domingo, 20 de setembro de 2015

Leitura faseada da carta pastoral, para o próximo biénio, do Bispo de Leiria Fátima (II)
 Carta Pastoral 2015-2017 – No Centenário das Aparições
Maria, Mãe de Ternura e de Misericórdia 
† António Marto
Leria, 15 de setembro de 2015,
Memória de Nossa Senhora das Dores



FÁTIMA HOJE: A ATUALIDADE DA MENSAGEM

Vamos agora meditar e aprofundar a singular mensagem que Nossa Senhora glorificada, “a toda vestida de branco”, nas Aparições de 1917, na Cova da Iria, confiou aos três Pastorinhos que foram objeto, porta-voz e testemunhas da sua ternura e complacência maternal. A autenticidade e verdade das Aparições e da mensagem foram reconhecidas pela Igreja, pertencendo ao âmbito das chamadas revelações privadas.


 13. Uma revelação privada
As revelações privadas não são um novo evangelho; mas são um eco, um apelo ou imperativo do Evangelho numa determinada situação histórica de gravidade para a Igreja e o mundo. Conforme ensina o Catecismo da Igreja Católica, elas nada acrescentam de novo ao essencial da fé, “o seu papel não é ‘aperfeiçoar’ ou ‘completar’ a Revelação definitiva de Cristo, mas ajudar a vivê-la mais plenamente numa determinada época histórica” (CIC 67).
Com frequência, em relação às aparições encontra-se uma curiosidade doentia que se fixa em pormenores periféricos sem captar o fundamental. No caso de Fátima, muitos olham-na como um conjunto de práticas ou devoções avulsas, fragmentadas, dispersas e até rotineiras, sem ligação ao núcleo da mensagem e sem o respetivo enquadramento. Os órgãos de comunicação social, quando focam só as promessas, o consumo das velas e as penitências de joelhos, deixam na sombra o essencial e o mais belo do tesouro e da experiência espiritual que ali se encontra.

 14. A mais profética das aparições modernas: um olhar sobre o futuro do mundo
Podemos e devemos, pois, interrogar-nos: o que há de particular na mensagem de Fátima que justifique a atenção que suscita, a atração que exerce, o amplo eco que alcançou? Num primeiro momento e à primeira vista, parece que nada tem de especial, porque é uma mensagem confiada a crianças pobres e analfabetas, que falam de uma novidade imprevista que as excede mas as atrai e seduz; uma mensagem adaptada à sua mentalidade, ao seu mundo simples de há muitos anos, expressada em conceitos que se referem à linguagem da época e nos podem parecer ultrapassados. Poderá dizer ainda algo ao mundo de hoje?
Precisamente por isso, impressiona-nos e surpreende-nos que o contexto e o conteúdo da mensagem não se confinam a um caminho de fé pessoal dos pequenos videntes, a uma circunstância particular do seu país ou a uma determinada verdade da fé em questão. O seu horizonte é de alcance histórico e mundial: refere-se às duas guerras mundiais e aos sofrimentos da humanidade com a morte e o extermínio de milhões de inocentes; aos regimes ateus e totalitários com um programa de negação de Deus e de perseguições à Igreja com a menção dos mártires do século XX (hoje contabilizados em 26.685.000 pelo historiador Andrea Riccardi) e do próprio Papa; e à grande causa da paz entre os povos. Tudo isto acompanhado pela promessa da misericórdia de Deus que se inclina sobre este mundo ameaçado e por um chamamento muito forte aos homens a não se resignarem à banalidade e à fatalidade do mal: é possível vencê-lo a partir da conversão do coração a Deus, da oração e da reparação do pecado do mundo.
É dentro deste contexto trágico que a Virgem Maria surge, em Fátima, como uma “visão de paz” e uma luz de esperança para a Igreja e para o mundo. Talvez só hoje, à distância de quase um século, estejamos em condições de compreender com maior profundidade a verdade e todo o alcance desta mensagem.
Nesta perspetiva, Fátima apresenta-se como um sinal de Deus para a nossa geração, uma palavra profética para o nosso tempo, uma intervenção divina na história da humanidade mediante o rosto materno de Maria, uma luz sobre a história. Quando, porém, Maria realiza uma missão recebida de Deus, nunca é por algo sem importância ou por questões marginais; trata-se sempre do grave problema do destino do mundo e da salvação dos homens.
Por tudo isto, o Papa S. João Paulo II ousou afirmar que “entre os sinais dos tempos do século XX sobressai Fátima, que nos ajuda a ver a mão de Deus, Guia providente e Pai paciente e compassivo também deste século XX”. Nesta sequência, o Papa Bento XVI não hesitou em apresentar Fátima como “a mais profética das aparições modernas”.

15. A mensagem para hoje
Não é este o momento de apresentar a história e o texto das Aparições. Num futuro próximo sairá a lume um opúsculo sobre esse assunto. Agora, interessa-nos sublinhar alguns aspetos de caráter permanente e a sua aplicação ao nosso tempo, acentuando a dimensão evangelizadora da mensagem, segundo a orientação que o Papa Bento XVI deu aos bispos portugueses na visita ad limina em 2007: “Apraz-me pensar em Fátima como escola de fé tendo a Virgem Maria por Mestra; lá ela ergueu a sua cátedra para ensinar aos pequenos videntes e depois às multidões as verdades eternas e a arte de orar, crer e amar”.
Nesta perspetiva, as práticas devocionais características de Fátima encontram assim um enquadramento teológico-espiritual e um fio lógico unificador.

 16. O primado de Deus e do seu Amor Trinitário
Nas Aparições, torna-se evidente que o verdadeiro e principal protagonista de todo o acontecimento é Deus pessoal, no seu Amor Trinitário. É d’Ele toda a iniciativa. De facto, no início, no meio e no fim das aparições do Anjo e de Nossa Senhora estão precisamente a visão e a experiência mística do mistério do Amor Trinitário em que os Pastorinhos foram iniciados, introduzidos, envolvidos, encantados e seduzidos pela sua beleza. Expressa-o maravilhosamente o pequeno Francisco, no seu espírito contemplativo: “Gostei muito de ver o Anjo, mas gostei ainda mais de Nossa Senhora. Do que gostei mais foi de ver Nosso Senhor naquela luz que Nossa Senhora nos meteu no peito. Gosto tanto de Deus!” (M 141). Lúcia, por sua vez, exclama: “É esta graça de Deus que atua em nós, levando-nos onde Deus nos quer conduzir, e vamos contentes, como crianças abandonadas nos braços do Pai” (CVM 38).
Esta experiência suscitou nos videntes, como resposta, a atitude de adoração onde germinam as virtudes da fé, da esperança e da caridade, como se pode ver nas orações simples que aprenderam do Anjo: “Meu Deus, eu creio, adoro, espero e amo-Vos...”; “Santíssima Trindade Pai, Filho, Espírito Santo adoro-Vos profundamente...”. A experiência do Amor Trinitário acompanhou sempre os Pastorinhos e deve ser também a marca da espiritualidade cristã de Fátima.
A meu ver, este é um dos aspetos essenciais da mensagem: reconduzir a adoração de Deus para o centro da vida da Igreja e do mundo, frente ao ambiente de ateísmo militante e persecutório que procurava erradicar Deus das consciências e da sociedade.
Hoje, porventura, o risco não é tanto o ateísmo militante, mas sim a indiferença religiosa, a indiferença e a insensibilidade em relação a Deus, o viver “como se Deus não existisse” e ainda o neopaganismo em que o lugar de Deus é ocupado pelos novos ídolos.
Por conseguinte, descobrir o gosto de Deus e da sua beleza, do seu Amor Trinitário, a dimensão contemplativa e mística da fé, neste ambiente de “eclipse cultural de Deus”, de ocultamento do sentido e da presença de Deus nas consciências, na sociedade e na cultura, constitui o grande desafio para o futuro da fé cristã e para a espiritualidade e a pastoral de Fátima. Esta é a grande prioridade da evangelização: tornar Deus presente, próximo e íntimo e abrir aos homens o acesso à experiência amorosa de Deus. Uma das tarefas mais urgentes da Igreja hoje é despertar o gosto de Deus, o gosto e a alegria de crer. O cristão de amanhã ou será místico ou não será cristão” (K. Rahner); só a experiência da presença íntima de Deus poderá manter viva a fé.

 17. Anúncio de graça e misericórdia
Na sequência da manifestação do Amor Trinitário de Deus situa-se o anúncio de graça e misericórdia, de esperança e de conforto para a Igreja perseguida e para a humanidade caída no inferno do ódio entre os povos, das guerras mundiais e dos genocídios. Nas aparições do Anjo, este diz aos videntes: “Os corações de Jesus e de Maria têm sobre vós desígnios de misericórdia” (M 170). E a visão deslumbrante com que se encerram as aparições à vidente Lúcia, em Tuy, termina com estas palavras em letras grandes: “Graça e Misericórdia!” (M 195). Graça do amor misericordioso é a síntese da mensagem de Fátima, em que Deus revela e oferece a sua misericórdia como conforto e força capaz de pôr um limite ao poder devastador do mal. Há esperança de redenção!
Por sua vez, esta mensagem vem acompanhada pelo convite urgente à conversão e à reparação. É um chamamento à cooperação nos desígnios de misericórdia, a não nos resignarmos à fatalidade e à banalidade do mal. Não podemos passar indiferentes ao mal nem tentar iludi-lo. Trata-se, pois, de uma mensagem de resistência e de superação: é possível vencer o mal, os poderes infernais ou diabólicos, a partir da conversão do coração a Deus e da reparação; entendida esta como um chamamento à corresponsabilidade no Amor Trinitário pela salvação do mundo, a reparar com Cristo o pecado do mundo e os seus estragos, particularmente pela Eucaristia, sacramento por excelência do amor reparador de Cristo.
Fátima ajuda-nos, assim, a ler a história com a consciência de que é possível mudá-la a partir de dentro, com a força que vem do alto. Este é um dos aspetos mais impressionantes da mensagem de Fátima: o chamar à solidariedade salvífica. Deus pede-nos uma resposta e vem ao nosso encontro por Maria, para procurar colaboradores em favor dos outros, porque se sentem envolvidos no drama da humanidade e das vítimas. Assim foi pedido aos videntes: “Quereis oferecer-vos a Deus (…) em ato de reparação pelos pecados com que Ele é ofendido?”. Bento XVI afirmou em Fátima, atualizando a mensagem: “Então eram só três, cujo exemplo de vida irradiou e se multiplicou em grupos sem conta por toda a superfície da terra que se votaram à causa da solidariedade fraterna”. Neste contexto, têm lugar e sentido a oração, a Comunhão reparadora, a reparação pela penitência até ao sacrifício como resposta à interpelação de Maria.
 (II - continua)

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