terça-feira, 15 de setembro de 2020

Carta Pastoral do Bispo de Leiria-Fátima sobre a Eucaristia

A EUCARISTIA, ENCONTRO E COMUNHÃO COM CRISTO E OS IRMÃOS

Caríssimos diocesanos,

Irmãs e irmãos no Senhor Jesus

“O Senhor esteja convosco!” Saúdo-vos com estas palavras que ouvis em cada Eucaristia, fazendo votos de que possais experimentar, em cada celebração e na vida, que Ele se torna verdadeiramente presente em nós e no meio de nós, quando O acolhemos na fé e no amor.

O biénio pastoral dedicado aos “Jovens, fé e vocação” foi uma caminhada vivida com entusiasmo nos encontros de diálogo, oração, reflexão e convívio. Os jovens das nossas comunidades puderam, ali, partilhar connosco as suas necessidades, problemas, interrogações e feridas.

Também foi possível abrir espaços e percursos para o seu amadurecimento na fé, discernimento da vocação, participação na vida da comunidade cristã, serviço voluntário aos mais necessitados e de experiências fortes que levam a um encontro com Cristo vivo.

Regozijamo-nos com este crescimento, que requer ser continuado pelo empenho de todos. Os jovens precisam do nosso amor, acolhimento e acompanhamento. “Eles não são o amanhã, mas o hoje de Deus”, como afirma o Papa Francisco. A próxima Jornada Mundial da Juventude (JMJ) pode e deve ser motivo impulsionador para continuar com entusiasmo este percurso pastoral.

A EUCARISTIA NO CONTEXTO ATUAL

1. Porquê este tema?

Nos encontros vicariais com os jovens apareciam sempre as perguntas: para ser católico é preciso ir à Missa? O que é mais importante: ir à Missa ou amar os irmãos?

Também no Conselho Pastoral Diocesano, ao debruçar-se sobre a problemática da juventude, voltavam as questões: porque é que a maioria dos jovens não frequenta a celebração da Eucaristia dominical? Como motivá-los? Estas interrogações fizeram vir ao de cima algo que trazia dentro de mim e que já aflorara, anos antes, numa semana de formação permanente do clero, como sendo necessário dedicar particular atenção pastoral à Eucaristia como centro e fonte da vida cristã. O Papa Bento XVI oferece outra motivação pertinente: “Toda a grande reforma da Igreja está, de algum modo, ligada à redescoberta da fé na presença eucarística do Senhor no meio do seu povo” (SCa 6).

De facto, o tema da Eucaristia, na sua amplitude, aponta para o essencial da fé cristã: Jesus Cristo que, no Sacramento do Altar, é o coração da Igreja e alimento de vida espiritual para os fiéis. Além disso, à maneira de abóbada, permite encerrar o ciclo dos temas pastorais anteriores. Eis, pois, as razões da escolha deste tema para o próximo biénio pastoral. Mal eu imaginava que a pandemia da Covid-19 vinha colocar este tema de forma tão premente na ordem do dia da vida e pastoral da Igreja.

2. Criatividade e novas oportunidades pastorais no tempo de pandemia

Cada projeto pastoral tem o seu contexto existencial, cultural e eclesial próprio. Este começou a ser pensado antes do flagelo global da pandemia. Mas não poderia deixar de ter presente o seu impacto, as suas consequências e interpelações, conforme o discernimento que fizemos nos vários conselhos diocesanos. Estamos conscientes de que a epidemia continua em evolução, sem sabermos como e até quando.

O longo período do confinamento abalou profundamente as nossas comunidades. Nunca tínhamos imaginado ver as igrejas vazias, suspensas as celebrações comunitárias, a catequese e tantas atividades. A impossibilidade de aceder aos sacramentos, de receber a comunhão sacramental, de se encontrar com os irmãos e irmãs em comunidade, de celebrar um funeral religioso digno aos entes queridos falecidos, de viver confinados a Quaresma, a Páscoa e todo o tempo pascal, tudo isto constituiu uma dura provação.

Todavia, o confinamento não nos deixou imobilizados. Levou-nos a dar provas de criatividade pastoral para alimentar a fé e manter vivo o sentido de comunidade nos fiéis, nesta situação excecional.

A crise não significa só perigo, é também oportunidade. Neste caso, fez-nos descobrir outras coisas belas da experiência cristã. Talvez a mais significativa tenha sido, a meu ver, a de viver, como nunca, a experiência da fé em família e como família, qual pequena Igreja doméstica. Foi impressionante ver famílias que (re)começaram a rezar e a partilhar a própria fé nas suas casas. Eis uma dimensão a cuidar melhor na ação pastoral.

O confinamento evidenciou a necessidade da personalização da fé (não mais de tradição ou rotina), de revigoramento da espiritualidade, para dar sentido à vida, mesmo nos momentos de crise, e de acolhimento e acompanhamento face à solidão e às feridas existenciais. Mostrou-nos quanto são essenciais o encontro, o afeto, a ajuda, a comunidade, a comunhão com Deus e entre nós. Daí o desafio a uma pastoral de proximidade da Igreja em saída, próxima das pessoas, sobretudo das que mais sofrem.

Foi consolador constatar os numerosos e belos gestos de generosidade e solidariedade dos profissionais de saúde, dos inúmeros voluntários, mesmo jovens, e dos grupos sociocaritativos das nossas comunidades e a colaboração entre as paróquias e as autarquias.

Grande inovação e criatividade foi o uso das novas tecnologias de comunicação, ferramentas imprescindíveis para a evangelização deste tempo e desta cultura. Elas possibilitaram manter relações pessoais, familiares e comunitárias, oferta e partilha da Palavra de Deus, de orações, meditações, textos de apoio, catequese “on line”, tele-reuniões, etc. Pudemos ver muitos leigos empenhados nestas atividades, corresponsáveis, a solicitar mais confiança numa Igreja marcadamente laical.

Neste tempo, Deus não esteve ausente. Não obstante os momentos de obscuridade, percebemos a sua proximidade e a sua Páscoa mais forte do que as trevas. Descobrimos um amplo espaço de oração e alimento espiritual “para além da Missa”. Por outro lado, fez-nos sentir o valor específico e único da Eucaristia. Como sucede tantas vezes na vida, só descobrimos os valores fundamentais (pão, água, saúde, trabalho, amor...) quando nos faltam. Muitos sentiram a dor de não poderem participar presencialmente na Missa e na comunhão eucarística. A celebração entrava nas nossas casas por via digital ou televisão. Permitia estar unidos espiritualmente e fazer a comunhão espiritual. Penso que o Espírito Santo também agia através destes meios. Mas sentíamos na pele e no coração que não era a mesma coisa que uma celebração presencial e comunitária.

Agora, com prudência, mas com grande alegria, podemos saborear de novo a celebração comunitária presencial. Mas há que estar atentos e evitar a grande tentação do comodismo ou da virtualização da Missa, pensando que basta segui-la comodamente em casa. A celebração da fé é incarnada, presencial, comunitária, relacional, de encontro, de afeto, de comunhão de irmãos e irmãs. Não o esqueçamos!

Notamos que bastantes pessoas ainda estão reticentes em participar na celebração dominical, dominadas pelo medo ou pelo comodismo. Sentimos tristeza e preocupação, particularmente com a ausência de pais, crianças e jovens. Não será o sinal de alarme e alerta de que a pandemia veio pôr a descoberto e acentuar o que já estava a acontecer, isto é, o abandono da celebração dominical por parte das novas gerações?

3. Situação de emergência eucarística

Estamos a viver, hoje, na Igreja uma situação de “emergência eucarística”. Não por heresias doutrinais como no passado, mas sobretudo pela indiferença e consequente abandono da celebração dominical como se fosse algo meramente opcional ou mesmo um fardo. Basta ver a debandada após o crisma e, mesmo já, após a primeira comunhão.

O Concílio Vaticano II ofereceu-nos ensinamentos e condições para uma melhor compreensão do mistério da Eucaristia e a sua celebração mais viva e participada. Devemos, todavia, reconhecer que os frutos esperados desta renovação não têm correspondido às expectativas e tardam a amadurecer.

Constatamos a falta de enlevo, encanto, amor, atração e devoção a este sacramento, uma verdadeira desafeição e até desamor por parte de muitos cristãos que se afastam da celebração. Para este abandono contribuem fatores de ordem social, cultural, familiar, próprios do mundo e deste tempo em mudança. Mas as razões mais profundas são o esmorecimento da fé, a ignorância do verdadeiro significado deste sacramento para a vida cristã e também a falta de qualidade de certas celebrações. Não se ama o que não se conhece bem!

Porquê ir à Missa ao domingo? Para que serve? Entre os chamados católicos “não praticantes”, esta questão é seguida, normalmente, de uma autojustificação: “para rezar não preciso de ir à igreja; rezo melhor em casa ou em contacto com a natureza”. Ou então “a Missa é sempre a mesma coisa”, “não percebo nada do que lá se faz e diz”. A celebração é assim reduzida a uma coisa, uma mera oração pessoal ou comunitária, um rito tradicional religioso.

Para outros, trata-se de um dever ou obrigação a cumprir para estar em ordem com Deus. Alguns vão à Missa por rotina devocional, para lembrar e rezar pelos defuntos, ou apenas por hábito social. O próprio vocabulário traduz o que se pensa: vai-se “assistir à Missa” como quem vê o desenrolar de um rito ou espetáculo religioso que o padre e seus colaboradores representam! Mesmo quando se fala de oferecer o santo sacrifício da Missa, alguns entendem que se refere à penitência do ir à Missa e do tempo que lá se passa.

Também encontramos pessoas que põem toda a sua atenção exclusivamente na hóstia consagrada e na comunhão individual, como se fosse uma mera devoção piedosa privada. E que dizer do programa das festas, quando a Missa figura lá como mais um número e, por vezes, em horários que não permitem grande participação?

Ouvimos, com alguma frequência, queixas de que as nossas celebrações não são atraentes e apetecíveis. Mas se fizéssemos um inquérito sobre o motivo que leva a participar nelas, talvez grande parte das pessoas não referisse o encontro com Cristo ressuscitado e a comunhão com Ele e com os irmãos na fé.

Este panorama evidencia a chamada “situação de emergência eucarística”, que nos coloca perante as questões de fundo. Porque é tão difícil descobrir o “rosto” de Jesus presente na Eucaristia? Que fazer para que mais pessoas apreciem e saboreiem esse Cristo que Se nos entrega para morar em nós e connosco? E tenham interesse em participar na Santa Missa e serem transformadas pelos seus frutos? Como motivar pais, crianças, adolescentes e jovens a participar com gosto na celebração dominical? Que fazer para que, em silêncio, Jesus seja adorado diante do sacrário? O que é que não funciona em relação à compreensão, celebração e vivência da Eucaristia nas nossas comunidades?

Não podemos continuar a apoiar-nos somente na prática tradicional, no hábito social ou no cumprimento do preceito dominical. Cada comunidade é chamada a fazer um discernimento pastoral sério a fim de encontrar respostas e avançar propostas para responder a estas interrogações.

É fundamental descobrir e aprofundar a riqueza e a beleza do conteúdo e do significado que estão presentes na celebração eucarística e que dão sentido pleno à vida de cada cristão e da Igreja. Por isso, vamos tratar o tema numa perspetiva de evangelização, que leve cada fiel e cada comunidade a crescer na fé como encontro com Cristo vivo, no amor ao mistério do Corpo e Sangue do Senhor, na alegria da Sua presença e da comunhão com Ele, na comunhão fraterna e comunitária, no testemunho cristão no mundo. Eis a razão da escolha do título abrangente do biénio “Eucaristia, Comunidade Cristã e Missão”, do lema mobilizador “Felizes os convidados para a ceia do Senhor” e da frase bíblica inspiradora “Eu sou o pão da vida” (Jo 6, 35).


A EUCARISTIA, MISTÉRIO ADMIRÁVEL DA NOSSA FÉ

 

4. “Uma história para nos guiar: os discípulos de Emaús”

Adoto este título do documento preparatório do Congresso Eucarístico Internacional, em 2012, na Irlanda. Ele inspira-se na Carta Apostólica do Papa S. João Paulo II “Fica connosco, Senhor”. A mesma história está também presente no subsídio para o 52º Congresso Eucarístico Internacional, na Hungria, em 2021.

Segundo os estudiosos, o episódio dos discípulos de Emaús (cf. Lc 24, 13-35) é um testemunho notável da fé eucarística da comunidade apostólica. A experiência pascal destes discípulos apresenta os traços característicos da celebração eucarística dominical: os momentos essenciais do encontro de Cristo Ressuscitado com a comunidade cristã e com cada fiel e as partes principais da nossa celebração.

A narrativa é simples, bela e inspiradora. Nunca deixa de nos maravilhar e comover. Tomo-a eu também como fonte de inspiração para o nosso tema.

5. “Bendito seja Deus que nos reuniu no amor de Cristo”

“Enquanto conversavam e discutiam, aproximou-se deles o próprio Jesus e pôs-se com eles a caminho” (Lc 24, 15).

O primeiro passo consiste em Jesus Ressuscitado tomar a iniciativa de vir ao encontro, fazer-se próximo e companheiro de viagem dos discípulos, pondo-se a seu lado, numa atitude de escuta e acolhimento. Este gesto é, por si, eloquente. Testemunha o amor de Deus que nos precede, que nos ama primeiro: Deus ama-te, aproxima-se de ti sem pôr condições. É Ele quem te move interiormente à participação na Eucaristia.

Não nos reunimos por simples amizade, laços familiares, raízes e interesses comuns ou motivos culturais, desportivos, políticos ou de solidariedade. É Cristo ressuscitado quem nos convoca e nos reúne no seu amor que transcende todos os outros laços de união. Nós somos seus convidados e hóspedes! O Senhor que nos reúne em comunidade torna-se presente e é Ele quem, na realidade, preside à Eucaristia: “Onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, eu estou no meio deles” (Mt 18, 20).

No início da celebração da Missa, fazemos esta experiência de Deus que vem ao nosso encontro com o seu amor trinitário. Sinais disso são o sinal da cruz, a saudação inicial, “A graça de Nosso Senhor Jesus Cristo, o amor do Pai e a comunhão do Espírito Santo estejam convosco”, e a resposta da assembleia “Bendito seja Deus que nos reuniu no amor de Cristo”.

Estes ritos iniciais têm a finalidade de nos recolher em interioridade e preparar para o encontro vivo com Deus por meio de Jesus ressuscitado. Para acolher este chamamento de amor que Deus nos faz é necessária a preparação interior e exterior, a começar desde logo pela maneira de entrar e estar na igreja: o modo como se faz, por exemplo, a genuflexão diante do Santíssimo Sacramento no sacrário, a atitude de recolhimento, silêncio e oração. Evitemos a todo o custo a banalização dos gestos, das posturas, dos ruídos desnecessários. Sejam bons exemplos, de modo particular, os que exercem algum ministério ou função especial na celebração.

6. A proclamação e a escuta da Palavra: o diálogo entre Deus e o Seu povo

“E, começando a partir de Moisés e de todos os profetas, explicou-lhes, em todas as Escrituras, tudo o que a Ele dizia respeito... Diziam então um ao outro: “Não nos ardia o nosso coração quando Ele, no caminho, nos falava, quando nos abria as Escrituras?” (Lc 24, 27.32).

Esta passagem mostra-nos o encontro com Cristo ressuscitado na sua Palavra e, ao mesmo tempo, a razão de ser das leituras da Palavra de Deus na celebração da Eucaristia. Jesus toma a iniciativa de falar àqueles discípulos e abre-lhes as Escrituras, isto é, com a Palavra de Deus, ilumina-lhes a mente e o coração, proclamando e explicando a história da salvação com o seu momento culminante na pessoa e no mistério de Cristo, na sua Páscoa.

A liturgia da Palavra é concebida como um diálogo salvífico de Deus com o seu povo, em que Jesus Cristo partilha connosco a mensagem do Pai através da Palavra das Escrituras. Não se trata de um mero ensinamento: “Nos livros sagrados, o Pai que está nos céus vem ao encontro dos seus filhos para conversar com eles” (DV 21). Um diálogo de coração a coração: “Na abundância do seu amor, Deus fala aos homens como a amigos para os convidar à comunhão com Ele e nela os receber” (DV 2).

Acreditamos, por isso, que o próprio Cristo “está presente na sua Palavra, pois é Ele que fala ao ser lida na Igreja a Sagrada Escritura” (SC 7). Não fala no passado, mas no presente e para nós, comunicando-nos a Palavra da Salvação, Palavra de vida eterna.

Na Missa é-nos posta, tanto a mesa da Palavra de Deus, como a do Corpo de Cristo: “A partir das duas mesas, a da Palavra de Deus e do Corpo de Cristo, a Igreja recebe e oferece aos fiéis o Pão da Vida” (SCa 44).

Como havemos de proclamar e escutar a Palavra? Eis esta bela exortação do Papa Francisco: “As páginas da Bíblia deixam de ser um escrito para se tornarem palavra viva pronunciada por Deus. É Deus que, através da pessoa que lê, nos fala e nos interpela a nós que escutamos com fé... Mas, para escutar a Palavra de Deus, é preciso ter o coração aberto para receber as palavras no coração. Deus fala e nós prestamos-lhe escuta para pôr em prática quanto escutámos. É muito importante escutar. Algumas vezes não compreendemos bem, porque algumas leituras são um pouco difíceis. Mas Deus fala-nos à mesma de outro modo. É preciso estar em silêncio e escutar a Palavra de Deus. Não esqueçais isto. Na Missa, quando começam as leituras, escutamos a Palavra de Deus”.

A Liturgia da Palavra coloca-nos perante uma tarefa pastoral de primeira ordem e inadiável, pois “não basta que os textos bíblicos sejam proclamados numa língua compreensível, se tal proclamação não é feita com o cuidado, com a preparação prévia, com a escuta devota, com o silêncio meditativo que são necessários para que a Palavra de Deus toque a vida e a ilumine” (FCS 13). É necessário, por isso, educar o povo de Deus na leitura e meditação da Palavra para acolher melhor Jesus e encontrar-se com Ele, à maneira de tantos encontros nos evangelhos, e para que a sua Palavra se converta em alimento e vida.

7. A última ceia como testamento de Jesus

“E quando se pôs à mesa com eles, tomou o pão, pronunciou a bênção e, depois de o partir, entregou-lho. Então os seus olhos abriram-se e reconheceram-No. (...) E eles contaram o que lhes tinha acontecido pelo caminho e como Jesus se lhes dera a conhecer ao partir o pão” (Lc 24, 30-31.35).

Jesus ressuscitado faz em Emaús os mesmos gestos-chave da última ceia e deixa os dois discípulos surpreendidos, maravilhados e estupefactos: o gesto simples da fração do pão é o sinal para o reconhecimento da sua presença e comunhão, momento culminante do encontro com Ele.

Na base da celebração da Eucaristia está, de facto, a última ceia de Jesus com os apóstolos, no cenáculo, com os gestos por Ele realizados e as palavras que os acompanham e interpretam, como podemos ver nos evangelhos sinóticos e em Paulo (em 1 Cor 11, 23-26). Assim se compreende que os apóstolos e os primeiros cristãos começaram por dar os nomes de “ceia do Senhor” ou “fração do Pão” ao ato que Jesus lhes mandou fazer em sua memória. Daqui se deve partir para poder descobrir e intuir a grandeza do dom maravilhoso que recebemos. Debrucemo-nos, pois, sobre a novidade deste singular acontecimento.

7.1. O sentido global da última ceia

Todos nós conhecemos gestos que encerram e resumem uma vida. A última ceia pertence a esta categoria. Reveste, pois, um carácter especial. É a refeição da despedida, do adeus, na iminência da morte. Já faz parte do mistério da paixão. Nela, Jesus, à semelhança dos grandes patriarcas do Antigo Testamento, resume a sua vida e deixa o seu próprio testamento. O Senhor faz algo absolutamente novo e inédito na noite em que foi entregue. Quando os discípulos se sentam à mesa, não imaginam que irão viver uma experiência que marcará para sempre a sua vida e a de toda a humanidade.

7.2. A ação de graças de Jesus

Jesus começa por fazer uma oração de ação de graças. Daqui vem o nome de “Eucaristia”, que significa exatamente “ação de graças”. Jesus dá graças ao Pai pelos dons da criação e pelas maravilhas da salvação. E a maior destas foi dar aos homens “o Filho do seu Amor”, que se entregou totalmente por eles. É este o maior ato de amor na história de Deus com os homens.

Esta ação de graças dá a tonalidade a toda a ceia, aos seus gestos e às suas palavras.

7.3. Os gestos de partir o pão e distribuir o cálice

Em seguida, Jesus realiza os gestos de partir o pão e distribuir o cálice com vinho. Através das palavras que os acompanham, dá a estes gestos e sinais (pão e vinho) um valor que vai muito para além do seu significado material. Com eles celebra e interpreta antecipadamente o mistério da sua morte em duas expressões novas: “Tomai, todos, e comei: Isto é o meu corpo entregue por vós”; “Tomai, todos, e bebei: este é o cálice do meu sangue derramado por vós e por todos”. Estamos perante as palavras mais originais e inauditas, mais santas e amorosas, mais intensas e dramáticas que jamais alguém disse na história dos homens. Só Jesus!

Como testemunho do seu amor aos discípulos e à humanidade, na hora da despedida, Jesus não nos deixou uma lembrança, uma recordação simbólica, uma imagem, um dom memorável, um objeto querido de estimação, à maneira humana. Ele deixa-se a si mesmo com todo o amor entregue por nós. Tal é o sentido das suas palavras.

7.4. Presença real de Jesus Ressuscitado e da sua entrega (sacrifício) por nós

Na linguagem bíblica, o corpo é expressão da pessoa inteira e o sangue é expressão da vida. Referem-se, pois, à presença real da pessoa viva, singular e total de Jesus, agora na sua santa humanidade glorificada, nos sinais humildes do pão e do vinho. Está presente de modo pessoal e não à maneira de uma coisa colocada dentro de outra como a água num copo. Ele é uma pessoa que em cada um dos sinais do pão e do vinho se dá e se une a nós, inteiramente e não só uma parte de si. O Ressuscitado não está dividido! Nem tempo nem espaço lhe põem limites.

Cada um dos sinais representa, a seu modo, um aspeto particular do mistério da entrega de Cristo. O pão visibiliza Cristo verdadeiro alimento de vida nova e eterna, e alude à paixão de Cristo donde brota esta vida: “O grão de trigo que cai à terra e morre dará muito fruto” (Jo 12, 24). O vinho, além de saciar a sede, exprime a festa de alegria, de abundância e de plenitude de vida que Deus nos quer oferecer e é também fruto da Paixão tal como o vinho é fruto das uvas pisadas.

O pão e o vinho, “frutos da terra, da videira e do trabalho do homem”, significam também os dons da criação e os esforços humanos – com suas alegrias e sofrimentos –, que são apresentados e oferecidos no altar e que Jesus assume e transforma em si, tornando-os para nós alimentos de vida eterna, salvação e comunhão.

Compreendemos, assim, que se trata de uma presença cheia de todo aquele “excesso de amor” com que Jesus se entregou ao Pai por nós até à Cruz, do amor até ao extremo (corpo entregue/sangue derramado) que ficou eternizado para sempre na pessoa ressuscitada do Crucificado. Por isso, a Eucaristia é a presença de Jesus no dom total de si mesmo por nós e a nós, é a atualização do seu único sacrifício, isto é, do infinito amor redentor oferecido na cruz, para dele nos tornar participantes hoje.

Sem a morte, as palavras da última ceia seriam como uma garantia sem cobertura; e sem as palavras, a morte de Jesus seria só a execução de um condenado, sem um sentido reconhecível (J. Ratzinger). São elas que revelam o sentido salvífico, sacrificial da morte enquanto entrega total da vida em amor até ao fim e até ao extremo. Porém, a morte permaneceria vazia e as palavras reduzir-se-iam a nada, sem a ressurreição. O amor de Jesus revela-se mais forte do que a morte. Palavras, morte, ressurreição formam uma unidade que é o mistério pascal, fonte e força da nossa Eucaristia.

7.5. “Fazei isto em memória de mim”: memorial do mistério da morte e ressurreição de Jesus

Na última ceia, Jesus confiou aos Apóstolos um mandato: “Fazei isto em memória de mim” – para que a Igreja de todos os tempos viva deste mistério, como S. Paulo interpreta ao acrescentar: “pois sempre que comerdes deste pão e beberdes deste vinho anunciais a morte do Senhor até que Ele venha” (1Cor, 11, 26).

Este mandato de Jesus é de capital importância para compreender a Eucaristia como dom sacramental que Ele deixou à sua Igreja. A palavra “memorial” ou “fazer memória”, na Bíblia e na Liturgia, tem um significado diferente daquele que corre na mentalidade comum. Não é a simples recordação subjetiva do que Jesus fez e disse, nem uma representação teatral da última ceia ou da paixão, nem um monumento para lembrar um defunto, porque Jesus ressuscitou e está vivo. Memorial, na Bíblia, significa uma celebração em que Deus continua a realizar, a tornar presente a salvação que operou no passado.

As palavras com que Jesus instituiu a Eucaristia são pois: “Fazei isto…”. O sentido exato é: Fazei isto para celebrardes sempre de novo o mistério da minha morte e ressurreição para a salvação do mundo, para celebrardes o mistério da salvação que aconteceu na minha pessoa, na entrega até à morte e eternizado para sempre na ressurreição.

A celebração da Eucaristia não é um espetáculo sagrado a que se assiste a rezar. Nem é sequer uma meditação sobre um acontecimento passado, como se faz na via-sacra. Nem se pode dizer que Jesus morre e ressuscita em cada Missa que se celebra, como ouvi uma vez! É uma ação atual cujo celebrante principal é Cristo ressuscitado e assim se torna presente para nós o mistério da entrega da sua vida, do seu infinito amor por nós e da sua ressurreição.

No centro da Eucaristia está, portanto, a celebração viva e atual do mistério da morte e ressurreição de Jesus, da sua obra salvadora, promessa de vida eterna. É isto que professamos imediatamente após a consagração: “Anunciamos, Senhor, a vossa morte, proclamamos a vossa ressurreição. Vinde, Senhor Jesus!”.

Celebrando este mistério, a Igreja une-se, pois, ao sacrifício (oblação) de Cristo, oferecendo-se com Ele – para “que sejamos em Cristo uma oferenda viva para louvor da vossa glória” (Oração eucarística IV) – e acolhe os seus frutos: a união de todos os redimidos num só Corpo, a reconciliação da nova aliança, a intercessão por todos (vivos e defuntos) e por toda a criação numa solidariedade salvífica e cósmica, como é expresso na grande oração eucarística. E perante este tão grande mistério, aquela oração termina num jubiloso hino de louvor: “Por Cristo, com Cristo, em Cristo, a Vós, Deus Pai todo poderoso, na unidade do Espírito Santo, toda a honra e toda a glória, agora e para sempre”!

7.6. “Mistério admirável da nossa fé!”

Eis o mistério admirável, maravilhoso da nossa fé: do Deus connosco, Deus para nós, por nós e em nós. Eis a beleza e a grandeza do seu amor insuperável, incondicional, universal: amor gratuito e fiel, amor de misericórdia e sem medida, amor com promessa de eternidade!

Conta-se que o conhecido escritor francês André Malraux, agnóstico e ministro da Cultura do Presidente De Gaulle, terá perguntado, durante um almoço, a Edmont Michelet, católico e ministro da Justiça: “Michelet, será que os teus padres se dão conta, pobres deles, daquilo que fazem quando dizem ‘isto é o meu corpo; isto é o meu sangue’? Deus, ali! Tu dás-te conta verdadeiramente do que isso é?”. Esta interpelação dum agnóstico mostra por quem Deus nos manda avisar! Por vezes, existe mais consciência do mistério da nossa fé em alguns que consideramos não crentes, do que em muitos cristãos.

7.7. Banquete de comunhão: “Felizes os convidados para a ceia do Senhor!”

A participação no mistério pascal de Cristo, celebrado na Eucaristia, expressa-se, de modo pleno, na comunhão. Todo o significado, toda a grandeza e beleza deste momento são muito bem expressos no convite que o sacerdote dirige à assembleia, ao erguer nas suas mãos o “Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo” – isto é, Cristo Redentor: “Felizes os convidados para a ceia do Senhor!” Somos, antes de mais, convidados, hóspedes e comensais da ceia do Senhor. É a mesma ceia que Ele viveu com os apóstolos no cenáculo quando – surpresa inaudita e maravilhosa – lhes deu o “Seu Corpo e Sangue”, antecipando assim o dom total de si mesmo na cruz, que agora é dado a nós em comunhão.

Quem toma parte neste banquete é feliz! É-lhe oferecida uma bem-aventurança, uma experiência de extraordinária felicidade, de uma alegria original e indizível que nasce do acolhimento do dom de Cristo, do seu Corpo (pessoa) glorioso e de todo o seu mistério de amor. A comunhão eucarística é a porta que faz entrar Cristo em nós e nós em Cristo. Eis a maravilha das maravilhas do Deus connosco em que o coração de Cristo se une ao nosso e o nosso ao Seu para viver em comunhão e para fazer de nós um povo de comunhão! O Filho de Deus tornou-se carne humana para se tornar pão vivo, pão de vida eterna.

“Ao pedido dos discípulos de Emaús para que ficasse com eles, Jesus respondeu com um dom muito maior: através do sacramento da Eucaristia encontrou o modo de permanecer ‘dentro’ deles. Receber a Eucaristia é entrar em comunhão profunda com Jesus” (FCS 19), uma relação de íntima e recíproca permanência: “Quem come a minha carne e bebe o meu sangue mora em mim e eu nele; aquele que me come, viverá por mim” (Jo 6, 56-57), “permanecei em mim e eu permanecerei em vós” (Jo 15, 4).

Fazer (receber) a comunhão não é só acolher dentro de nós o Senhor para uma visita. Acolher uma visita não exige muito: basta um ramo de flores e a casa mais limpa e cuidada. Mas Jesus Cristo vem a mim para se oferecer em mim e comigo ao Pai, para tornar presente dentro de mim e no meu coração a entrega de amor que fez no calvário e a vida nova de ressuscitado. Assim, insere-se n’Ele o dom da nossa vida quotidiana para que se torne vida de doação.

A este propósito, é preciso fazer uma revisão do nosso modo de viver a comunhão sacramental: não pode ser um ato rotineiro ou até banal, sem a veneração e o recolhimento interior. Deve ser acompanhada pela comunhão espiritual de quem diz “Senhor, eu quero receber-te no meu coração, viver do teu amor, seguir os teus passos, colaborar contigo para um mundo melhor”, e por um momento de ação de graças. Quando o celebrante nos diz “Corpo de Cristo” e nós respondemos “Ámen”, saibamos que este “Ámen” é mais do que um “eu acredito na presença real”. É um Ámen de compromisso neste sentido: “Sim, eu deixo entrar Cristo no meu coração, na minha vida, quero viver d’Ele e com Ele”.

8. Um só pão, um só corpo: a Eucaristia faz a Igreja

O encontro dos discípulos de Emaús com o Senhor ressuscitado na fração do pão conduziu-os de novo a Jerusalém e integra-os na comunidade que haviam deixado. Restabelece os laços de comunhão que edificam a comunidade cristã.

O facto de todos comungarmos o mesmo Senhor Jesus Cristo, em Leiria, em Roma ou na China, une-nos uns aos outros no momento em que nos une todos a Cristo e em Cristo. A comunhão eucarística é pessoal, mas nunca pode ser um facto privado. Tem uma dimensão comunitária, eclesial. S. Paulo afirma-o claramente: “Uma vez que há um só pão, nós, embora sendo muitos, formamos um só corpo, porque todos participamos do mesmo pão” (1Cor 10, 17). A comunhão do dom que é Cristo gera a comunhão fraterna, torna-nos um só corpo. Neste sentido, a Igreja é Corpo de Cristo. No mistério da Eucaristia, Jesus edifica a Igreja como comunhão. Por isso dizemos “A Eucaristia faz a Igreja”. Sem ela não há a Igreja de Jesus como comunidade que vive de Cristo e do seu amor, do amor pascal.

A celebração é também a manifestação máxima da unidade da Igreja como comunhão na diversidade dos membros, das suas funções e ministérios. Significa e realiza a unidade “fazendo que, de estranhos, dispersos e indiferentes uns aos outros, nos tornemos unidos, iguais e amigos” (S. Paulo VI). Acolhe a múltipla riqueza de dons e carismas que o Espírito Santo derrama na comunidade. Isto deve levar-nos a tomar uma maior consciência do que Jesus nos dá e pede. “É comunhão fraterna, cultivada com uma ‘espiritualidade de comunhão’ que nos leva a sentimentos de recíproca abertura, estima, compreensão e perdão” (FCS 21).

Além disso, a participação na Eucaristia deve fortalecer e fomentar o nosso sentido de pertença à Igreja, a nossa responsabilidade na edificação da comunidade cristã, a partilha com os irmãos.

A Eucaristia é o pão e o sacramento da fraternidade e isto deve aparecer na estrutura da celebração e na vida quotidiana. Onde há divisão, desinteresse recíproco, incapacidade de partilha, fechamento em si mesmo, desrespeito da dignidade humana, descarte dos pobres e frágeis, a Eucaristia é profanada, como nos mostram as palavras duras que brotam do coração amargurado do apóstolo Paulo face ao comportamento incoerente dos cristãos de Corinto (cf. 1 Cor 11, 17-22).

9. Da celebração à missão

“Partiram imediatamente” (Lc 24, 33)

O regresso apressado dos dois discípulos a Jerusalém após o encontro com Jesus mostra-nos o seu entusiasmo para anunciar o Senhor ressuscitado e representa também a fisionomia missionária da Eucaristia para a Igreja e para cada batizado.

Não há Missa sem missão! A celebração termina com a bênção e a despedida finais. É um rito de envio para as nossas ocupações normais e para levar a bênção e a paz de Deus para a vida no mundo. A palavra Missa provém precisamente da fórmula de despedida em língua latina “Ite, missa est”, que significa “Ide, sois enviados!” (Youcat, 212).

Assim, “a despedida no final de cada Missa constitui um mandato que impele o cristão para o dever de propagação do Evangelho e de animação cristã da sociedade” (FCS 24), através dos valores, atitudes e propósitos que a Eucaristia exprime e suscita: a alegria de testemunhar a fé, o amor ao próximo, o acolhimento, as relações de comunhão, a fraternidade, a solidariedade, a partilha, o diálogo, a reconciliação, a paz, o cuidado da criação, o serviço e apoio aos mais pobres, frágeis e marginalizados. Aquele que diz “tomai e comei, isto é o meu corpo” é o mesmo que declara: “o que fizerdes ao mais pequenino dos meus irmãos é a mim que o fazeis” e “brilhe a vossa luz diante dos homens...”. É caso para aplicar também aqui a frase de Jesus: “não separe o homem aquilo que Deus uniu”! Não nos é lícito fazer o divórcio entre o Cristo presente na Eucaristia e o Cristo presente nos irmãos.

Mais eloquentes que qualquer comentário meu são as palavras de três santos, que dão que pensar.

“Queres honrar o Corpo de Cristo? Então fá-lo quando o encontrares nu, na pessoa de um pobre. De nada vale trazeres sedas e metais preciosos aqui para o templo, se deixas Cristo sofrer lá fora ao frio e com a falta de agasalho. De que vale ter o templo cheio de vasos de ouro se o próprio Cristo está a morrer de fome? Tu fazes cálices de ouro, mas não ofereces um copo de água fresca ao necessitado. Cristo como estrangeiro sem abrigo, anda pelas ruas a mendigar, mas em vez de O acolheres, tu fazes ornamentações...” (S. João Crisóstomo, Comentário sobre S. Mateus, Homilia 50).

Uma oração atribuída a Santa Teresa de Ávila diz: “Cristo não tem outro corpo senão o teu, outras mãos senão as tuas, outros pés senão os teus. Os teus olhos são os olhos através dos quais a compaixão de Cristo deve olhar para o mundo. Os teus pés são os pés com os quais Ele caminhará fazendo o bem. Tuas são as mãos com as quais Ele, agora, nos abençoa”.

Por fim, Santa Teresa de Calcutá deixou-nos esta afirmação: “Na Missa nós temos Jesus sob a aparência do pão, enquanto nas favelas nós vemos e tocamos Cristo nos corpos mutilados e nas crianças abandonadas”!

Jesus na Eucaristia abre os nossos olhos também para as nossas relações pessoais, sociais e institucionais com o próximo, para fazer do culto eucarístico “uma escola de amor efetivo ao próximo”. Neste modo de vida se comprova a autenticidade da nossa fé e da participação nas celebrações.

10. A Celebração Eucarística

A grandeza e a beleza do Mistério admirável da nossa fé exigem que seja bem celebrado: “É preciso que a Santa Missa seja colocada no centro da vida cristã e que, em cada comunidade, tudo se faça para celebrá-la dignamente, segundo as normas estabelecidas, com a participação do povo, valendo-se dos diversos ministros no desempenho das atribuições que lhes estão atribuídas” (FCS 17).

Promover e assegurar a qualidade de excelência da celebração é um desafio grande. Não pode ser reduzido a puro “ritualismo litúrgico”. Seria empobrecedor e falsificaria a questão. O que está em jogo é o sentido mais genuíno da liturgia cristã, o mistério de Cristo que por amor gratuito se dá a nós e que espera ser livre e condignamente acolhido por nós, através de uma fé professada, celebrada, vivida e testemunhada.

Isto exige que a celebração, no respeito pelas normas litúrgicas, seja guiada pela “sabedoria celebrativa”, a fim de que se realize com a devida dignidade e beleza e abra o coração à contemplação e ao deslumbramento do mistério celebrado. Se isso acontecer, quem participa nas nossas missas – como também quem assiste por qualquer circunstância, talvez distraído ou indiferente – poderá dizer, com deslumbramento, maravilha e gratidão: aqui está Deus, aqui está Deus com o homem, aqui Deus está verdadeiramente entre nós!

Para alcançar esta qualidade, limito-me aqui a sublinhar a promoção da participação consciente, ativa e devota, interior e exterior, íntima e visível de toda a assembleia na celebração. É preciso, contudo, superar o risco de um conceito reduzido de participação. A tríade “consciente, ativa, piedosa” deve ser bem meditada e aprofundada:

- Participação consciente: é o conhecimento, a compreensão e meditação do que se diz e faz, isto é, do mistério que se celebra e comunica na Palavra, nos gestos e sinais. Não é, pois, a multiplicação (inflação) da palavra para explicar tudo, mas a confiança na força pedagógica dos símbolos/sinais bem postos e realizados.

- Participação ativa: implica o sentir-se envolvido na Palavra bem proclamada e na escuta interiorizada, nas atitudes e nos gestos realizados, no canto bem executado e no silêncio acolhedor e fecundo. A atividade não é uma convulsão de muitas coisas, mas ordem, proporção, harmonia.

- Participação piedosa: aquela de quem celebra com fé viva, afeto e ardor, com um coração orante e adorante, mas também com a simplicidade da criança que exterioriza espontaneamente os próprios sentimentos. Piedade não significa fechamento intimista mas vigor espiritual partilhado.

Para introduzir no mistério a celebrar, é fundamental a mistagogia ou catequese mistagógica que ajuda a descobrir as valências dos gestos e das palavras e a passar dos sinais ao mistério, de modo a envolver nele a pessoa inteira, alma e coração, mente, corpo e afeto.

A arte de celebrar diz respeito a toda a assembleia. Em síntese, conhecimento, dignidade e beleza, harmonia, ritmo e proporção, elegância e competência em tudo o que se diz, faz e canta, nos gestos e palavras próprios de cada ministério ou função, boa colaboração entre ministérios e tarefas, tendo como base uma espiritualidade de adoração do Mistério, são os requisitos de fundo para uma celebração de qualidade. Aqui podemos ver quanto trabalho há ainda por fazer!

11. O sentido da adoração eucarística

O mistério da Eucaristia apresenta um aspeto inaudito e surpreendente que desconcerta a inteligência e comove o coração: como é possível, Senhor, que Tu queiras ficar aqui connosco, tão próximo e tão íntimo, com a tua presença misteriosa, mas tão verdadeira e real como estás no Céu, com todo o teu mistério de amor revelado e oferecido na cruz?

Estamos perante um gesto abismal do amor de Deus! Diante dele, a única atitude possível ao homem é a adoração cheia de gratidão ilimitada. A adoração é a atitude de reconhecimento, de acolhimento íntimo de tão grande dom, de contemplação e interiorização na fé e no amor, de louvor e ação de graças.

É um tempo e um espaço, exterior e interior, para recentrar todo o nosso ser, mente e coração, sentidos e sentimentos, em Cristo crucificado e ressuscitado, presente no meio de nós como centro de convergência e de atração dos corações: “Hão-de contemplar Aquele que trespassaram” (Jo 19, 37; 12, 32). É um encontro, coração a coração, do fiel com o Senhor ressuscitado presente no seu perene ato de amor que nos atrai a si e nos abraça na sua bênção.

Todavia devemos ter em conta a ligação íntima com a celebração: “o ato de adoração fora da Santa Missa prolonga e intensifica aquilo que aconteceu na celebração litúrgica. Com efeito, somente na adoração pode amadurecer um acolhimento profundo e verdadeiro. Precisamente neste ato de encontro pessoal com o Senhor amadurece também a missão social, que está contida na Eucaristia e deseja romper as barreiras, não apenas entre o Senhor e nós mesmos, mas também, e sobretudo, as barreiras que nos separam uns dos outros” (SCa 66).

Por isso deve ser também um momento propício para meditar e orar por toda a Igreja e pelo mundo, para aprofundar a solidariedade fraterna, para rever, na luz de Deus, a nossa missão na família, na comunidade, na Igreja e no mundo.

Recomendo vivamente a prática frequente desta devoção quer nas comunidades quer a título individual para as várias idades, a exemplo dos santos Pastorinhos de Fátima Francisco e Jacinta Marto. Tenho ouvido testemunhos de jovens e adultos, no encerramento dos Convívios Fraternos e dos Cursos de Cristandade, que indicam o momento da adoração eucarística como a experiência mais forte que os tocou. Ficaram fascinados com a adoração a sós, tu a tu com Jesus escondido, em que lhe puderam abrir o coração e confidenciar toda a intimidade. É uma prática que tem demonstrado dar bons frutos.

“Para viver da Eucaristia é preciso consumir tempo em adoração diante do SS. Sacramento, experiência que eu mesmo faço todos os dias tirando daí força, consolação e sustento” (S. João Paulo II). Não nos mostremos, pois, avaros do nosso tempo para nos encontrarmos com Ele na adoração. Neste sentido, sem prejuízo do cuidado com a segurança, os pastores mantenham as igrejas abertas e convidem os fiéis a entrarem nelas com frequência para estar com Jesus e adorá-lo.

12. A procissão eucarística: manifestação pública da fé em Cristo vivo

O mistério de presença e dom de Jesus Cristo vivo que se celebra na Eucaristia e diante do qual permanecemos em adoração torna-se confissão de fé e testemunho público na procissão com o Santíssimo Sacramento. Através dela, pelas ruas e no meio das nossas casas, exprimimos o nosso amor agradecido ao Senhor que se fez nosso alimento espiritual, “companheiro de viagem” e “fonte inexaurível de bênção” para as nossas vidas e para o mundo.

Não deixemos perder este ato público de culto eucarístico. Como se faz na cidade de Leiria, na solenidade do Corpo e Sangue de Cristo, assim se motive os fiéis para que, em cada paróquia, se realize anualmente, em dia oportuno, a procissão com o Santíssimo Sacramento, como testemunho de fé e fonte de bênçãos divinas para a comunidade cristã e para toda a sociedade.

 


 

LINHAS DE ORIENTAÇÃO PASTORAL

13. O dom por excelência de Jesus

O Papa S. João Paulo II, na encíclica “A Igreja vive da Eucaristia”, deixou-nos esta afirmação sintética e lapidar: “A Igreja recebeu de Cristo, seu Senhor, a Eucaristia, não só como um dom entre muitos, ainda que valioso, mas como o dom por excelência, porque é dom de si mesmo, da sua pessoa na sua santa humanidade, assim como da sua obra de salvação” (n. 11). Um grande dom e, ao mesmo tempo, uma grande responsabilidade pastoral sobre como O acolher, celebrar, viver e testemunhar. Nesta linha, o Papa Francisco aponta o alvo: “O verdadeiro desafio da pastoral eucarística é precisamente a comunhão com Cristo, porque se trata de ajudar os fiéis a realizar essa comunhão com Ele, presente no sacramento, para viver n’Ele e com Ele na caridade e na missão” (Discurso ao Pontifício Comité para ao Congressos Eucarísticos Internacionais, 10/11/2018).

A estas afirmações acrescentaria outra, complementar e pertinente: “Uma renovada consciência do tesouro incomparável que Cristo deixou à sua Igreja seja estímulo para a sua celebração mais viva e sentida da qual brote uma existência cristã transformada pelo amor” (FCS 29).

Aqui encontramos, a meu ver, os princípios onde assentam e donde derivam as linhas de uma pastoral orientada para a Eucaristia e nela inspirada. Algumas já foram acenadas. Elas requerem, contudo, ser inseridas e concretizadas numa perspetiva de evangelização. Estamos numa situação histórica de mudança epocal e cultural que invoca um novo encontro com o Evangelho, em particular com a frescura do primeiro anúncio sobre Jesus e o encontro pessoal com Ele. As convicções de fé, se são autênticas, não o são por mera tradição hereditária. Requerem ser personalizadas ou reapropriadas de modo pessoal.

14. Despertar a fé na presença real de Jesus e o gosto do encontro com Ele

Verificamos que as recomendações às crianças, aos adolescentes, jovens e adultos para participarem na celebração dominical surtem pouco efeito. Por outro lado, a mera observância por preceito não é resposta adequada ao que é um dom maravilhoso.

Deve apostar-se, antes de mais, em dar a conhecer Jesus vivo e ressuscitado, de modo a fazer experimentar a amizade d’Ele e com Ele. E, nesta sequência, descobrir e aprofundar a sua presença na Eucaristia e o gosto pelo encontro com Ele. Há que compreender que se trata de um modo específico de presença: é a pessoa viva e inteira de Jesus ressuscitado, na sua humanidade glorificada de Filho de Deus, embora oculta nos sinais do pão e do vinho consagrados, que se torna presente; ali está Jesus vivo, verdadeiro, real com todo o amor com que se ofereceu na cruz “por nós homens e para nossa salvação” e se oferece a nós hoje para vivermos uma vida nova, em comunhão com Ele e com os outros. Na celebração, nós vamos, em primeiro lugar, receber um dom e não oferecer!

Este é o mistério admirável de Jesus na Eucaristia, um verdadeiro milagre do seu amor como só Ele o pode fazer. Pode parecer difícil de compreender à nossa capacidade racional. Mas, como diria Pascal, “o coração tem razões que a razão não conhece”. Sim, o amor profundo não vive só de palavras nem se contenta só com palavras; requer presença e comunhão! Este aspeto deve despertar em todos os cristãos enlevo, encanto e deslumbramento! Esta deve ser a grande motivação da nossa participação na celebração da Eucaristia.

É necessário, portanto, cultivar o sentido espiritual da presença escondida e jubilosa do Senhor e do encontro com Ele. Estamos aqui no núcleo central da fé, o querigma: o encontro com “Aquele que me amou e se entregou por mim” (Gal 2, 20)! Há que aproveitar todas as iniciativas e atividades de formação, oração e adoração propostas para este biénio tais como a leitura orante da Palavra de Deus, o retiro popular sobre textos bíblicos relacionados com a Eucaristia, os encontros vicariais com o bispo, a formação de adultos a partir das catequeses eucarísticas do Papa Francisco, promoção de adoração eucarística para as várias faixas etárias inspirada na figura de S. Francisco Marto, a experiência das “24 horas para o Senhor”.

15. Promover a leitura e o estudo da Palavra de Deus na Sagrada Escritura

Numa passagem de forte intensidade, o Concílio Vaticano II declara: “A Igreja venerou sempre as Sagradas Escrituras como venera o próprio Corpo do Senhor, não deixando de tomar e distribuir aos fiéis o pão da vida, tanto da mesa da Palavra de Deus, como do Corpo de Cristo”.

De seguida, ilumina o sentido e concretiza o poder salvífico da Palavra: “Com efeito, nos livros Sagrados, o Pai que está nos céus vem carinhosamente ao encontro dos seus filhos para conversar com eles. E é tão grande a força e a eficácia da Palavra de Deus que se torna o sustentáculo vigoroso da palavra da Igreja, fortaleza da fé para os filhos da Igreja, alimento da alma, fonte pura e perene de vida espiritual... e tem o poder de construir o edifício” (DV 21).

Aqui vemos um traço do rosto da Igreja, da sua identidade: a comunidade que escuta a Palavra de Deus, vive dela e anuncia-a. Daqui deriva a necessidade de aprofundar o conhecimento da Sagrada Escritura e de cultivar a atitude de escuta da Palavra por parte de todo o povo.

Assim sendo, uma das prioridades deste biénio é proporcionar aos fiéis um contacto assíduo com a Palavra de Deus e uma formação bíblica sólida. Há que dispor dos instrumentos mais adequados e acessíveis para que ninguém fique privado da luz e da força da Palavra do Senhor. Não se trata apenas de adquirir mais conhecimentos teóricos e maior cultura, mas sobretudo de escutar Deus que fala, de acolher Jesus, de converter o coração e a vida a Ele. Assim é possível valorizar, celebrar e viver melhor a Eucaristia, pois a liturgia da Palavra é nela um elemento decisivo.

Recomendamos a frequência da formação bíblica no Centro de Cultura e Formação Cristã, o incremento da leitura orante da Palavra de Deus quer como preparação para a liturgia dominical quer fomentando uma maior participação no retiro popular, incluindo a nível familiar, e a constituição de grupos bíblicos. Deverá também solenizar-se em cada paróquia o Domingo da Palavra de Deus com iniciativas ousadas. Os sacerdotes, por meio do estudo, meditação e oração pessoal, cuidem da preparação da homilia como meio de ajuda para compreender e aplicar a Palavra de Deus à vida dos fiéis.

16. Valorizar a dimensão comunitária da celebração

A Eucaristia tem uma dimensão comunitária fundamental. As comunidades locais reunidas em assembleia participando na mesma celebração são a principal manifestação da Igreja (cf. SC 41). Neste sentido, a celebração deve aparecer como ação de toda a comunidade: todos são chamados a participar ativamente, com atenção e devoção, sob a presidência do sacerdote, em comunhão com Deus e com os irmãos.

“A celebração litúrgica é uma ação sagrada de toda a assembleia e não só do clero” (ChfL 23). O ministério da presidência promove e conjuga-se com os vários serviços litúrgicos: assembleia, leitores, acólitos, grupo coral... Uma função importante de quem preside é a escolha e preparação dos vários colaboradores bem como o reconhecimento do serviço que desempenham e do lugar que ocupam.

A celebração eucarística tem em si a capacidade de gerar e reconstruir laços comunitários fortes. Para isso é necessário que seja um ato preparado por todos, no qual sejam envolvidos os diferentes grupos e para o qual convirjam as várias atividades pastorais. “No seu empenho pastoral, os sacerdotes prestem uma atenção ainda maior à Missa dominical, como celebração onde a comunidade paroquial se encontra em conjunto, contando ordinariamente com a participação dos vários grupos, movimentos e associações nela presentes” (FCS 23).

A dimensão comunitária não se reduz ao momento celebrativo. Há que dar também espaço e importância ao encontro das pessoas, nomeadamente ao cuidado do acolhimento inicial, às relações fraternas, à festa, à saída após a celebração, de modo que cada um se sinta na igreja como em sua casa. Neste sentido, será de criar ou valorizar a equipa de acolhimento, cuidar da qualidade da visita e comunhão aos doentes, aproveitar festas ou datas significativas, como a festa da Sagrada Família, a participação na celebração diocesana do Corpo de Deus ou na Peregrinação a Fátima, como dias especiais da Eucaristia de todas as famílias.

17. Celebrar com dignidade e beleza

A celebração preparada com cuidado e bem realizada, com solenidade e beleza, com respeito pela linguagem dos ritos e pela sensibilidade dos presentes, participada interior e exteriormente pela assembleia, com ambiente de silêncio que favoreça o acesso ao mistério, é, por si, uma vivência e um anúncio da fé na presença viva do Senhor. Deste modo, uma assembleia litúrgica com qualidade, constitui uma escola onde se desperta e cultiva o sentido e o gosto da celebração.

Neste sentido, é preciso não descurar a qualidade, beleza, higiene e decoro dos lugares sagrados, alfaias e paramentos litúrgicos, o cuidado, respeito, conservação e requalificação do património artístico e arquitetónico da igreja em cada comunidade cristã. Ajudará a sensibilizar para esta beleza e dignidade a exposição com o património diocesano de caráter eucarístico. É também um meio de evangelização e formação.

 18. Preparar a celebração dominical ao longo da semana

Celebrar o mistério da Eucaristia com dignidade e beleza necessita duma cuidada e atempada preparação sem deixar lugar a improvisações. Aconselha-se, portanto, ao que preside e aos colaboradores a meditar com antecedência a Palavra de Deus, a escolher e ensaiar os cânticos e a distribuir as tarefas. “São, pois muito louváveis aquelas iniciativas com que as comunidades paroquiais, através do envolvimento de todos os que participam na Eucaristia, preparam a liturgia dominical durante a semana (DD 40).

Em cada comunidade paroquial deverá haver um grupo de animação litúrgica de modo que todas as liturgias dominicais sejam bem preparadas e animadas, seja qual for o horário a que se celebrem.

Penso que devemos encontrar ocasiões (catequese, homilia, reuniões) para explicar bem ao povo de Deus a estrutura da celebração, o significado de cada parte, os sinais, os ritmos, as posturas, para envolver realmente a comunidade em toda a celebração.

19. Formação específica para as diversas funções e ministérios

Aqueles que exercem funções específicas durante a celebração da Missa (presidente, acolhedores, leitores, acólitos, cantores, ministros extraordinários da comunhão) necessitam de uma formação específica para o bom desempenho da missão própria, de modo que cada um faça bem e só o que lhe compete. É necessário que se adquira o sentido global da celebração da Eucaristia e da função que cada um exerce nela. De igual modo, também se requer uma espiritualidade própria para desempenhar cada serviço numa atitude de fé e amor. Através da ação litúrgica, cada um vive e testemunha o amor de Deus ao seu povo e o amor do povo ao seu Deus. A liturgia requer autenticidade.

Por exemplo, o leitor que proclama a Palavra de Deus na liturgia deve ter a consciência de que através dele é Deus que fala. Isto requer que saiba com tempo o que e quando vai ler, para assimilar a Palavra e comunicá-la à assembleia de modo eficaz e compreensível. Um autor acrescenta ainda: “Seria absurdo que um leitor, alguém que proclama a Palavra de Deus, não conhecesse sequer quais são os livros da Bíblia. Se nunca se preocupou em ler a Bíblia, com que coragem depois a anuncia aos irmãos?” (I. Scicolone)!

“Vive aquilo que fazes” poderia ser o lema espiritual que acompanha o exercício de cada ministério ou serviço. É um imperativo participar na formação para os vários ministérios ou serviços que será proposta a nível diocesano ou vicarial.

20. Eucaristia e Catequese

A centralidade da Eucaristia não tira importância à catequese como alicerce da vida cristã. Antes, supõe-na. Por um lado, é preciso aproximar as crianças e os adolescentes da Eucaristia através da catequese; por outro, há que tornar a Eucaristia mais próxima através de celebrações que os envolva de modo especial. Assim, a catequese da infância e adolescência deve proporcionar uma iniciação gradual e progressiva ao mistério da Eucaristia, prestando maior e melhor atenção aos temas eucarísticos e levando a conhecer e a viver a linguagem dos espaços, símbolos, gestos, palavras e cânticos litúrgicos. Por exemplo, através de uma visita guiada à igreja paroquial para conhecer o sentido do que se vê habitualmente nela: altar, ambão, sacrário, iconografia, vitrais, porta... São sinais visíveis que favorecem a contemplação do mistério invisível.

Por sua vez, há que proporcionar uma iniciação das crianças à celebração com a comunidade cristã procurando envolver e dar lugar à sua participação. Para isso é necessário conhecer bem o Diretório para Missas com Crianças, a fim de fazer as escolhas que ajudam a celebrar de forma mais plena. Em cada ano da catequese, há oportunidade de preparar celebrações com crianças ou adolescentes inseridas na celebração eucarística. Entre elas, destaca-se a Primeira Comunhão, que deve ser cuidada para se tornar um momento marcante da iniciação cristã da criança e continuada pela participação habitual na Eucaristia dominical. O acompanhamento e a participação ativa de pais e catequistas é, neste aspeto, fundamental, devendo eles mesmos ser preparados com algumas catequeses mistagógicas.

Será também importante promover a adoração eucarística para crianças e adolescentes a exemplo dos santos Francisco e Jacinta Marto. Neste sentido, pode ser uma boa ajuda a participação na celebração dos primeiros sábados, na Peregrinação das crianças a Fátima e nas peregrinações de grupos ou famílias aos Valinhos (Fátima), para conhecer as aparições do Anjo com a sua dimensão eucarística e a aprendizagem da adoração.

21. Espiritualidade de Comunhão

A Eucaristia é fonte permanente da espiritualidade de comunhão para todos os fiéis nas suas várias condições e responsabilidades.

Antes de mais, para os ministros ordenados. Integrados pelo sacramento da Ordem na fraternidade do presbitério, esta espiritualidade ajuda-os a crescer no acolhimento e na amizade mútua, no diálogo e na partilha, e na implementação do trabalho em equipa na ação pastoral. A Eucaristia realça a identidade do presbítero como serviço de comunhão na comunidade, que deve também configurar o seu perfil. De facto, o estilo de comunhão há de manifestar-se nas suas palavras e atitudes, nos gestos e modo de vida. Leva a cultivar uma relação próxima, afável e compreensiva, a atitudes de acolhimento, à aproximação de todos sobretudo dos mais frágeis e dos afastados, à atenção às feridas e aos problemas humanos.

Aos diáconos inspira-lhes o sentido da sua total consagração a Deus pela ordenação e a generosa entrega ao serviço do seu povo em estreita cooperação com o bispo e os presbíteros.

 Aos religiosos e religiosas anima-os a manifestarem no seu estilo de vida pessoal e comunitário a fraternidade universal, que hoje tem especial força de atração.

Aos fiéis leigos impele-os a viverem a união fraterna, o diálogo, a partilha e a participação ativa na vida e na missão das comunidades.

As famílias cristãs, por seu lado, são chamadas a viver com esta espiritualidade as dificuldades e os sofrimentos, as alegrias e o descanso ou a festa em união com Cristo e em oferta de amor. De modo específico, “a oração em família é um meio privilegiado para exprimir e reforçar esta fé pascal... O caminho comunitário de oração atinge o seu ponto culminante ao participarem juntos na Eucaristia, sobretudo no contexto do descanso dominical. Jesus bate à porta da família para partilhar com ela a Ceia Eucarística (cf. Ap 3, 20).... O alimento da Eucaristia é força e estímulo para viver cada dia a aliança matrimonial como Igreja doméstica” (AL 318), enquanto casa que abriga no seu interior a presença do Senhor, a sua Palavra e a sua bênção.

Desejaria recomendar também a comunhão fraterna e pastoral dentro de cada paróquia e entre as paróquias: na diversidade que as distingue, aprendam a amar-se entre si, a conhecer-se melhor, a caminhar em conjunto. É fundamental que se considerem irmãs e se deem as mãos.

22. Discípulos missionários da alegria do Evangelho

A comunhão com Cristo torna-nos discípulos missionários. No final de cada celebração somos enviados, como Igreja em saída, a todas as periferias do mundo a testemunhar e levar o amor, a alegria e a paz de Cristo. O que celebramos não é só para nós. É para toda a humanidade. Estimula-nos a ir sobretudo ao encontro dos mais necessitados, frágeis, pobres, abandonados.

A primeira missão da Igreja é anunciar o Evangelho, que dá sentido e esperança a todos os aspetos da vida, mesmo do sofrimento e da morte, e mostrar que, na fé cristã, a vida pode ser vivida com serenidade e esperança, mesmo no meio das fadigas, dores e provações que nos reserva.

Nesta linha, o Papa Francisco pede que, nas comunidades cristãs, a vivência da Eucaristia se traduza numa “cultura eucarística, capaz de inspirar os homens e as mulheres de boa vontade nos campos da caridade, da solidariedade, da paz, da família, do cuidado da criação”. Ela gera atitudes concretas de comunhão, de serviço e de misericórdia. Em referência a esta última, o Papa insiste num tom realista e tocante: “Todos se lamentam do rio cársico de miséria que percorre a experiência da nossa sociedade. Trata-se de inúmeras formas de medo, opressão, arrogância, maldade, ódio, fechamento, negligência para com o meio ambiente, e assim por diante. Todavia os cristãos experimentam todos os domingos que este rio impetuoso nada pode contra o oceano de misericórdia que inunda o mundo. A Eucaristia é a fonte deste oceano de misericórdia, porque nela o Cordeiro de Deus, imolado mas elevado, do seu lado trespassado faz brotar rios de água viva, efunde o seu Espírito para uma nova criação e oferece-se como alimento sobre a mesa da nova Páscoa (cf. Carta. ap. Misericordiae vultus, 7). Deste modo, a misericórdia entra nas veias do mundo e contribui para construir a imagem e a estrutura do Povo de Deus, adequada ao tempo da modernidade”.

Os cristãos são chamados a estar na linha da frente nos âmbitos do respeito pela dignidade de cada pessoa humana, da justiça social, do combate à pobreza e da responsabilidade pelo ambiente. A profanação mais grave da Eucaristia acontece quando quem nela participa, depois despreza ou explora qualquer pessoa humana.

O biénio pastoral, na atual situação de pandemia, é uma ocasião para as comunidades e grupos sociocaritativos se revitalizarem, para irem ao encontro das várias formas de pobreza, de quem passa necessidade. Nesta linha, está previsto um encontro vicarial das instituições sociocaritativas sobre as consequências sociais da Eucaristia, celebrar o Dia dos Pobres, o Dia dos Doentes.

Em ordem a despertar o dinamismo missionário da Eucaristia, além de celebrar o Dia Mundial das Missões assinalando particularmente o projeto missionário Ondjoyetu, propõe-se também que se faça o envio missionário em contexto de celebração diocesana e que, no âmbito paroquial, de comunidade, movimento, grupo ou família, se apoie um projeto missionário concreto, envolvendo as diversas faixas etárias.

23. “Não podemos viver sem o Domingo”

Para os cristãos, a Eucaristia é o coração do domingo. Com efeito, “o domingo é um dia santo para nós, santificado pela celebração eucarística, presença viva do Senhor entre nós e para nós. Portanto, é a Missa que faz o domingo cristão!” (Papa Francisco). Ela confere conteúdo e significado cristão ao domingo como dia do Senhor, dia da comunidade e dia do homem.

Com a celebração da Eucaristia, o domingo, primeiro dia da semana, torna-se o dia por excelência do encontro com o Senhor ressuscitado e do encontro da comunidade, ocasião de encontro entre irmãos unidos em Cristo que vivem a alegria do diálogo e dos laços fraternos; o dia da solidariedade através do acolhimento e da partilha com os mais necessitados, da presença ou visita aos doentes; o dia da liberdade, da alegria e do repouso do trabalho, do afeto familiar, da fruição do que de belo a vida e a natureza nos oferecem. Em cada domingo, a Eucaristia é fonte, escola e motor destes valores.

Para o cristão, domingo sem a Eucaristia é como um dia sem a luz e o calor do sol. Neste sentido, recebemos um testemunho, muito estimulante, dos mártires da Abitínia (atual Tunísia) no ano 304. Durante a perseguição do imperador Diocleciano, foram surpreendidos a celebrar a Missa numa casa. Interrogados pelo procônsul romano por que o fizeram, sabendo que era proibido, responderam: “Não podemos viver sem o domingo”, isto é, sem a celebração dominical. Ou seja, se não podemos celebrar a Eucaristia, não podemos viver como cristãos, a nossa vida cristã morreria. Nós “não vamos à Missa para oferecer algo a Deus, mas para receber d’Ele aquilo de que verdadeiramente temos necessidade” (Papa Francisco). A Missa dominical é indispensável à saúde da Igreja!

Precisamos de cristãos e famílias que deem testemunho forte, com coerência e coragem, das nossas convicções. Nas comunidades e movimentos apostólicos, promovam-se e partilhem-se experiências neste sentido. Cultive-se o sentido crítico em relação a condicionamentos, formas de pensar, propostas económicas ou de lazer que põem em causa o espírito e a prática dominical cristã. Ousemos difundir os nossos pensamentos e criar uma corrente de opinião que favoreça os valores simbolizados no domingo cristão.

24. Assembleias dominicais na ausência do sacerdote

Hoje em dia, dada a escassez do clero, acontece, em certos casos, a impossibilidade da celebração eucarística. Nessas situações, “a Igreja recomenda a convocação de assembleias dominicais na ausência do sacerdote, segundo as diretrizes emanadas pela Santa Sé e confiadas, para a sua aplicação, às Conferências Episcopais” (DD 53). É um assunto a refletir nos vários órgãos diocesanos em ordem a discernir as necessidades da nossa Diocese e a definir orientações comuns.

25. Eucaristia e pastoral das vocações

A situação acabada de referir convida-nos a prestar maior atenção à pastoral das vocações ao ministério ordenado. Este ministério é a garantia da presença sacramental de Cristo nos diversos tempos e lugares, sobretudo através da presidência da Eucaristia “em nome e na pessoa de Cristo”. Trata-se de um problema vital para o futuro da nossa Igreja diocesana, que está a sentir a escassez de vocações e de ordenações sacerdotais. Ora, as vocações nascem e amadurecem na comunhão e amizade com Jesus através do encontro com Ele na Palavra e particularmente no sacramento da Eucaristia, num clima de oração. Peço que cada paróquia procure constituir ou revitalizar um grupo paroquial de apoio às vocações, concretamente através da adoração eucarística. E cada padre tome a peito a preocupação de encontrar continuadores para o exercício do ministério.

Não podemos esquecer igualmente a vocação ao diaconado permanente. A Igreja diocesana precisa deste dom do Senhor. Acolhamos a eventual inspiração do Espírito para nos tornarmos mediadores do chamamento para este ministério que enriquecerá o serviço pastoral ao povo de Deus.

26. Dimensão eucarística da Mensagem de Fátima

Como escrevi na carta pastoral “Maria, Mãe de Ternura e de Misericórdia” (n. 18), a Mensagem de Fátima tem uma “centralidade eucarística”. Efetivamente, “quer na oração do Anjo na terceira aparição, quer sobretudo na visão de Lúcia com que encerram as aparições, o mistério da misericórdia de Deus-Amor Trinitário está centrado na oblação de Cristo na Cruz, donde flui no sinal do sangue para o altar da Eucaristia. (...) É este mistério de amor misericordioso que celebramos na Eucaristia e que está no centro da espiritualidade de Fátima, seja na adoração eucarística seja na Comunhão reparadora, para, na união com Cristo, vivermos a orientação da nossa vida e renovar o sim da oferta de nós mesmos a favor dos outros.”

Conforme o testemunho da Irmã Lúcia nas suas “Memórias”, os Pastorinhos viveram fiel e intensamente a sua relação com Jesus na Eucaristia, a quem chamavam “o Jesus escondido”. Participação na Missa, ardente desejo de receber Jesus na comunhão, visitas ao Santíssimo Sacramento, adoração prolongada diante do Sacrário e integração nas procissões eucarísticas, foram os modos como viveram a Eucaristia, com vários frutos espirituais na sua vida quotidiana.

Procuremos conhecer mais profundamente esta dimensão do dom das Aparições de Fátima e do exemplo dos Pastorinhos, especialmente dos santos Francisco e Jacinta Marto. O Movimento da Mensagem de Fátima e o Santuário têm válidos subsídios publicados e experiências consolidadas, particularmente na iniciação das crianças na adoração eucarística. Saibamos aproveitar esses meios e tomar iniciativas nesse sentido.

27. A Eucaristia, fonte de alegria e esperança para os jovens

Na continuação do biénio pastoral dedicado aos jovens, desejo dirigir-lhes também aqui uma palavra de ânimo.

Caros jovens, a pastoral juvenil não está em quarentena, confinada. Uma nova época da história está a começar e vós sois os protagonistas da mudança do mundo para melhor com os vossos talentos, competências e criatividade. Um imenso desafio!

A Eucaristia assegura-nos que Cristo está vivo, caminha connosco, a nosso lado, tal como fez com os discípulos de Emaús. Ele ilumina o caminho com a sua Palavra e faz-se alimento e bebida para dar a força necessária para avançar sem desânimo. Em cada igreja, Ele está disponível para vos escutar nas vossas inquietações, dúvidas e esperanças, iluminar-vos interiormente e encher de paz os vossos corações. Ide até Ele com frequência.

Sei que para muitos a Missa não lhes diz nada. Talvez a razão seja que não se ama o que não se conhece bem e a fundo. Ouso pedir-vos que façais todo o esforço para descobrir a beleza e riqueza deste sacramento para a vossa vida no mundo. E faço meu o desejo do Papa Francisco: “Queridos jovens, correi atraídos por esse Rosto tão amado, que adoramos na Sagrada Eucaristia e que reconhecemos na carne do irmão sofredor. Que o Espírito Santo vos impulsione nesta corrida para a frente” (CV 299). Que este horizonte nos ponha já a caminho para a JMJ em 2023, em Lisboa!

28. Maria, mulher eucarística

A Mãe de Jesus, mulher eucarística, que deu ao mundo o Pão da vida, nos acompanhe no nosso percurso pastoral e nos ajude a contemplar, com o seu olhar e o seu coração, o rosto eucarístico de Jesus. Ela nos inspire e guie para realizarmos a conversão pessoal e pastoral que Jesus nos pede para vivermos a comunhão com Ele e sermos testemunhas do seu amor no mundo.

29. Oração do biénio

Pessoalmente, em família, grupo ou comunidade, dirijamos muitas vezes a Jesus esta prece, que exprime e invoca a graça e os frutos da Eucaristia:

Nós Vos damos graças, Senhor Jesus Cristo,

que na Eucaristia, fonte de amor,

convidais o vosso povo a alimentar-se

do pão da vida e do cálice da salvação,

memorial da vossa paixão, morte e ressurreição.

A força que nos dais

com o vosso sacrifício e a vossa presença

nos ajude a ser, para os outros,

pão que alimenta e vinho que dá alegria,

humildes servidores da reconciliação

entre as pessoas e os povos

para anunciar com gestos e palavras,

que Vós sois o único Senhor,

a fonte de toda a vida. Ámen

(Oração do próximo Congresso Eucarístico Internacional, adaptada)

 

Leiria, 28 de agosto de 2020,

Festa de Santo Agostinho, padroeiro da Diocese com Nossa Senhora de Fátima.

† Cardeal António Marto, Bispo de Leiria-Fátima

 

SIGLAS USADAS

AL – Amoris Laetitia, Exortação Apostólica pós sinodal do Papa Francisco, sobre o Amor na Família.

ChfL- Christifideles laici, Exortação Apostólica pós sinodal de João Paulo II, sobre a vocação e missão dos leigos na Igreja e no mundo.

CV – Cristo vive, Exortação Apostólica pós sinodal do Papa Francisco aos jovens e a todo o povo de Deus.

DD – Dies Domini, Carta Apostólica de João Paulo II, sobre a santificação do Domingo.

DV – Dei Verbum, Constituição sobre a Revelação Divina.

FCS – Fica connosco, Senhor, Carta Apostólica de João Paulo II para o Ano da Eucaristia.

SCa – Sacramentum Caritatis, Exortação Apostólica pós sinodal de Bento XVI, sobre a Eucaristia, fonte e ápice da vida e da missão da Igreja.

SC – Sacrosanctum Concilium, Constituição sobre a sagrada Liturgia.

 

Documentos do Magistério e instrumentos recentes

FRANCISCO, Catequeses sobre a Eucaristia (8-11-2017 a 4-04-2018); publicação: Editorial AO, Braga 2018;

FRANCISCO, Catequeses sobre a Iniciação Cristã. Baptismo, Confirmação, Eucaristia, SNL, Fátima 2019, p. 41-94.

BENTO XVI, Exortação Apostólica Pós-Sinodal “Sacramento da Caridade” [Sacramentum Caritatis] (22-02-2007).

JOÃO PAULO II, Carta Apostólica “Fica connosco Senhor” para o ano da Eucaristia, 2004-2005 [Mane Nobiscum Domine] (7-10-2004).

JOÃO PAULO II, Carta Encíclica “A Igreja vive da Eucaristia” [Ecclesia de Eucharistia] (17-04-2003).

PONTIFÍCIO COMITÉ PARA OS CONGRESSOS EUCARÍSTICOS INTERNACIONAIS, Todas as minhas fontes estão em Ti. A Eucaristia: fonte da nossa vida e da nossa missão cristã. CEI 2020 Budapeste, Hungria, SNL, Fátima 2019.

MARTO D. António, Eucaristia e Beleza de Deus, Fundação Jornal da Beira, Viseu [2005].

CABECINHAS Carlos, No coração da Igreja. Eucaristia, Comunidade e Missão, Ed. Paulus, Lisboa 2020.

Sem comentários:

Enviar um comentário