Bento XVI publica carta pastoral na qual apresenta objetivos do «ano da fé», convocado para 2012-2013
Carta Apostólica sob forma de Motu Proprio «Porta Fidei»
Com a qual se proclama o Ano da Fé
1. A porta da fé (cf. Act 14, 27), que introduz na vida de
comunhão com Deus e permite a entrada na sua Igreja, está sempre aberta
para nós. É possível cruzar este limiar, quando a Palavra de Deus é
anunciada e o coração se deixa plasmar pela graça que transforma.
Atravessar aquela porta implica embrenhar-se num caminho que dura a vida
inteira. Este caminho tem início com o Batismo (cf. Rm 6, 4), pelo qual
podemos dirigir-nos a Deus com o nome de Pai, e está concluído com a
passagem através da morte para a vida eterna, fruto da ressurreição do
Senhor Jesus, que, com o dom do Espírito Santo, quis fazer participantes
da sua própria glória quantos creem n’Ele (cf. Jo 17, 22). Professar a
fé na Trindade – Pai, Filho e Espírito Santo – equivale a crer num só
Deus que é Amor (cf. 1 Jo 4, 8): o Pai, que na plenitude dos tempos
enviou seu Filho para a nossa salvação; Jesus Cristo, que redimiu o
mundo no mistério da sua morte e ressurreição; o Espírito Santo, que
guia a Igreja através dos séculos enquanto aguarda o regresso glorioso
do Senhor.
2. Desde o princípio do meu ministério como Sucessor de Pedro,
lembrei a necessidade de redescobrir o caminho da fé para fazer brilhar,
com evidência sempre maior, a alegria e o renovado entusiasmo do
encontro com Cristo. Durante a homilia da Santa Missa no início do
pontificado, disse: «A Igreja no seu conjunto, e os Pastores nela, como
Cristo devem pôr-se a caminho para conduzir os homens fora do deserto,
para lugares da vida, da amizade com o Filho de Deus, para Aquele que dá
a vida, a vida em plenitude»[1]. Sucede não poucas vezes que os
cristãos sintam maior preocupação com as consequências sociais,
culturais e políticas da fé do que com a própria fé, considerando esta
como um pressuposto óbvio da sua vida diária. Ora um tal pressuposto não
só deixou de existir, mas frequentemente acaba até negado.[2] Enquanto,
no passado, era possível reconhecer um tecido cultural unitário,
amplamente compartilhado no seu apelo aos conteúdos da fé e aos valores
por ela inspirados, hoje parece que já não é assim em grandes setores da
sociedade devido a uma profunda crise de fé que atingiu muitas pessoas.
3. Não podemos aceitar que o sal se torne insípido e a luz fique
escondida (cf. Mt 5, 13-16). Também o homem contemporâneo pode sentir de
novo a necessidade de ir como a samaritana ao poço, para ouvir Jesus
que convida a crer n’Ele e a beber na sua fonte, donde jorra água viva
(cf. Jo 4, 14). Devemos readquirir o gosto de nos alimentarmos da
Palavra de Deus, transmitida fielmente pela Igreja, e do Pão da vida,
oferecidos como sustento de quantos são seus discípulos (cf. Jo 6, 51).
De facto, em nossos dias ressoa ainda, com a mesma força, este
ensinamento de Jesus: «Trabalhai, não pelo alimento que desaparece, mas
pelo alimento que perdura e dá a vida eterna» (Jo 6, 27). E a questão,
então posta por aqueles que O escutavam, é a mesma que colocamos nós
também hoje: «Que havemos nós de fazer para realizar as obras de Deus?»
(Jo 6, 28). Conhecemos a resposta de Jesus: «A obra de Deus é esta: crer
n’Aquele que Ele enviou» (Jo 6, 29). Por isso, crer em Jesus Cristo é o
caminho para se poder chegar definitivamente à salvação.
4. À luz de tudo isto, decidi proclamar um Ano da Fé. Este terá
início a 11 de outubro de 2012, no cinquentenário da abertura do
Concílio Vaticano II, e terminará na Solenidade de Nosso Senhor Jesus
Cristo Rei do Universo, a 24 de novembro de 2013. Na referida data de 11
de outubro de 2012, completar-se-ão também vinte anos da publicação do
Catecismo da Igreja Católica, texto promulgado pelo meu Predecessor, o
Beato Papa João Paulo II,[3] com o objetivo de ilustrar a todos os fiéis
a força e a beleza da fé. Esta obra, verdadeiro fruto do Concílio
Vaticano II, foi desejada pelo Sínodo Extraordinário dos Bispos de 1985
como instrumento ao serviço da catequese[4] e foi realizado com a
colaboração de todo o episcopado da Igreja Católica. E uma Assembleia
Geral do Sínodo dos Bispos foi convocada por mim, precisamente para o
mês de outubro de 2012, tendo por tema A nova evangelização para a
transmissão da fé cristã. Será uma ocasião propícia para introduzir o
complexo eclesial inteiro num tempo de particular reflexão e
redescoberta da fé. Não é a primeira vez que a Igreja é chamada a
celebrar um Ano da Fé. O meu venerado Predecessor, o Servo de Deus Paulo
VI, proclamou um semelhante, em 1967, para comemorar o martírio dos
apóstolos Pedro e Paulo no décimo nono centenário do seu supremo
testemunho. Idealizou-o como um momento solene, para que houvesse, em
toda a Igreja, «uma autêntica e sincera profissão da mesma fé»; quis
ainda que esta fosse confirmada de maneira «individual e coletiva, livre
e consciente, interior e exterior, humilde e franca».[5] Pensava que a
Igreja poderia assim retomar «exata consciência da sua fé para a
reavivar, purificar, confirmar, confessar».[6] As grandes convulsões,
que se verificaram naquele Ano, tornaram ainda mais evidente a
necessidade duma tal celebração. Esta terminou com a Profissão de Fé do
Povo de Deus,[7] para atestar como os conteúdos essenciais, que há
séculos constituem o património de todos os crentes, necessitam de ser
confirmados, compreendidos e aprofundados de maneira sempre nova para se
dar testemunho coerente deles em condições históricas diversas das do
passado.
5. Sob alguns aspetos, o meu venerado Predecessor viu este Ano como
uma «consequência e exigência pós-conciliar»[8], bem ciente das graves
dificuldades daquele tempo sobretudo no que se referia à profissão da
verdadeira fé e da sua reta interpretação. Pareceu-me que fazer
coincidir o início do Ano da Fé com o cinquentenário da abertura do
Concílio Vaticano II poderia ser uma ocasião propícia para compreender
que os textos deixados em herança pelos Padres Conciliares, segundo as
palavras do Beato João Paulo II, «não perdem o seu valor nem a sua
beleza. É necessário fazê-los ler de forma tal que possam ser conhecidos
e assimilados como textos qualificados e normativos do Magistério, no
âmbito da Tradição da Igreja. Sinto hoje ainda mais intensamente o dever
de indicar o Concílio como a grande graça de que beneficiou a Igreja no
século XX: nele se encontra uma bússola segura para nos orientar no
caminho do século que começa».[9] Quero aqui repetir com veemência as
palavras que disse a propósito do Concílio poucos meses depois da minha
eleição para Sucessor de Pedro: «Se o lermos e recebermos guiados por
uma justa hermenêutica, o Concílio pode ser e tornar-se cada vez mais
uma grande força para a renovação sempre necessária da Igreja».[10]
6. A renovação da Igreja realiza-se também através do testemunho
prestado pela vida dos crentes: de facto, os cristãos são chamados a
fazer brilhar, com a sua própria vida no mundo, a Palavra de verdade que
o Senhor Jesus nos deixou. O próprio Concílio, na Constituição
dogmática Lumen gentium, afirma: «Enquanto Cristo “santo, inocente,
imaculado” (Heb 7, 26), não conheceu o pecado (cf. 2 Cor 5, 21), mas
veio apenas expiar os pecados do povo (cf. Heb 2, 17), a Igreja,
contendo pecadores no seu próprio seio, simultaneamente santa e sempre
necessitada de purificação, exercita continuamente a penitência e a
renovação. A Igreja “prossegue a sua peregrinação no meio das
perseguições do mundo e das consolações de Deus”, anunciando a cruz e a
morte do Senhor até que Ele venha (cf. 1 Cor 11, 26). Mas é robustecida
pela força do Senhor ressuscitado, de modo a vencer, pela paciência e
pela caridade, as suas aflições e dificuldades tanto internas como
externas, e a revelar, velada mas fielmente, o seu mistério, até que por
fim se manifeste em plena luz».[11]
Nesta perspetiva, o Ano da Fé é convite para uma autêntica e renovada
conversão ao Senhor, único Salvador do mundo. No mistério da sua morte e
ressurreição, Deus revelou plenamente o Amor que salva e chama os
homens à conversão de vida por meio da remissão dos pecados (cf. Act 5,
31). Para o apóstolo Paulo, este amor introduz o homem numa vida nova:
«Pelo Batismo fomos sepultados com Ele na morte, para que, tal como
Cristo foi ressuscitado de entre os mortos pela glória do Pai, também
nós caminhemos numa vida nova» (Rm 6, 4). Em virtude da fé, esta vida
nova plasma toda a existência humana segundo a novidade radical da
ressurreição. Na medida da sua livre disponibilidade, os pensamentos e
os afetos, a mentalidade e o comportamento do homem vão sendo pouco a
pouco purificados e transformados, ao longo de um itinerário jamais
completamente terminado nesta vida. A «fé, que atua pelo amor» (Gl 5,
6), torna-se um novo critério de entendimento e de ação, que muda toda a
vida do homem (cf. Rm 12, 2; Cl 3, 9-10; Ef 4, 20-29; 2 Cor 5, 17).
7. «Caritas Christi urget nos – o amor de Cristo nos impele» (2 Cor
5, 14): é o amor de Cristo que enche os nossos corações e nos impele a
evangelizar. Hoje, como outrora, Ele envia-nos pelas estradas do mundo
para proclamar o seu Evangelho a todos os povos da terra (cf. Mt 28,
19). Com o seu amor, Jesus Cristo atrai a Si os homens de cada geração:
em todo o tempo, Ele convoca a Igreja confiando-lhe o anúncio do
Evangelho, com um mandato que é sempre novo. Por isso, também hoje é
necessário um empenho eclesial mais convicto a favor duma nova
evangelização, para descobrir de novo a alegria de crer e reencontrar o
entusiasmo de comunicar a fé. Na descoberta diária do seu amor, ganha
força e vigor o compromisso missionário dos crentes, que jamais pode
faltar. Com efeito, a fé cresce quando é vivida como experiência de um
amor recebido e é comunicada como experiência de graça e de alegria. A
fé torna-nos fecundos, porque alarga o coração com a esperança e permite
oferecer um testemunho que é capaz de gerar: de facto, abre o coração e
a mente dos ouvintes para acolherem o convite do Senhor a aderir à sua
Palavra a fim de se tornarem seus discípulos. Os crentes – atesta Santo
Agostinho – «fortificam-se acreditando».[12] O Santo Bispo de Hipona
tinha boas razões para falar assim. Como sabemos, a sua vida foi uma
busca contínua da beleza da fé enquanto o seu coração não encontrou
descanso em Deus.[13] Os seus numerosos escritos, onde se explica a
importância de crer e a verdade da fé, permaneceram até aos nossos dias
como um património de riqueza incomparável e consentem ainda a tantas
pessoas à procura de Deus de encontrarem o justo percurso para chegar à
«porta da fé».
Por conseguinte, só acreditando é que a fé cresce e se revigora; não
há outra possibilidade de adquirir certeza sobre a própria vida, senão
abandonar-se progressivamente nas mãos de um amor que se experimenta
cada vez maior porque tem a sua origem em Deus.
8. Nesta feliz ocorrência, pretendo convidar os Irmãos Bispos de todo
o mundo para que se unam ao Sucessor de Pedro, no tempo de graça
espiritual que o Senhor nos oferece, a fim de comemorar o dom precioso
da fé. Queremos celebrar este Ano de forma digna e fecunda. Deverá
intensificar-se a reflexão sobre a fé, para ajudar todos os crentes em
Cristo a tornarem mais consciente e revigorarem a sua adesão ao
Evangelho, sobretudo num momento de profunda mudança como este que a
humanidade está a viver. Teremos oportunidade de confessar a fé no
Senhor Ressuscitado nas nossas catedrais e nas igrejas do mundo inteiro,
nas nossas casas e no meio das nossas famílias, para que cada um sinta
fortemente a exigência de conhecer melhor e de transmitir às gerações
futuras a fé de sempre. Neste Ano, tanto as comunidades religiosas como
as comunidades paroquiais e todas as realidades eclesiais, antigas e
novas, encontrarão forma de fazer publicamente profissão do Credo.
9. Desejamos que este Ano suscite, em cada crente, o anseio de
confessar a fé plenamente e com renovada convicção, com confiança e
esperança. Será uma ocasião propícia também para intensificar a
celebração da fé na liturgia, particularmente na Eucaristia, que é «a
meta para a qual se encaminha a ação da Igreja e a fonte de onde promana
toda a sua força».[14] Simultaneamente esperamos que o testemunho de
vida dos crentes cresça na sua credibilidade. Descobrir novamente os
conteúdos da fé professada, celebrada, vivida e rezada[15] e refletir
sobre o próprio ato com que se crê, é um compromisso que cada crente
deve assumir, sobretudo neste Ano.
Não foi sem razão que, nos primeiros séculos, os cristãos eram
obrigados a aprender de memória o Credo. É que este servia-lhes de
oração diária, para não esquecerem o compromisso assumido com o Batismo.
Recorda-o, com palavras densas de significado, Santo Agostinho quando
afirma numa homilia sobre a redditio symboli (a entrega do Credo): «O
símbolo do santo mistério, que recebestes todos juntos e que hoje
proferistes um a um, reúne as palavras sobre as quais está edificada com
solidez a fé da Igreja, nossa Mãe, apoiada no alicerce seguro que é
Cristo Senhor. E vós recebeste-lo e proferiste-lo, mas deveis tê-lo
sempre presente na mente e no coração, deveis repeti-lo nos vossos
leitos, pensar nele nas praças e não o esquecer durante as refeições; e,
mesmo quando o corpo dorme, o vosso coração continue de vigília por
ele».[16]
10. Queria agora delinear um percurso que ajude a compreender de
maneira mais profunda os conteúdos da fé e, juntamente com eles, também o
ato pelo qual decidimos, com plena liberdade, entregar-nos totalmente a
Deus. De facto, existe uma unidade profunda entre o ato com que se crê e
os conteúdos a que damos o nosso assentimento. O apóstolo Paulo permite
entrar dentro desta realidade quando escreve: «Acredita-se com o
coração e, com a boca, faz-se a profissão de fé» (Rm 10, 10). O coração
indica que o primeiro ato, pelo qual se chega à fé, é dom de Deus e ação
da graça que age e transforma a pessoa até ao mais íntimo dela mesma.
A este respeito é muito eloquente o exemplo de Lídia. Narra São Lucas
que o apóstolo Paulo, encontrando-se em Filipos, num sábado foi
anunciar o Evangelho a algumas mulheres; entre elas, estava Lídia. «O
Senhor abriu-lhe o coração para aderir ao que Paulo dizia» (Act 16, 14).
O sentido contido na expressão é importante. São Lucas ensina que o
conhecimento dos conteúdos que se deve acreditar não é suficiente, se
depois o coração – autêntico sacrário da pessoa – não for aberto pela
graça, que consente de ter olhos para ver em profundidade e compreender
que o que foi anunciado é a Palavra de Deus.
Por sua vez, o professar com a boca indica que a fé implica um
testemunho e um compromisso públicos. O cristão não pode jamais pensar
que o crer seja um facto privado. A fé é decidir estar com o Senhor,
para viver com Ele. E este «estar com Ele» introduz na compreensão das
razões pelas quais se acredita. A fé, precisamente porque é um ato da
liberdade, exige também assumir a responsabilidade social daquilo que se
acredita. No dia de Pentecostes, a Igreja manifesta, com toda a
clareza, esta dimensão pública do crer e do anunciar sem temor a própria
fé a toda a gente. É o dom do Espírito Santo que prepara para a missão e
fortalece o nosso testemunho, tornando-o franco e corajoso.
A própria profissão da fé é um ato simultaneamente pessoal e
comunitário. De facto, o primeiro sujeito da fé é a Igreja. É na fé da
comunidade cristã que cada um recebe o Batismo, sinal eficaz da entrada
no povo dos crentes para obter a salvação. Como atesta o Catecismo da
Igreja Católica, «“Eu creio”: é a fé da Igreja, professada pessoalmente
por cada crente, principalmente por ocasião do Batismo. “Nós cremos”: é a
fé da Igreja, confessada pelos bispos reunidos em Concílio ou, de modo
mais geral, pela assembleia litúrgica dos crentes. “Eu creio”: é também a
Igreja, nossa Mãe, que responde a Deus pela sua fé e nos ensina a
dizer: “Eu creio”, “Nós cremos”».[17]
Como se pode notar, o conhecimento dos conteúdos de fé é essencial
para se dar o próprio assentimento, isto é, para aderir plenamente com a
inteligência e a vontade a quanto é proposto pela Igreja. O
conhecimento da fé introduz na totalidade do mistério salvífico revelado
por Deus. Por isso, o assentimento prestado implica que, quando se
acredita, se aceita livremente todo o mistério da fé, porque o garante
da sua verdade é o próprio Deus, que Se revela e permite conhecer o seu
mistério de amor.[18]
Por outro lado, não podemos esquecer que, no nosso contexto cultural,
há muitas pessoas que, embora não reconhecendo em si mesmas o dom da
fé, todavia vivem uma busca sincera do sentido último e da verdade
definitiva acerca da sua existência e do mundo. Esta busca é um
verdadeiro «preâmbulo» da fé, porque move as pessoas pela estrada que
conduz ao mistério de Deus. De facto, a própria razão do homem traz
inscrita em si mesma a exigência «daquilo que vale e permanece
sempre».[19] Esta exigência constitui um convite permanente, inscrito
indelevelmente no coração humano, para se pôr a caminho ao encontro
d’Aquele que não teríamos procurado se Ele não tivesse já vindo ao nosso
encontro.[20] É precisamente a este encontro que nos convida e abre
plenamente a fé.
11. Para chegar a um conhecimento sistemático da fé, todos podem
encontrar um subsídio precioso e indispensável no Catecismo da Igreja
Católica. Este constitui um dos frutos mais importantes do Concílio
Vaticano II. Na Constituição Apostólica Fidei depositum – não sem razão
assinada na passagem do trigésimo aniversário da abertura do Concílio
Vaticano II – o Beato João Paulo II escrevia: «Este catecismo dará um
contributo muito importante à obra de renovação de toda a vida eclesial
(...). Declaro-o norma segura para o ensino da fé e, por isso,
instrumento válido e legítimo ao serviço da comunhão eclesial».[21]
É precisamente nesta linha que o Ano da Fé deverá exprimir um esforço
generalizado em prol da redescoberta e do estudo dos conteúdos
fundamentais da fé, que têm no Catecismo da Igreja Católica a sua
síntese sistemática e orgânica. Nele, de facto, sobressai a riqueza de
doutrina que a Igreja acolheu, guardou e ofereceu durante os seus dois
mil anos de história. Desde a Sagrada Escritura aos Padres da Igreja,
desde os Mestres de teologia aos Santos que atravessaram os séculos, o
Catecismo oferece uma memória permanente dos inúmeros modos em que a
Igreja meditou sobre a fé e progrediu na doutrina para dar certeza aos
crentes na sua vida de fé.
Na sua própria estrutura, o Catecismo da Igreja Católica apresenta o
desenvolvimento da fé até chegar aos grandes temas da vida diária.
Repassando as páginas, descobre-se que o que ali se apresenta não é uma
teoria, mas o encontro com uma Pessoa que vive na Igreja. Na verdade, a
seguir à profissão de fé, vem a explicação da vida sacramental, na qual
Cristo está presente e operante, continuando a construir a sua Igreja.
Sem a liturgia e os sacramentos, a profissão de fé não seria eficaz,
porque faltaria a graça que sustenta o testemunho dos cristãos. Na mesma
linha, a doutrina do Catecismo sobre a vida moral adquire todo o seu
significado, se for colocada em relação com a fé, a liturgia e a oração.
12. Assim, no Ano em questão, o Catecismo da Igreja Católica poderá
ser um verdadeiro instrumento de apoio da fé, sobretudo para quantos têm
a peito a formação dos cristãos, tão determinante no nosso contexto
cultural. Com tal finalidade, convidei a Congregação para a Doutrina da
Fé a redigir, de comum acordo com os competentes Organismos da Santa Sé,
uma Nota, através da qual se ofereçam à Igreja e aos crentes algumas
indicações para viver, nos moldes mais eficazes e apropriados, este Ano
da Fé ao serviço do crer e do evangelizar.
De facto, em nossos dias mais do que no passado, a fé vê-se sujeita a
uma série de interrogativos, que provêm duma diversa mentalidade que,
particularmente hoje, reduz o âmbito das certezas racionais ao das
conquistas científicas e tecnológicas. Mas, a Igreja nunca teve medo de
mostrar que não é possível haver qualquer conflito entre fé e ciência
autêntica, porque ambas tendem, embora por caminhos diferentes, para a
verdade.[22]
13. Será decisivo repassar, durante este Ano, a história da nossa fé,
que faz ver o mistério insondável da santidade entrelaçada com o
pecado. Enquanto a primeira põe em evidência a grande contribuição que
homens e mulheres prestaram para o crescimento e o progresso da
comunidade com o testemunho da sua vida, o segundo deve provocar em
todos uma sincera e contínua obra de conversão para experimentar a
misericórdia do Pai, que vem ao encontro de todos.
Ao longo deste tempo, manteremos o olhar fixo sobre Jesus Cristo,
«autor e consumador da fé» (Heb 12, 2): n’Ele encontra plena realização
toda a ânsia e anélito do coração humano. A alegria do amor, a resposta
ao drama da tribulação e do sofrimento, a força do perdão face à ofensa
recebida e a vitória da vida sobre o vazio da morte, tudo isto encontra
plena realização no mistério da sua Encarnação, do seu fazer-Se homem,
do partilhar connosco a fragilidade humana para a transformar com a
força da sua ressurreição. N’Ele, morto e ressuscitado para a nossa
salvação, encontram plena luz os exemplos de fé que marcaram estes dois
mil anos da nossa história de salvação.
Pela fé, Maria acolheu a palavra do Anjo e acreditou no anúncio de
que seria Mãe de Deus na obediência da sua dedicação (cf. Lc 1, 38). Ao
visitar Isabel, elevou o seu cântico de louvor ao Altíssimo pelas
maravilhas que realizava em quantos a Ele se confiavam (cf. Lc 1,
46-55). Com alegria e trepidação, deu à luz o seu Filho unigénito,
mantendo intacta a sua virgindade (cf. Lc 2, 6-7). Confiando em José,
seu Esposo, levou Jesus para o Egito a fim de O salvar da perseguição de
Herodes (cf. Mt 2, 13-15). Com a mesma fé, seguiu o Senhor na sua
pregação e permaneceu a seu lado mesmo no Gólgota (cf. Jo 19, 25-27).
Com fé, Maria saboreou os frutos da ressurreição de Jesus e, conservando
no coração a memória de tudo (cf. Lc 2, 19.51), transmitiu-a aos Doze
reunidos com Ela no Cenáculo para receberem o Espírito Santo (cf. Act 1,
14; 2, 1-4).
Pela fé, os Apóstolos deixaram tudo para seguir o Mestre (cf. Mc 10,
28). Acreditaram nas palavras com que Ele anunciava o Reino de Deus
presente e realizado na sua Pessoa (cf. Lc 11, 20). Viveram em comunhão
de vida com Jesus, que os instruía com a sua doutrina, deixando-lhes uma
nova regra de vida pela qual haveriam de ser reconhecidos como seus
discípulos depois da morte d’Ele (cf. Jo 13, 34-35). Pela fé, foram pelo
mundo inteiro, obedecendo ao mandato de levar o Evangelho a toda a
criatura (cf. Mc 16, 15) e, sem temor algum, anunciaram a todos a
alegria da ressurreição, de que foram fiéis testemunhas.
Pela fé, os discípulos formaram a primeira comunidade reunida à volta
do ensino dos Apóstolos, na oração, na celebração da Eucaristia, pondo
em comum aquilo que possuíam para acudir às necessidades dos irmãos (cf.
Act 2, 42-47).
Pela fé, os mártires deram a sua vida para testemunhar a verdade do
Evangelho que os transformara, tornando-os capazes de chegar até ao dom
maior do amor com o perdão dos seus próprios perseguidores.
Pela fé, homens e mulheres consagraram a sua vida a Cristo, deixando
tudo para viver em simplicidade evangélica a obediência, a pobreza e a
castidade, sinais concretos de quem aguarda o Senhor, que não tarda a
vir. Pela fé, muitos cristãos se fizeram promotores de uma ação em prol
da justiça, para tornar palpável a palavra do Senhor, que veio anunciar a
libertação da opressão e um ano de graça para todos (cf. Lc 4, 18-19).
Pela fé, no decurso dos séculos, homens e mulheres de todas as
idades, cujo nome está escrito no Livro da vida (cf. Ap 7, 9; 13, 8),
confessaram a beleza de seguir o Senhor Jesus nos lugares onde eram
chamados a dar testemunho do seu ser cristão: na família, na profissão,
na vida pública, no exercício dos carismas e ministérios a que foram
chamados.
Pela fé, vivemos também nós, reconhecendo o Senhor Jesus vivo e presente na nossa vida e na história.
14. O Ano da Fé será uma ocasião propícia também para intensificar o
testemunho da caridade. Recorda São Paulo: «Agora permanecem estas três
coisas: a fé, a esperança e a caridade; mas a maior de todas é a
caridade» (1 Cor 13, 13). Com palavras ainda mais incisivas – que não
cessam de empenhar os cristãos –, afirmava o apóstolo Tiago: «De que
aproveita, irmãos, que alguém diga que tem fé, se não tiver obras de fé?
Acaso essa fé poderá salvá-lo? Se um irmão ou uma irmã estiverem nus e
precisarem de alimento quotidiano, e um de vós lhes disser: “Ide em paz,
tratai de vos aquecer e de matar a fome”, mas não lhes dais o que é
necessário ao corpo, de que lhes aproveitará? Assim também a fé: se ela
não tiver obras, está completamente morta. Mais ainda! Poderá alguém
alegar sensatamente: “Tu tens a fé, e eu tenho as obras; mostra-me então
a tua fé sem obras, que eu, pelas minhas obras, te mostrarei a minha
fé”» (Tg 2, 14-18).
A fé sem a caridade não dá fruto, e a caridade sem a fé seria um
sentimento constantemente à mercê da dúvida. Fé e caridade reclamam-se
mutuamente, de tal modo que uma consente à outra de realizar o seu
caminho. De facto, não poucos cristãos dedicam amorosamente a sua vida a
quem vive sozinho, marginalizado ou excluído, considerando-o como o
primeiro a quem atender e o mais importante a socorrer, porque é
precisamente nele que se espelha o próprio rosto de Cristo. Em virtude
da fé, podemos reconhecer naqueles que pedem o nosso amor o rosto do
Senhor ressuscitado. «Sempre que fizestes isto a um dos meus irmãos mais
pequeninos, a Mim mesmo o fizestes» (Mt 25, 40): estas palavras de
Jesus são uma advertência que não se deve esquecer e um convite perene a
devolvermos aquele amor com que Ele cuida de nós. É a fé que permite
reconhecer Cristo, e é o seu próprio amor que impele a socorrê-Lo sempre
que Se faz próximo nosso no caminho da vida. Sustentados pela fé,
olhamos com esperança o nosso serviço no mundo, aguardando «novos céus e
uma nova terra, onde habite a justiça» (2 Ped 3, 13; cf. Ap 21, 1).
15. Já no termo da sua vida, o apóstolo Paulo pede ao discípulo
Timóteo que «procure a fé» (cf. 2 Tm 2, 22) com a mesma constância de
quando era novo (cf. 2 Tm 3, 15). Sintamos este convite dirigido a cada
um de nós, para que ninguém se torne indolente na fé. Esta é companheira
de vida, que permite perceber, com um olhar sempre novo, as maravilhas
que Deus realiza por nós. Solícita a identificar os sinais dos tempos no
hoje da história, a fé obriga cada um de nós a tornar-se sinal vivo da
presença do Ressuscitado no mundo. Aquilo de que o mundo tem hoje
particular necessidade é o testemunho credível de quantos, iluminados na
mente e no coração pela Palavra do Senhor, são capazes de abrir o
coração e a mente de muitos outros ao desejo de Deus e da vida
verdadeira, aquela que não tem fim.
Que «a Palavra do Senhor avance e seja glorificada» (2 Ts 3, 1)!
Possa este Ano da Fé tornar cada vez mais firme a relação com Cristo
Senhor, dado que só n’Ele temos a certeza para olhar o futuro e a
garantia dum amor autêntico e duradouro. As seguintes palavras do
apóstolo Pedro lançam um último jorro de luz sobre a fé: «É por isso que
exultais de alegria, se bem que, por algum tempo, tenhais de andar
aflitos por diversas provações; deste modo, a qualidade genuína da vossa
fé – muito mais preciosa do que o ouro perecível, por certo também
provado pelo fogo – será achada digna de louvor, de glória e de honra,
na altura da manifestação de Jesus Cristo. Sem O terdes visto, vós O
amais; sem O ver ainda, credes n’Ele e vos alegrais com uma alegria
indescritível e irradiante, alcançando assim a meta da vossa fé: a
salvação das almas» (1 Ped 1, 6-9). A vida dos cristãos conhece a
experiência da alegria e a do sofrimento. Quantos Santos viveram na
solidão! Quantos crentes, mesmo em nossos dias, provados pelo silêncio
de Deus, cuja voz consoladora queriam ouvir! As provas da vida, ao mesmo
tempo que permitem compreender o mistério da Cruz e participar nos
sofrimentos de Cristo (cf. Cl 1, 24) , são prelúdio da alegria e da
esperança a que a fé conduz: «Quando sou fraco, então é que sou forte»
(2 Cor 12, 10). Com firme certeza, acreditamos que o Senhor Jesus
derrotou o mal e a morte. Com esta confiança segura, confiamo-nos a Ele:
Ele, presente no meio de nós, vence o poder do maligno (cf. Lc 11, 20);
e a Igreja, comunidade visível da sua misericórdia, permanece n’Ele
como sinal da reconciliação definitiva com o Pai.
À Mãe de Deus, proclamada «feliz porque acreditou» (cf. Lc 1, 45), confiamos este tempo de graça.
Dado em Roma, junto de São Pedro, no dia 11 de outubro do ano 2011, sétimo de Pontificado.
BENEDICTUS PP. XVINOTAS: [1] Homilia no início do ministério petrino do Bispo de Roma (24 de abril de 2005): AAS 97 (2005), 710. [2] Cf. Bento XVI, Homilia da Santa Missa no Terreiro do Paço (Lisboa – 11 de maio de 2010): L’Osservatore Romano (ed. port. de 15/V/2010), 3. [3] Cf. João Paulo II, Const. ap. Fidei depositum (11 de outubro de 1992): AAS 86 (1994), 113-118. [4] Cf. Relação final do Sínodo Extraordinário dos Bispos (7 de dezembro de 1985), II, B, a, 4: L’Osservatore Romano (ed. port. de 22/XII/1985), 650. [5] Paulo VI, Exort. ap. Petrum et Paulum Apostolos, no XIX centenário do martírio dos Apóstolos São Pedro e São Paulo (22 de fevereiro de 1967): AAS 59 (1967), 196. [6] Ibid.: o.c., 198. [7] Paulo VI, Profissão Solene de Fé, Homilia durante a Concelebração por ocasião do XIX centenário do martírio dos Apóstolos São Pedro e São Paulo, no encerramento do «Ano da Fé» (30 de junho de 1968): AAS 60 (1968), 433-445. [8] Paulo VI, Audiência Geral (14 de junho de 1967): Insegnamenti V (1967), 801. [9] João Paulo II, Carta ap. Novo millennio ineunte (6 de janeiro de 2001), 57: AAS 93 (2001), 308. [10] Discurso à Cúria Romana (22 de dezembro de 2005): AAS 98 (2006), 52. [11] Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, 8. [12] De utilitate credendi, 1, 2. [13] Cf. Confissões, 1, 1. [14] Conc. Ecum. Vat. II, Const. sobre a Sagrada Liturgia Sacrosanctum Concilium, 10. [15] Cf. João Paulo II, Const. ap. Fidei depositum (11 de outubro de 1992): AAS 86 (1994), 116. [16] Sermo 215, 1. [17] Catecismo da Igreja Católica, 167. [18] Cf. Conc. Ecum. Vat. I, Const. dogm. sobre a fé católica Dei Filius, cap. III: DS 3008-3009; Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Revelação divina Dei Verbum, 5. [19] Bento XVI, Discurso no «Collège des Bernardins» (Paris, 12 de setembro de 2008): AAS 100 (2008), 722. [20] Cf. Santo Agostinho, Confissões, 13, 1. [21] João Paulo II, Const. ap. Fidei depositum (11 de outubro de 1992): AAS 86 (1994), 115 e 117. [22] Cf. João Paulo II, Carta enc. Fides et ratio (14 de setembro de 1998), 34.106: AAS 91 (1999), 31-32.86-87. |