunho de santidade quer dos mártires quer dos Pastorinhos
convida toda a Igreja a dar-se na “medida alta da vida cristã”. É deveras
impressionante e atual o testemunho dos Videntes: na sua simplicidade de vida,
mostram-nos como é possível a santidade no quotidiano pela oferta de si mesmos,
com a preocupação de corresponder ao amor de Deus, de não O desgostar, de rezar
pela conversão de todos ao seu grande amor e testemunhar a compaixão com os que
sofrem.
Na verdade, os Pastorinhos são modelo de
fé e de santidade, cada qual com o seu caráter, o seu carisma, a sua vocação. Na sua pessoa e na sua história podemos contemplar a
experiência da beleza de Deus, do seu amor e da sua misericórdia, que os
envolveu e transformou as suas vidas. Todos procuraram responder aos apelos da
mensagem da Senhora, mas cada um de modo específico: Francisco, com o espírito
mais contemplativo da presença gozosa de Deus, que ele quer comunicar aos
outros; Jacinta, com o espírito mais compassivo com os que sofrem e os
pecadores; Lúcia, com o espírito mais comprometido na missão de testemunhar e
transmitir a mensagem de misericórdia e a devoção ao Coração Imaculado de
Maria.
Com a capacidade de atrair multidões,
Fátima é chamada a difundir e promover a “santidade de povo”, ou santidade
popular, acessível a todos, através
da experiência íntima da santidade de Deus-Amor, do apelo à conversão
permanente individual e da Igreja “sempre necessitada de purificação” e da
vivência da comunhão dos santos.
22. A esperança na vida eterna: a boa
nova do fim
É
uma nota dominante da mensagem, tanto a nível individual como coletivo. Na
misericórdia de Deus há uma dimensão muito profunda e bela da eternidade, como
sublinha o Papa Francisco: “O facto de repetir continuamente ‘eterna é a sua
misericórdia’, como faz o salmo 136, parece querer romper o círculo do espaço e
do tempo para inserir tudo no mistério eterno do amor. É como se quisesse dizer
que o homem, não só na história mas também na eternidade, estará sempre sob o
olhar misericordioso do Pai” (MV 7).
O
horizonte do coroamento final da vida faz-nos tomar consciência de que não
termina tudo aqui, não se reduz tudo à figura deste mundo. O próprio Jesus nos
diz que estamos com Ele desde agora e também na eternidade, porque Ele foi
preparar para nós um lugar na casa do Pai.
Na mensagem de Fátima, os acontecimentos
da humanidade e da Igreja são submetidos ao critério escatológico, ou do fim
último, para iluminar e julgar o presente e para nos indicar o caminho reto do
futuro. A advertência grave do
“juízo” que paira sobre o mundo como possibilidade de autodestruição infernal,
isto é, a possibilidade de tudo acabar reduzido a cinzas, é anunciada
juntamente com a esperança teologal da vitória sobre o mal a partir da
conversão dos corações a Deus.
Por
outro lado, os Pastorinhos compreenderam e viveram a beleza do Céu que o Anjo e
Nossa Senhora lhes fizeram saborear como plenitude do amor de Deus que os
fascinou. Como contraste, é apresentada a situação infernal (que não se trata
de uma fotografia do Inferno) de quem se encontra à margem do amor de Deus e no
vazio de justiça e de salvação. Assim nos é dado ver a seriedade do amor e a
responsabilidade da nossa liberdade nos dramas da história.
23. A devoção ao Coração Imaculado de
Maria, ícone de Misericórdia
Uma
das heranças espirituais mais preciosas das Aparições de Fátima é a devoção ao Coração Imaculado de Maria, Mãe
de Misericórdia. Conserva uma estimulante atualidade enquanto portadora de
uma espiritualidade mariana de caráter teocêntrico (centrado em Deus) e
mistagógico (que nos conduz para o seu mistério). Constitui um centro
polarizador e de irradiação da mensagem. Maria apresenta-se como Mãe da
misericórdia, Mãe espiritual da Igreja e da humanidade. Através do símbolo do seu Coração Imaculado, ela exerce a missão de
mistagoga dos Videntes e do Povo de Deus, iniciando-os no mistério do Amor
Trinitário, da sua misericórdia e compaixão, para os tornar missionários da
misericórdia divina, levando-a a todas as periferias.
Antes
de mais, fala aos filhos usando a linguagem do coração. “O coração fala ao
coração”, dizia o beato J. H. Newman. O mistério do amor entra pelo coração. É
uma linguagem que toda a gente entende. Deste modo, “veio do Céu a nossa
bendita Mãe, oferecendo-se para transplantar no coração de quantos se lhe
entregam o Amor de Deus que arde no seu” (Bento XVI).
Assim,
Maria dá-nos também olhos e coração para
contemplar a ternura e a misericórdia de Deus, oferecendo o amparo maternal
com que confortou a Lúcia: “Não desanimes. Eu nunca te deixarei. O meu
Imaculado Coração será o teu refúgio e o caminho que te conduzirá até Deus” (M
175).
Os
Pastorinhos contemplaram ainda o Coração Imaculado ligado à Trindade, como
contraponto da visão do Inferno, e também o
“coração cravado de espinhos”, símbolo da mãe compassiva, ícone da misericórdia
divina, que sente a dor dos filhos e vai em auxílio daqueles que correm o
perigo de cair no abismo. A fortaleza da mãe comunica a fortaleza de Deus aos
débeis corações humanos.
Ao mesmo tempo, deixa a promessa
consoladora: “Por fim, o meu Imaculado Coração triunfará... e será concedido ao mundo algum tempo de paz” (M
177)! Para além do Inferno, e não obstante o inferno do mal, há esperança de
salvação! Bento XVI, na sua peregrinação a Fátima, interpretou-a assim: “No
final, o Senhor é mais forte do que o mal e Nossa Senhora é para nós a garantia
visível, materna, da bondade de Deus que é sempre a última palavra na
história”. Trata-se da promessa do triunfo do amor nos dramas da história e de
suscitar a confiança na misericórdia divina, que é mais poderosa do que o poder
do pecado do mundo.
Neste contexto se situa a devoção dos
primeiros cinco sábados do mês. É um
meio pedagógico que concentra e alimenta os outros elementos da devoção ao
Imaculado Coração de Maria com a riqueza e beleza de conteúdos acabados de
expor: a conversão, o sacramento da Penitência e da Reconciliação, a Comunhão
eucarística, a oração do Rosário e a meditação dos mistérios de Cristo, a
misericórdia e a reparação, a intenção da paz no mundo e na Igreja.
24. A consagração ao Coração Imaculado
de Maria
No contexto do triunfo da misericórdia
insere-se, ainda, a consagração do mundo e da Rússia ao Coração Imaculado de
Maria, com a promessa da conversão da Rússia e da paz no mundo. Foi um pedido insistente de Nossa Senhora para ser
realizado pelo Santo Padre em comunhão colegial com todos os bispos do mundo.
Este ato solene é, a meu ver, simultaneamente, expressão do amor materno de
Maria ao mundo sofredor e do envolvimento solidário de toda a Igreja, confiando
à sua intercessão misericordiosa a causa da paz no mundo e da fidelidade da
Igreja.
O
ato de entrega e consagração, tal como fora pedido, só foi plenamente realizado
pelo Papa João Paulo II, em 25 de março de 1984, diante da imagem de Nossa
Senhora de Fátima da Capelinha das Aparições levada propositadamente ao
Vaticano. O significado deste ato foi expresso pelo próprio Papa como
“profissão de fé no infinito poder salvífico da redenção... mediante o Coração
Imaculado da Mãe de Deus que, de modo muito particular, experimentou este poder
salvífico”.
S.
João Paulo II relacionou a subsequente queda dos regimes ateus e o fim das
perseguições religiosas com a promessa de Nossa Senhora. Também o Sínodo dos
Bispos, em 1991, declarou a propósito da queda repentina desses regimes: “Até
muitos não crentes viram nestes acontecimentos quase um milagre”!
A
entrega ou consagração a Maria, de modo individual ou comunitário, é uma forma
de espiritualidade particularmente difundida entre os fiéis católicos. Consiste
na entrega total a Deus com as nossa alegrias e dores, com Maria, por Maria e
como Maria, para fazer frutificar a consagração batismal na vida e na vocação
de cada um.
25. O mistério da Igreja na mensagem de
Fátima
Ao
longo da reflexão, aludi a alguns aspetos do mistério da Igreja que, implícita
ou explicitamente, são evocados na mensagem de Fátima. Procuro agora
sistematizá-los brevemente, para uma visão de conjunto: a Igreja da oração e da adoração de Deus trinitário, hoje e sempre
tão importante, como afirma o cardeal W. Kasper: “O futuro da Igreja será
determinado pelos orantes e a Igreja do futuro será sobretudo uma Igreja de
orantes”; Igreja mãe de misericórdia e de
compaixão com todos os que sofrem à semelhança do Coração Imaculado de
Maria, ícone de misericórdia; Igreja chamada à santidade correspondendo ao apelo
de conversão a exemplo dos Pastorinhos e sempre necessitada de purificação
e renovação permanentes; Igreja testemunhante da fé, justiça, caridade e
paz a exemplo da multidão de mártires; Igreja
comunhão na catolicidade da fé à volta do “bispo vestido de branco” – o
Santo Padre, a quem são feitas várias referências na mensagem – e, em união com
ele, na oração de consagração do mundo e da Rússia ao Coração Imaculado de
Maria; Igreja peregrina a caminho da
Pátria Celeste, no meio de
tribulações e perseguições, sob o amparo e a proteção materna de Maria.
( III - continua )
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