Jorge Sampaio, um cidadão do mundo
Escritora e Jornalista
Expresso - 10 SETEMBRO 2021 11:43
Foi um político socialista culto, lido, foi um ilustre humanista no que de melhor tem a estafada palavra. E foi um ilustre descendente de judeus cultos e dedicados a melhorarem o mundo. Foi um homem devotado aos direitos humanos e à diplomacia como solução principal de conflitos. Mais do que o Presidente, a quem a democracia portuguesa deve também os modos de elegância e o cosmopolitismo internacionalista que depois perderia, sinto a falta do homem, do ser humano, da personagem. Do sorriso ágil de pássaro que tudo observa com discrição.
Atento aos negócios internacionais, tinha um
particular interesse pelo Médio Oriente, que visitou várias vezes, e pelo
insanável conflito israelo-palestiniano. Sentia-se moralmente implicado. Em
Belém ou no gabinete pós-presidencial e no cargo de Alto Representante para a
Aliança das Nações, costumava telefonar-me quando rebentava mais uma guerra
naqueles territórios. Mais do que interessar-se, foi ele o motor e a vitalidade
dessa defunta Aliança das Nações, um consórcio internacional à sombra das
Nações Unidas para promover a reconciliação entre o mundo ocidental e o mundo
muçulmano que por esses tempos era visto como um inimigo civilizacional.
Estive com ele tantas vezes em tantas circunstâncias que nem sei o que posso
destacar. Sampaio acompanhou a geração do 25 de Abril, um centrista esquerdista
ao jeito social-democrata quando a palavra representava uma ontologia da
decência e da prudência, e um político que não abdicava da ideologia e da
cultura da ideologia. Foi um europeísta convicto que pensou e repensou o
alargamento e analisou a necessidade de uma Constituição europeia. Os encontros
de Arraiolos nasceram daí.
Recordo uma ida à Turquia em presidencial visita de Estado (fui na qualidade de
Diretora da Casa Fernando Pessoa) onde percebi que ele tinha uma visão alargada
e absolutamente certeira do papel estabilizador que a Turquia poderia ter na
Europa se a Europa não lhe voltasse as costas.
Erdogan era por esse tempo um europeísta e foi a humilhação infligida pela
União Europeia com avanços e recuos e argumentos de exclusão, onde a França
teve um papel determinante, que justificaram a escolha do Golfo Pérsico e dos
países árabes como aliados principais. E, mais tarde, da Rússia, como sabemos.
E ditaram algum do despotismo e autoritarismos posteriores. Sampaio estava tão
certo.
Noutra viagem, em Doha, Qatar, mais uma vez vi Jorge Sampaio atuar dentro da
Aliança das Nações, percebendo que embora a monarquia absolutista do país lhe
desagradasse, o Qatar se colocava, com os seus recursos inesgotáveis (gás
natural) e a sua ambição política e diplomática, como um interlocutor essencial
nas grandes questões do Médio Oriente e dos Estados Unidos da América no mundo
pós-11 de Setembro. Olha-se para o Afeganistão hoje e Sampaio acertou, mais uma
vez. Estamos a um dia dos 20 anos do 11 de Setembro e tenho pena de já não
poder ouvir Jorge Sampaio sobre a data de amanhã.
Não creio que haja muito sucessores deste senhor brando e educado que conseguia
ser de uma teimosia e de uma firmeza argumentativa inabaláveis quando se
tratava da substância do diálogo e da certeza de que temos de fazer tudo o que
é possível para tornar este mundo mais pacífico, seguro, justo e igual. E
livre. Ele fez.
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